Continuando a nossa tarefa hercúlea de falar dessa incrível coletânea de ficção científica, agora vamos entrando na década de 1960. Contos de autores como Theodore Sturgeon, Will Worthington e até de Silvinia Ocampo.
Nesta quinta parte desta incrível coletânea, temos os seguintes contos:
1 - "The Man Who Lost the Sea" (de Theodore Sturgeon) - 1959
2 - "The Waves" (de Silvina Ocampo) - 1959
3 - "Plenitude" (de Will Worthington) - 1959
4 - "The Astronaut" (de Valentina Zhuravlyova) - 1960
5 - "2 B R O 2 B" (de Kurt Vonnegut) - 1962
6 - "A Modest Genius" (de Vadim Shefner) - 1973
Seguem as resenhas:
1 - "The Man Who Lost the Sea"
Autor: Theodore Sturgeon Avaliação:
Publicado originalmente em 1959
A última vez em que eu li uma história sobre uma viagem à lua foi com Jules Verne. Este é um tema que acabou sendo deixado um pouco de lado pelos autores. Isso porque o homem do século XX já começava a pensar em viagens a lugares além da Lua. Até mesmo na primeira metade do século elas já começaram a se tornar mais raras. O próprio Edgar Rice Burroughs preferiu centrar sua história em Marte quando o cenário usado poderia ser facilmente a lua. Asimov partiu para viagens ainda mais distantes. Mas, Sturgeon usa este tema como um subterfúgio para trabalhar outro: o da perda das faculdades cerebrais e o do medo.
Neste conto temos a presença de um astronauta na lua. Ele reflete sobre sua vida e suas escolhas. Mas, ao mesmo tempo, ele está doente. Talvez sua presença neste mundo seja longa ou curta, tudo vai depender do que vai acontecer a seguir. É então que ele passa a se recordar de acontecimentos de quando ele era mais jovem, de quando ele confrontou a morte cara a cara e nunca mais foi o mesmo.
Theodore Sturgeon é um mestre na narrativa. A gente é capaz de perceber toda a estética presente na sua forma de apresentar as cenas e os personagens. Ele não nomeia os personagens: para as cenas no presente ele se referem ao protagonista como o homem doente; para os flashbacks como a criança. Sua escrita tem o poder de encantar o leitor apesar de eu achá-la um pouco pesada em alguns trechos. Talvez tenha sido por isso que eu não tenha curtido completamente a história. Mas, sua escrita é tão rica que somos capazes de imaginar com detalhes o que acontece a cada momento.
Ao mesmo tempo em que é uma escrita poética, ela também é muito emotiva. Posso descrever o que eu senti em alguns trechos na história: uma terrível melancolia na chegada à Lua, um medo profundo quando acontece o fato que muda para sempre a vida do protagonista e uma tristeza profunda ao perceber o inevitável. Mas, são os pequenos temas presentes na história que a fazem tão emotiva assim como eu me referi.
Um dos temas tratados é o da perda das faculdades mentais pelo protagonista. Nossa, tem um parágrafo que é tão atroz que tirou o meu chão. Ele descreve detalhadamente o que ele imagina que uma pessoa com algo como mal de Alzheimer pode sentir: o estar preso em sua própria mente. Quando outra pessoa te explica as coisas e você está prestando atenção, mas parece que o cérebro não é capaz de assimilar a informação ou até de executá-la. O corpo se torna o seu próprio inimigo. É de uma clareza e uma melancolia tão profundas que chega a nos dar um baque.
Mas, ele também trata de o quanto devemos ser humildes diante da vida. O acontecimento que se sucede ao protagonista o faz perder o seu mar. Isso porque o acidente acaba fazendo com que ele perca boa parte de sua coragem (ou de sua intempestividade?) à medida em que ele entende que certas coisas ele não é capaz de conquistar sozinho. Não sei dizer o quanto isso é emasculatório... mas, é uma análise interessante sobre baixar a cabeça e entender que ajuda é necessária em certos momentos. Fico pensando em o quanto isso pode ter contribuído para que ele chegasse até o momento em que ele se encontra no começo da história. Esse foi um momento definidor para a vida dele.
