Nessa terceira edição, Alan Moore nos apresenta a um dos personagens mais canalhas e queridos do universo DC: John Constantine. Será que ele conhece todos os segredos do Monstro do Pântano ou ele está blefando para que este possa fazer o que ele quer?
Sinopse:
A dor não pode ser sepultada e esquecida. A dor não pode permanecer no passado ou escondida sob o solo. O que foi enterrado não desapareceu. O que foi plantado germinará. De 1983 a 1987, um jovem escritor britânico chamado Alan Moore revolucionou os quadrinhos dos estados unidos. Sua ousada abordagem na série do monstro do pântano, da dc comics, definiu novos padrões para a narrativa gráfica e desencadeou uma revolução na nona arte que repercute até os dias de hoje. Partindo das premissas de horror gótico do título e construindo um marcante e intuitivo estilo narrativo e uma profundidade de caracterização sem precedentes, a visão de Moore foi traduzida assombrosamente em belos desenhos de colaboradores como Stephen Bissette, John Totleben, Rick Veitch e Alfredo Alcala. O resultado é uma das mais duradouras obras-primas dos quadrinhos. Este volume reúne as edições 35 a 42 de The Saga of the Swamp Thing, e inclui a primeira aparição de John Constantine e uma nova introdução de Stephen Bissette.
A série do Monstro do Pântano chega neste número à uma espécie de normalidade proposta por Alan Moore: grandes ideias, discussões que esbarram em temas do contexto no qual a série foi escrita além de todo o arcabouço místico que o autor vai introduzindo aos poucos para o personagem. É lógico que esta edição fica marcada pela primeira aparição como personagem ativo de John Constantine. Lembrando que ele tinha aparecido rapidamente em um quadro no primeiro volume. O Constantine de Moore é bem diferente do que veremos mais tarde em fases clássicas como a do Paul Jenkins ou a do Garth Ennis. O Constantine de Moore é um cara que não se importa em ser manipulador quando assim deseja e se coloca como aquele tipo de indivíduo canalha que mais se parece com um vilão do que necessariamente um anti-herói. Até que fique em claro que o autor não se prende muito a esse maniqueísmo de heróis e vilões. Tudo precisa funcionar para a sua visão do todo. Vou comentar de cada história ou arco de duas histórias separadamente, mas no todo essa é uma edição sensacional com roteiros que estão bastante precisos e uma arte que mantém o nível do início ao fim. Mesmo quando acontece uma troca de artistas como em Padrões de Crescimento e Águas Paradas os substitutos são "só" o Rick Veitch na primeira e o Stan Woch na segunda. Sem falar na participação mais do que especial do Alfredo Alcala em Mudanças Sulistas como arte-finalista.
Notícias do Fuça-Radioativa é uma narrativa que vai discutir bastante o tema da poluição dos rios por fábricas. Nela, vamos ter uma criatura que foi infectada pela água poluída de uma fábrica que despejava seus rejeitos e teve seu corpo completamente alterado. Ele sai espalhando o caos por toda a parte. Alan Moore vai fazer uma crítica contundente a isso, anos antes de isso se tornar uma pauta importante na luta pela preservação do meio ambiente. Ele envolve um homem que, apesar de ser um inocente, não foi capaz de impedir o despejo de substâncias tóxicas e procurou varrer tudo para debaixo do tapete. Sua esposa grávida não faz ideia de até onde seu marido está envolvido com o desaparecimento de pessoas de onde eles estavam até Rosewood onde eles se encontram. O Fuça-Radioativa é uma vítima das circunstâncias e Moore consegue provocar no leitor uma reflexão contundente até porque essa é uma história repleta de drama e tragédia.
