A Trasgo é uma revista nacional de publicação de contos de ficção científica e fantasia. Venham conhecer alguns dos possíveis grandes autores do futuro (e alguns bem atuais).
Nesta edição da Trasgo temos os seguintes contos:
1 - "Os Americanos que Vieram do Céu" (George dos Santos Pacheco)
2 - "O Preço da Cura" (Roberta Spindler)
3 - "O Prego da Batalha" (A.Z. Cordenonsi)
4 - "Um Convite para o Jantar" (Cláudio Villa)
5 - "Isso é Tudo, Pessoal" (César Cardoso)
6 - "Canção Abismal" (Priscila Barone)
Vamos às resenhas:
1 - "Os Americanos que Vieram do Céu"
Autor: George dos Santos Pacheco Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
Histórias sobre contatos imediatos sempre estiveram em nossa imaginação. Quantos de nós já pensaram em estabelecer contato com uma raça alienígena? Filmes como o de Steven Spielberg já trataram amplamente do tema. Mas, a história de George cai mais no colo de histórias como Guerra dos Mundos. Há muito tempo eu não via essa temática sendo trabalhada por autores de ficção científica (não atualmente e não dessa forma). O autor consegue entregar uma história arrepiante que nos deixa olhando para os lados querendo saber quem está ao nosso lado.
A ambientação é bastante curiosa: o Brasil no final da década de 1930 e início da de 1940. Eu entendi o porquê de situar a história nesse período, mas não senti que a periodização teve um impacto específico na história. Era mais uma justificativa para tirar o personagem da cidade e limitar o nível tecnológico. A história poderia ser ambientada em qualquer outro período histórico. Esse poderia ter sido um ambiente melhor explorado pelo autor. Mesmo assim, eu gostei da ideia de isolamento. O isolamento cria uma atmosfera de claustrofobia: o personagem não pode sair dali. Existe um perigo ali, mas ele está a quilômetros da civilização. Qualquer informação sobre o seu paradeiro poderia levar dias até alcançar alguém.
A escrita do autor é bastante descritiva porque o personagem busca se isolar. Vamos percebendo aos poucos que o contato que ele tinha com o irmão vai desaparecendo à medida em que os dias se passam. E ele acaba buscando no tio a atenção que ele não tinha. Também senti que o romance que acontece em seguida poderia ter gerado outros momentos interessantes. Serviu para aprofundar a distância entre os irmãos. Mas, o momento que eu mais gostei no conto foi a dúvida. Saber se o que aconteceu ao protagonista foi real ou não. Acho que esse elemento narrativo foi o que eu mais me ressenti. Achei que o autor poderia ter brincado muito mais com o leitor questionando sua percepção do que é ou não real. Teria gerado algo fenomenal.
Entre muitos "se" e "poderia" o conto tem várias coisas positivas. Me ajudou a conhecer o autor e a me interessar por seu trabalho. No final de seu conto tem dicas sobre outros contos e romances publicados por ele. Vale a pena procurar mais a respeito.
2 - "O Preço da Cura"
Autora: Roberta Spindler Avaliação:
Gênero: Terror/Fantasia
Esse não é o primeiro conto que eu li da Roberta Spindler. O outro que eu li estava na coletânea Solarpunk e tocava no mesmo tema: o que um pai é capaz de sacrificar por um filho. Lógico que aqui a autora apresenta o tema de uma maneira diferente e o torna um pouco mais complexo. Não tenho nada a falar da narrativa porque eu gosto muito da escrita da autora. Só achei que o outro conto que eu li me tocou mais do que esse. Não sei se eu fui com uma expectativa alta demais por conta da minha primeira experiência ou se a história em si não me atingiu de todo. Fato é que para mim eu gostaria que a autora tivesse trabalhado um pouco mais a relação entre Jonas e Simão.
Falando nos personagens, como a autora sabe construir bem os personagens em suas histórias. Gostei dos dois personagens. Já tinha curtido muito anteriormente e agora só reforçou a minha impressão a respeito. Mesmo Simão sendo um personagem sobrenatural, aqui ele ficou realmente como a representação do corruptor. Gosto quando o autor pega o trope do vampiro e trabalha a partir do estereótipo do ser que corrompe, que traz a essência do mal em si e quer passá-la ao outro. É uma leitura bem a la Bram Stoker, só que a autora dá uma leve mexidinha no mito do vampiro para atender às suas necessidades. Acabou saindo algo único.
A escrita da Roberta recorre bastante à imaginação do leitor. E para um conto que, para mim, é mais terror do que fantasia, ela precisa construir a tensão em suas linhas. E ela constrói isso bem seja apresentando a atmosfera suja e decadente frequentada por Simão em busca de suas vítimas ou a ida até a casa de Jonas onde tudo transborda tensão e recriminação por uma ação que vai causar algo dolorido no personagem. Mesmo a troca de olhares entre os dois personagens é muito revelador. Por esse motivo eu queria ter visto mais disso... mas, talvez no espaço pequeno deste conto isso não fosse possível
Qualquer história escrita pela Roberta Spindler eu vou sempre recomendar. É uma escritora talentosa com uma veia para um estilo de ficção especulativa que eu tenho certeza que vai agradar aos leitores.