Essa é uma história necessária para nós. Para que sejamos capazes de entender que certas ações que fazemos são tolas e desnecessárias. Ao mesmo tempo dependendo do ponto de vista, perder o mar pode representar uma perda de inocência e um amadurecimento. Ou não. Trata-se de um conto com múltiplas interpretações e que serão particulares para cada um de nós. E só poderia ter vindo de um gênio como Sturgeon.
2 - "The Waves"
Autora: Silvina Ocampo Avaliação:
Publicado originalmente em 1959
Silvinia Ocampo tenta nos mostrar através desse conto como seria um futuro onde desastres ambientais nos obrigassem a encerrar com todas as guerras e unir todas as nações. As pessoas passam a ser monitoradas a partir de suas moléculas e isso muda toda a maneira de se organizar em sociedade. Ocampo é uma das maiores autoras representativas do gênero conhecido como realismo mágico. Junto com Borges e Bioy Casares ela organizou uma Antologia de Literatura Fantástica com a presença de muitos autores desconhecidos do público norte-americano. Mas, eu senti que não fui capaz de me conectar com a história.
É interessante que ela traça algumas críticas boas acerca do socialismo. No fundo estamos diante de um escrito político que usa do viés fantástico para passar uma ideia. Mesmo em um mundo sem nações, desejamos controlar as vidas dos indivíduos. Chega a ser muito curioso isso. Foge completamente à noção de distopia que muitos dos leitores estão acostumados a ver com pessoas lutando por seus direitos ou uma revolta que se encontra às vésperas de eclodir. O que temos aqui é apenas um relato de como tudo mudou com a agressão da natureza. Se em um primeiro momento houve um espírito de união em prol da sobrevivência, a seguir partiu-se para uma sociedade mais vigiada e temerosa. As pessoas passam a ser analisadas por sua combinação de moléculas. E até separadas por conta disso. Com a habilidade de determinar as características psicológicas das mesmas através disso, famílias são separadas para que pessoas com combinações afins possam se estabelecer juntas. Mas, ninguém perguntou às mesmas se era isso o que elas desejavam.
Esta é apenas a visão de uma pessoa que tenta sobreviver em um mundo diferente. Ela revela suas críticas e suas preocupações diante de tudo o que se passa. Somos guiados diante desse estranho lugar onde pessoas que nada tem em comum precisam viver juntas. E como as ligações afetivas que as pessoas que foram obrigadas a se separar causam uma série de problemas como violência e suicídios. A própria narradora (aliás, história escrita em primeira pessoa) está buscando uma forma de rever seu amado. Recomendo o conto para aqueles que desejarem conhecer o trabalho de Ocampo, uma autora de realismo mágico pouquíssimo conhecida por aqui.
3 - "Plenitude"
Autor: Will Worthington Avaliação:
Publicada originalmente em 1959
Algumas pessoas me perguntam porque eu gosto tanto de ler clássicos. Pior ainda: por que eu gosto de ler contos clássicos? Pegando a lupa ainda mais: Por que eu gosto de ler contos clássicos de ficção científica e fantasia? Olha, a resposta é bem simples: as questões trabalhadas em outros períodos da história eram outros. A ficção científica sempre foi um gênero no qual o leitor é capaz de perceber quais eram as preocupações que cercavam a mente dos autores em uma dada época.
Estamos no final da década de 1950 e a preocupação que eu vejo na pena de Will Worthington é que mundo estamos deixando aos nossos filhos. Que futuro é esse que será legado às próximas gerações? Em um conto extremamente sensível, Worthington nos coloca em um mundo pós-apocalíptico em que as pessoas vivem nas ruínas de um mundo devastado enquanto alguns poucos vivem nas Cidades. Mas que tipo de seres humanos conseguiram sobreviver a tamanha devastação? E que restos de homens são estes que moram nas Cidades? Logo vemos na história como este é um futuro desolador: as pessoas voltaram a viver da caça, da coleta e da pesca. O protagonista é um pai que precisa ensinar a seu filho algumas lições de vida. Depois de muito protegê-lo, é preciso colocá-lo de volta no mundo. E talvez as relações entre os dois fique um pouco (ou muito) balançada após algumas revelações.