Outro tema importante que começa a ser trabalhado aqui é a ligação entre Abigail e um Monstro do Pântano que tenta enraizar o seu amor por ela como uma forma de manter sua identidade. Os diálogos de Moore são poéticos ao extremo e algumas passagens possuem largos empregos de figuras de linguagem como aliterações, metonímias e paráfrases. A potência de cada frase escrita por Moore é de se emocionar. Querem um exemplo? Leiam só o prólogo inicial onde Moore usa um quadro de página inteira para descrever as emoções trocadas entre os dois personagens. O Monstro do Pântano está descobrindo mais sobre si e consegue desbloquear algumas habilidades incríveis como regeneração instantânea e teletransporte. Ao mesmo tempo, esses novos poderes o fazem se questionar o quanto ele ainda tem de si no processo.
A arte de Bissette é um escândalo de incrível e o que ele e Totleben fazem ao longo do quadrinho inteiro ultrapassa e muito o que se faz hoje com muito mais recursos. A compreensão do posicionamento dos personagens no quadro, sua expressividade, a capacidade de trabalhar o abstrato, a ousadia no emprego de uma quadrinização irregular. Isso, se levarmos em conta que o Alan Moore é um autor adepto do sistema de seis quadros. Só que na série toda acontece um casamento perfeito entre arte e roteiro. Bissette emprega bastante os superquadros com pequenas janelas inseridas em uma arte de página inteira. Ou até uma inserção artística destes quadros dentro de outros quadros. Gosto quando Bissette usa estas inserções para nos mostrar pontos de vista distintos em uma cena. Só para individualizar um pouco essa edição, Bissette espalha pelos quadros pequenos recortes de jornal que destacam o acidente e a denúncia do desastre provocado pela dita empresa. No prefácio, Bissette alega ter usado recortes reais de notícias que ele estava lendo nas últimas semanas.
É em Padrões de Crescimento que somos apresentados a Constantine. Ele aparece para "pedir delicadamente" a ajuda do Monstro do Pântano para resolver alguns problemas do outro lado do país. Começamos a ver um pouco do plano maior de Moore com algum tipo de mal primitivo que está levando pessoas com alguma conexão com o sobrenatural a se suicidarem. Constantine funciona como um obstáculo a uma espécie de calmaria que Abby e o Monstro buscavam. Não há calmaria principalmente porque o Monstro é um elemental ligado ao verde. Para poder ter um aliado forte, Constantine vai cutucar o personagem aonde incomoda. É uma edição bastante reveladora para Abby que percebe que estava se tornando dependente demais de seu amado e que ele possui uma existência que transcende a nossa compreensão. Ou seja, ele pode ser necessário em outros lugares. E essa constatação de que ela pode ser deixada sozinha novamente a abala por dentro. Ao mesmo tempo faz com que seu amor pelo personagem amadureça e atinja um novo estágio onde ambos possuem uma relação muito igualitário. Veremos em edições futuras o quanto o Monstro aprecia a independência e pró-atividade dela.
A arte desta história fica a cargo de Rick Veitch que explora bastante o lado do terror no personagem. Me fez pensar imediatamente em uma história que eu veria em revistas como a Eerie ou a Creepy. Veitch tem uma pegada expressionista que surpreende o leitor. E, o que é aquela criatura com o corpo virado para trás? Que coisa apavorante e perturbadora! Vale destacar também como Veitch consegue aproveitar todo e qualquer espaço em cena para inserir mais e mais elementos. Mesmo em cenas simples como uma conversa entre Constantine e o Monstro, muita coisa acontece, como os vegetais se movendo ou um detalhamento do cenário. Um foco nos rostos dos personagens também é bem visível e ele nos mostra amor, apreensão, tristeza, compaixão. Só não gostei de como Veitch representa o Constantine, mas pode ser porque estou acostumado com uma outra representação do personagem.