3 - "O Prego da Batalha"
Autor: A.Z. Cordenonsi Avaliação:
Gênero: Romance Militar
Fazer resenhas de livros, às vezes, é uma coisa ingrata. O blogueiro ou o crítico literário ficam divididos entre ser um leitor e ser um "avalista" (detesto essa palavra). De que maneira compor uma resenha sem ser parcial ao ler um trabalho? Não sei se muitos blogueiros são assim, mas eu costumo separar bem as duas coisas. Já fiz uma resenha negativa de um livro que eu gostei e já fiz uma resenha positiva de um livro que eu não gostei. Neste caso, O Prego de Batalha se encontra no segundo caso. A escrita não é ruim, a narrativa é apresentada de maneira muito competente e dá para perceber o estilo do autor ao compor os personagens. Mas, a história não foi capaz de me cativar. Já até marquei o conto para uma releitura em uma próxima oportunidade.
Dito isso, a escrita do autor é incrível. Ele apresenta um combate entre um dreadnought (uma espécie de encouraçado) austríaco e um grupo de infantaria italiano no período da Segunda Guerra Mundial. O acontecimento é a Batalha de Lissa, que ocorreu durante o período de unificação italiana em que se buscava o domínio de Veneza. Estamos diante de um romance de história militar interessante porque o autor mostra todos os lados do conflito. Seja o dos tripulantes da SMS Tegetthoff (o encouraçado austríaco) ou o lado da infantaria italiana (chamada de cacciatore). Vemos o que eles estão sentindo naquele momento e como são feitos os planos para as ações a seguir. No meio de tudo, está um pequeno garoto que observa a tudo de sua cabana de caça.
O tema da guerra retorna em mais um conto. Diferentemente do brilhantismo e da elegância colocada em algumas histórias, a guerra não é algo bonito. Envolve perda de pessoas, envolve inocentes que são tragados acidentalmente para o conflito. Sim, existe aqui ou acolá algum brilhante estrategista militar que, com sua inteligência e sagacidade consegue mudar alguma coisa durante os combates. No caso desta história vemos como o capitão do Tegetthoff realiza uma manobra ousada e pega os membros da infantaria de surpresa. Ao mesmo tempo estes cacciatore conseguem surpreender a tripulação do encouraçado com sua coragem e destemor.
Não quero comentar muito sobre a história porque posso estragar alguma surpresa planejada pelo Cordenonsi. Só vou deixar um último adendo do que realmente aconteceu: o capitão do Tegetthoff realizou a última ação de abalroamento proposital de um encouraçado a outra embarcação.
Dito isso, recomendo a leitura do conto até para conhecer o trabalho do autor. Quero ler outros trabalhos dele porque eu decididamente gostei do estilo de escrita dele, porém a história não me chamou a atenção. Os motivos? Não vou saber explicar.
4 - "Um Convite para o Jantar"
Autor: Cláudio Villa Avaliação:
Gênero: Romance
Temos mais uma vez uma história que lida com a temática da pirataria. Só que dessa vez se trata de um autor que mostra uma personagem que acaba se envolvendo em ações corsárias de forma a beneficiar o seu reino. E que até mesmo uma pessoa honrada acaba precisando recorrer a ações pouco condizentes com a sua natureza.
Em primeiro lugar é preciso destacar como o autor apresenta de uma maneira respeitosa uma protagonista feminina. A capitã é uma personagem decidida, ativa e com suas fragilidades. As ações de sua imediata acabam sendo uma mancha em sua reputação, mas ela acaba aceitando não tendo outra alternativa. A troca de palavras entre ela e Omar é muito interessante porque marca dois lados opostos de um conflito: o político e o econômico. Uma guerra é um acontecimento que envolve domínio político e militar entre dois ou mais países. Mas, e quem lida com a economia, como fica nessa história? Na discussão entre os dois personagens nenhum está inteiramente certo ou inteiramente errado. São apenas pontos de vista distintos.
A opção de escrita do autor foi a de apresentar uma situação no presente, contar o que se sucedeu no passado para dar um fechamento retomando a narrativa iniciada no começo. Nesse sentido isso é feito de forma muito competente. Só senti que o conto precisava de um pouco mais de espaço. Entendi que o autor queria apresentar a capitã como uma pessoa honrada. Mas, isso não ficou inteiramente claro para o leitor. E o fato de ela ter se tornado uma figura lendária não teve o ímpeto necessário para que eu pudesse entender que isso realmente aconteceu. Faltaram algumas poucas cenas para lidar com essas questões. Também achei que uma ou duas cenas precisavam ter algum separador. Em um momento, a capitã está conversando com Lao, sua imediata e na linha seguinte estamos na mesa da família Abbud. Faltou aqui algo que separasse estes dois momentos. A transição foi abrupta demais.