A história nada mais é que uma jornada de crescimento. Mas, na visão de um pai observando seu filho sendo obrigado a amadurecer antes do tempo. Vemos em quase toda a história como o pai deseja proteger seu filho contra certas coisas. Mas, após uma certa idade é impossível proteger de tudo. Ele será obrigado a levá-lo a uma jornada para mostrar o que sobrou da humanidade. A ambientação é muito boa. O autor consegue passar como o mundo se transformou e para pior. Em alguns momentos me lembrou bastante a toada de Cormac McCarthy em A Estrada. Claro que o livro de Cormac é muitas décadas posterior à Plenitude, mas fica aqui a comparação. A escrita de Worthington nesse sentido é menos seca e mais descritiva. Isso porque ao nos passar uma narrativa em primeira pessoa, ele precisa trabalhar mais com os sentimentos do pai e como ele percebe o mundo ao seu redor.
O trecho que se passa na Cidade é de partir o coração. A narrativa toma um tom bastante dramático e sentimos a dor que o protagonista carrega por ter sido obrigado a mostrar um lado feio de si mesmo. Aliás, fica aqui o parênteses de que a história se passa em dois momentos: inicia-se depois que eles chegam da Cidade um pouco cabisbaixos e pensativos e no meio o protagonista conta o que se passou lá. No final a narrativa presente é retomada. O autor tem um domínio muito bom de pacing na história. Gostei demais da história. Recomendo fortemente.
4 - "The Astronaut"
Autora: Valentina Zhuravlyova Avaliação:
Publicado originalmente em 1960
É incrível como a ficção científica do período da União Soviética é interessante. Costumamos sempre reduzir a influência russa aos irmãos Strugatsky, mas a verdade é que existe todo um manancial de pérolas as quais nunca fomos apresentados. Aqui temos um conto onde a personagem é uma espécie de arquivista/psicóloga e está estudando os registros de uma expedição até a Estrela de Barnabas feita pela primeira tripulação a chegar até lá. Uma tripulação formada por homens e mulheres intrépidos e corajosos que enfrentaram um perigo mortal e o desconhecido de frente.
A escrita da autora é muito atual. É possível traçar facilmente alguns paralelos com obras muito recentes como Perdido em Marte, de Andy Weir. Temos aqui alguns elementos mais pesados de ciência, mas sem ser pedante ou chato demais. Os detalhes técnicos são apresentados com tanta facilidade que o leitor logo entende qual é o problema da Pole por não poder retornar do sistema para onde eles estão indo. É possível entender até mesmo o que levou o mal funcionamento do reator. E estamos falando de algo bem especulativo.
A tripulação é bem apresentada e somos capazes de distinguir os personagens entre eles. Apesar de que, faltou um pouco de espaço para dar uma profundidade maior a eles. Senti que se a autora esticasse um pouco mais a história seria possível trabalhar a relação entre eles ao longo da narrativa. O cerne da história é a relação entre os tripulantes e o peso da decisão do Capitão no final da história. A cena toda tem um impacto no leitor porque a autora consegue fazer uma boa construção ao longo da narrativa causando essa empatia toda.
Gostei da escrita. É uma narrativa em primeira pessoa, mas é como se a protagonista estivesse contando a história para o leitor. Não chega a atravessar a quarta dimensão (de estar falando com você), mas flerta com isso em alguns trechos. Senti falta de uma separação entre os acontecimentos da Pole e do tempo presente. Às vezes causa uma confusão no leitor e achamos que a protagonista se encontra na nave naquele momento, quando na verdade ela apenas está conversando com o arquivista que está lhe fornecendo os arquivos.
Recomendo bastante esse conto até para que você, leitor, possa ter contato com esses incríveis autores russos. Eles tem uma escola de escrita bastante distinta da norte-americana. Nem melhor, nem pior, apenas muito diferente e pode te surpreender.