A próxima história se chama Águas Paradas e também não tem a participação artística de Stephen Bissette. Desta vez quem assume é Stan Woch que nos oferece uma outra pegada também para a história. Moore direciona sua história para algo mais lovecraftiano e se faz necessária uma atmosfera de mistério e absurdo. Por exemplo, Woch consegue imaginar uma cidade completamente submersa para o roteiro proposto pelo autor. E ela está perfeita; realmente parece um lar para um grupo de personagens horripilantes. Como não acompanhei histórias anteriores do Monstro do Pântano, não entendi a ideia por trás dos vampiros com uma estrela de ferro. Ao que me parece é uma história que se liga a uma aventura anterior do personagem. Esse trecho merecia uma explicação melhor porque imaginei que a história iria por um caminho, mas foi por outro. Enfim, gostei do resultado geral da história ao nos colocar diante de vampiros que são bem mais apavorantes do que estamos acostumados. E se liga bastante com a visão de terror trash da década de 1980. Digo mais, novamente temos uma clara inspiração nas histórias da Creepy.
A história apresentada em seguida, História de Pescador, é a que fecha a anterior. Só colocar uma ponta que é a do trabalho do autor com situações de violência e depreciação do papel da mulher. Algo que terá um papel importante na história logo a seguir. O mais curioso é que o roteiro deixa estes temas sendo apresentados de uma forma tão sutil que se não estivermos atentos, isso passa à nossa observação. O que grita para o leitor são as frases fortes e diretas onde o marido chama a esposa de idiota ou a considera passiva demais. E nem é o comportamento ela, mas a visão que o marido tem de sua submissão. É uma isca boa para a história A Maldição que vem logo a seguir. Que forma criativa que o Alan Moore teve de reinventar o mito do lobisomem. Nela, somos colocados no cotidiano de uma esposa que tem um marido tipicamente machista. Vale destacar que apesar de ser conservador e estúpido, não há uma situação de violência física. A esposa é humilhada moralmente o tempo todo. São aquelas pequenas cutucadas do dia-a-dia que vão se somando uma após a outra até causar uma explosão.
A ideia do lobisomem se mescla com uma lenda nativo-americana. Em uma pesquisa rápida pela internet não consegui encontrar se a lenda em si é baseada em algo real ou se é fruto da imaginação de Moore a partir de uma série de várias outras. Nessa lenda criada para a história, as mulheres da tribo eram colocadas em uma casa separada de todas quando estivessem em seu período menstrual. Todos deveriam evitar contato com elas e elas recebiam comida através de longos instrumentos que depois deveriam ser queimados. Isso nos apresenta toda uma série de informações de senso comum que temos a respeito de como é o período menstrual e quais os efeitos hormonais e físicos no corpo das mulheres. Isso a partir de um viés claramente machista e buscando colocar as mulheres em uma posição inferior. Lembrando que o mito do lobisomem se liga a um aspecto de libertação, da busca pelas origens selvagens. A personagem que se torna a "antagonista" deseja se libertar do julgamento de uma sociedade que não entende o seu valor. É como se ela estivesse em grilhões invisíveis o tempo todo. É preciso pontuar, novamente, que Moore antecipa várias discussões que teríamos décadas mais tarde. Inclusive Abigail é uma personagem bastante interessante nesse ponto porque ela foge ao padrão da mocinha em perigo e se apresenta como uma personagem repleta de camadas. Não é perfeita, tendo seus defeitos e qualidades, e o Monstro a respeita como uma igual. Curioso como apenas uma criatura monstruosa tem a empatia e a paciência necessária para valorizá-la e amá-la do jeito que ela precisa. Tem uma falinha bem rápida e engraçada em que Abby diz que adora o Monstro porque ele não a obriga a cozinhar e a esperar em casa enquanto ele vai "trabalhar". Cutucada leve.