No mais, gostei da história. Claudio Villa retoma uma antiga tradição de autores que empregam esse tipo de ferramenta para deixar algo mais no final. E foi exatamente isso o que eu pude retirar desta história.
5 - "Isso é Tudo, Pessoal"
Autor: Cesar Cardoso Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
O que vai atrair imediatamente o leitor é a escrita caleidoscópica do autor. E é o que me atraiu de cara também. O conto é uma série de pequenas vignettes em que cada uma delas apresenta uma pessoa lidando com o fato de que a Terra será destruída em um curto espaço de tempo e apenas um grupo seleto de pessoas se encaminha para a galáxia de Cerberus para iniciar uma futura colonização. Temos todo o tipo de pessoas desde alguém envolvido no projeto de colonização, um noticiário de TV, um dj chamando pessoas para uma última noitada.
A maneira como o ser humano lida com o fim iminente é o tema fundamental desta história. Aqui vemos algumas das pessoas envolvidas despertando o seu lado mais primitivo, suas paixões mais intensas. Por exemplo, o DJ chama para uma noitada onde tudo é válido, desde transar com quem quer que seja e com quantos forem, até o êxtase na dança e a matança indiscriminada. Em outras sequências vemos até onde uma pessoa é capaz de chegar para conseguir sobreviver mesmo com tudo diante de si. Ou então um grupo de pessoas que já saíram da Terra refletindo sobre a beleza agora inócua de um antes lindo planeta. Algumas passagens são bem intensas enquanto outras são repletas de uma melancolia que passa para o leitor.
Vou soltar um spoiler, mas acredito que no caso deste conto nem seja um spoiler propriamente dito já que as vignettes devem ser lidas como se fossem independentes. Não existe propriamente uma história com início, meio e fim. A história começa com um irmão matando seu irmão através do envenenamento e se encerra com um grupo de exploradores espaciais buscando um sinal no espaço. Tratava-se de uma gravação relatando o milésimo gol do Pelé. No último caso a cena é totalmente absurda que quebra o ritmo melancólico do final da história. É extremamente curioso e merece a atenção do leitor. A escrita do autor é bem simples e fácil de entender. Um bom encadeamento de palavras faz com que o conto seja bem dinâmico. E a história precisa ser lida por inteiro para que todo o escopo dela seja compreendido pelo leitor.
6 - "Canção Abismal"
Autora: Priscila Barone Avaliação:
Gênero: Fantasia/Ficção Científica
Fantasia é um gênero mágico para apresentar histórias que explorem os sentimentos e o encantamento de tudo o que nos cerca. Priscila Barone faz isso com incrível destreza ao nos apresentar a história de uma menina que mora em uma casa isolada acreditando ser uma das últimas pessoas na Terra. Ela desenvolveu uma relação de amizade com Pérola, uma sereia que é sua companheira de aventuras.
No começo o conto tem um tom bastante reflexivo apresentando os sentimentos de Clara, nossa protagonista. Acho bacana que a personagem tem uma vivacidade e uma doçura que vemos pouco em histórias desse tipo. O conto chega até a ter um pouco do estilo de contos de fadas em alguns momentos. Mas, este primeiro trecho do conto serve para mostrar a situação em que Clara vive e seus sentimentos em relação à sua aparente solidão. Depois a autora introduz Pérola como alguém que tira Clara do lugar-comum. Somos guiados pela forte amizade das duas e o quanto esta é importante para acabar com a solidão da protagonista. Pérola atua como um contraponto para Clara. E no final somos guiados até uma missão onde as duas personagens ao lado da lula Zasian.
É preciso destacar a boa pegada que a autora tem em seus personagens. A exploração das características dos mesmos é muito bem feita e ao final sentimos que nos importamos com os personagens. É até emocionante quando Clara toma algumas decisões importantes para si. Aliado a isso a autora consegue construir boas cenas expansivas. Aquelas descrições de mundo em que o leitor consegue criar uma imagem clara sobre aquilo que está ao seu redor. Os diálogos também servem demais ao seu propósito. Bem encadeados e conseguem individualizar bem os três personagens que compõem a história.
A história é uma jornada para a maioridade. Clara precisava expandir seus horizontes acerca do mundo que a rodeava. A segurança de sua pequena casa nas rochas serviu a um propósito inicial, mas é chegado o momento em que a protagonista precisa encontrar um novo objetivo de vida. Os perigos vão aparecer, mas com coragem e perseverança ela vai vencer os obstáculos. Ela só precisava sentir que era chegado o momento de mudar o seu status quo.
Se trata de uma história pós-apocalíptica feita de uma forma muito leve. Apesar de ter toda a tristeza da personagem diante de uma realidade solitária, a personagem mantém a alegria e o otimismo. Uma história simples de ser lida e com um bom dinamismo, Canção Abissal é uma bela história sobre a amizade entre duas meninas e como estas podem contribuir para o crescimento uma da outra.
Ficha Técnica:
Nome: Revista Trasgo nº 5
Organizado por Rodrigo van Kampen
Número de Páginas: N/I
Ano de Publicação: 2014
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