5 - "2 B R O 2 B"
Autor: Kurt Vonnegut Avaliação:
Publicado originalmente em 1962
Essa é uma história poderosa contada pelo gênio por trás do magnífico Matadouro 5. Aqui nesse conto podemos perceber toda a crueza e a objetividade de sua escrita. Na distopia apresentada aqui, os humanos agora vivem eternamente. Para impedir uma superpopulação as pessoas são impedidas de ter filhos. Para ter um, é necessário que outra pessoa morra para dar lugar a um novo ser. Somos colocados diante de um pai que vai até a maternidade levar sua esposa que está grávida de trigêmeos. E é aí que começa o drama.
É preciso destacar logo de cara como a escrita do Vonnegut é incrível. Ele consegue nos passar as emoções por trás de cada cena. Seja a tranquilidade dos médicos, a indiferença daqueles ao redor ou a inconformidade do pai que não sabe o que fazer para que seus filhos possam nascer. A gente percebe como esse mundo é distorcido por valores que não são os nossos, mas que podem vir a acontecer em um futuro. Pelo que eu conheço da escrita do Vonnegut o objetivo é sempre chocar, mas provocar uma reflexão no leitor. Sua prosa seca e pungente é capaz de provocar isso no leitor. Na ficção científica não sou capaz de encontrar nenhum autor como ele. Os personagens servem ao propósito de apresentar uma mensagem que é a história em si.
A ideia é preparar o leitor através da apresentação de personagens e da situação para o final da história. A introdução e o desenvolvimento servem à conclusão que é a mensagem que ele quer passar. Somos capazes de perceber até nos diálogos o peso por trás daquilo que o protagonista precisa resolver no final. O plot twist ao final vem de maneira bastante inesperada. Quando acontece, eu me surpreendi bastante. E não bastando o impacto da cena propriamente dita, o autor ainda nos dá mais um soco no estômago com as duas últimas falas finais. Esse é um daqueles contos que são extremamente úteis para que autores possam aprender outros estilos de escrita ou técnicas narrativas diferenciadas. Fica a dica para conhecerem esse conto.
6 - "A Modest Genius"
Autor: Vadim Shefner Avaliação:
Publicado originalmente em 1973
Esse é um conto tão singelo que faz você abrir um sorriso no canto do rosto ao final. Não chega a ser uma história de ficção científica per se, mas o gênero é usado para contar a vida de um homem bondoso e inteligente que tudo o que queria era encontrar alguém que o amasse. Ele é capaz de inventar coisas incríveis, mas surpreendentemente sua vida amorosa é um caos. Após duas tentativas fracassadas de se envolver com uma mulher, ele acaba em um casamento de aparências com uma mulher que apenas se conforma em estar a seu lado e não apoia a sua criatividade. Mas, Sergei queria muito voltar atrás no tempo e poder estar ao lado de Liussa, seu verdadeiro amor.
No fundo esta é uma história de amor. Sobre como não devemos nos conformar com o que nos é colocado e corrermos atrás de nossos sonhos. E que nunca é tarde para estarmos junto de quem amamos. Sergei passa uma vida difícil e acaba se contentando com as cartas que lhe são dadas porque imagina que isso é o que ele merece. Sua imaginação é tolhida por uma mulher de mente pequena. Nesse sentido, Vadim Shefner consegue nos vender um personagem carismático e sensível que vai emocionar o leitor. Esse é aquele tipo de história que daria um filme lindíssimo.
A ficção científica é bem leve nessa história. Apresentada até de uma maneira caricata com as invenções do marido de Svetlana, como o sabonete anti-roubo e o abridor coletivo de latas de alumínio (fico aqui imaginando como seria uma fila de donas de casa em um escritório tirando uma senha para abrir uma lata de sardinha). A narrativa é conduzida de uma maneira bem direta e até previsível. Esse é aquele tipo de conto para você, leitor, abrir de coração aberto. A gente sabe o que vai acontecer no final, mas o que importa mesmo é a magia colocada pelo autor na história. Fora que a construção de personagens está impecável. Só o fato de estabelecermos sentimentos com os personagens já significa que o trabalho de Vadim foi bem feito.
Ficha Técnica:
Nome: The Big Book of Science Fiction Organizado por Jeff Vandermeer e Ann Vandermeer Editora: Vintage Ano de Publicação: 2016
Outras Partes:
Parte 9
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