O par de histórias que encerram esse volume é acima da média. Mudanças Sulistas e Estranhos Frutos trata de um programa de TV que chega a Rosewood para gravar uma série de época me uma casa mal assombrada. Histórias de fantasma normalmente falam de vingança e essa é uma que não foge à regra. A diferença e o que a torna única é Moore ressuscitar, figurativamente e literalmente, o tema do preconceito e da exploração de escravos no sul dos EUA. A história possui duas camadas exploradas: o presente e o passado. No presente temos um personagem que procura apresentar ideias progressistas e ser o "cara legal", quando na verdade ele é apenas condescendente com as coisas. Apesar de ser uma HQ de quase quarenta anos, essa postura existe ainda hoje: a do falso moralista. Este é o tipo de pessoa que apresenta uma fachada legal, mas no seu interior alguns sensos comuns ainda permanecem porque são fruto de uma criação dentro de uma sociedade que estava e ainda está em transformação. Aliás, nós somos esse cara em maior ou menor grau. Repetimos gestos ou falas sem saber o quanto elas afetam outras pessoas. Usamos expressões racistas como se elas nada produzissem como consequência.
O aspecto sobrenatural lida com marcas do passado que ficaram para trás. Muitas famílias escravistas se beneficiaram muito da mão-de-obra empregada e a única coisa que perderam foi a possibilidade de ter novas mãos-de-obra para substituir aqueles que eram mortos. Até a forma como tratam aqueles que empregam refletiam essa mentalidade. Enquanto isso, os negros libertos eram jogados em um mundo que ainda os via com olhos tortos. Seus direitos foram conquistados com muito custo e luta social. Na narrativa temos um ator negro que tenta se desvencilhar de ser entendido a partir de sua etnia. E mesmo assim há um discurso preconceituoso velado. A forma como Moore deixa transbordar isso nos balões e nos olhares é incrível e oferece muita riqueza às discussões dos personagens. E estamos falando de um gibi de super-herói. Quando na época em que Moore falava de temas tão profundos, tínhamos o Superman precisando lidar com situações estapafúrdias. É a geração de Moore, do Dennis O'Neal, do Gaiman e de tantos outros que vão repensar a própria forma do fazer quadrinhos.
É claro que preciso usar um parágrafo para falar do Alfredo Alcala. E mesmo gostando do Totleben como arte-finalista, o Alcala se encontra em outro nível. E é difícil lidar com uma arte tão bem acabada como a do Bissette e apresentar algo que seja diferente. Mesmo assim, como vocês podem ver no quadro ao lado, Alcala se supera. Ele fornece mais perspectiva e fluidez nas cenas. A preocupação com o ângulo de iluminação, os rostos dos personagens que ganham mais precisão e expressividade. Para entender o efeito que a finalização do Alcala tem na arte do Bissette compare a edição 40 com a 41 (a história anterior e essa). A anterior foi finalizada pelo Totleben. Não se trata de dizer se é melhor ou pior, mas é uma abordagem diferente sobre a compreensão dos quadros e das cenas. Pode ser também uma preferência minha que prefere quadros com mais expressivos ou com um destaque maior para a iluminação. Ou até o sombreamento do Alcala que difere.
Longa resenha para uma edição sensacional de O Monstro do Pântano. Não tem como falar pouco até porque se trata de uma aula de contar histórias. Vejam que o autor constrói histórias curtas que se resolvem no máximo em duas edições. E mesmo assim consegue tirar o potencial máximo do seu personagem e daqueles que o cercam. Moore criou toda uma estética mística para o seu personagem. A arte é de alto nível e isso pensando em um momento de quadrinhos que é um divisor de águas, mas mesmo assim contava com monstros como Kirby, Byrne, Simonson, Windsor-Smith, Alcala. Ainda assim, a HQ consegue ter uma vibe própria que a distingue de qualquer outra coisa disponível no mercado na época.
Ficha Técnica:
Nome: A Saga do Monstro do Pântano vol. 3
Autor: Alan Moore
Artistas: Stephen Bissette, Rick Veitch, Stan Woch
Arte-finalistas: John Totleben, Alfredo Alcala, Ron Randall
Colorista: Tatjana Wood
Editora: Panini Comics
Tradutor: Edu Tanaka
Número de Páginas: 212
Ano de Publicação: 2018
Outros Volumes:
Vol. 6
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