Uma infância vivida ao lado de cães e a perda da única pessoa que o amou tornaram Krulgar um homem sedento de vingança. E essa ira cega o colocará no meio da disputa entre dois reinos que estão prestes a entrar em guerra.

Sinopse:
Jhomm Krulgar é um ninguém. Um rato de estrada. Um cachorro vadio. Um mastim demoníaco. Sua espada está a venda para qualquer um com moedas no bolso e objetivos escusos. Quando uma garota surge prometendo a riqueza de um rei e a realização dos seus desejos de vingança, ele nem imagina que está prestes a se envolver em um dos mais perigosos jogos políticos de sua era.
Agora, ele e Khirk, seu companheiro silencioso, membro de uma antiga raça escrava, partem para o Sul, onde tentarão impedir os rebeldes separatistas de tomar a coroa da maior cidade do Império de Karis. Encontrarão em seu caminho um Magistrado em missão de paz e um mago ilusionista prestes a realizar o maior espetáculo da sua vida.
O Teatro da Ira , primeiro romance da série Chamas do Império, de Diego Guerra, é uma viagem fantástica onde criaturas místicas e soldados comuns lutam lado a lado nas paredes de escudo, implorando pela própria vida e alimentando as fogueiras da morte para fazer valer as vontades de reis e nobres.
Enquanto Krulgar busca cegamente a sua vingança, não faz ideia de que se tornou apenas mais um dos personagens sombrios deste Teatro da Ira.
O sentimento de fúria cega ganha vida neste romance de fantasia sombria escrito por Diego Guerra. Onde um homem tem tantos sentimentos de raiva e vingança que ele se transforma em uma criatura saída dos piores pesadelos dos homens. Escrito em um período da literatura fantástica no Brasil em que as obras de fantasia sombria estavam na moda, este livro se coloca como uma boa alternativa para quem curte o gênero. Repleto de intrigas, de traição e de sangue caindo como a baba de um mastim demoníaco, O Teatro da Ira nos apresenta uma miríade de personagens que se relacionam e se intercruzam nessa trama pensada em detalhes pelo autor. Gosto de pensar que a fantasia sombria nos ajuda a refletir sobre nossos sentimentos mais ocultos e negativos para que possamos entendê-los e trabalharmos para melhorarmos como seres humanos. Ao vivenciarmos situações extremas, o elemento do choque e da repugnância funcionam como um sinal de alerta para nós mesmos. E isso vai ser visto em várias situações espalhadas pela extensão do livro. Tenho certeza que algumas delas farão o leitor dar aquela encolhida.
Antes de qualquer coisa, apesar de o livro apresentar várias situações bastante violentas, não vou apontar nenhum alerta de gatilho mais grave. Por incrível que pareça. Tem algumas situações de tortura mais para o final do livro e o Diego não abordou especificamente e em detalhes o estupro vivido por Liliah, alguém que está sempre presente no fundo da trama. A Lenda do Mastim Demônio, livro que complementa a leitura de O Teatro da Ira é bem mais violento nesse sentido.
Sendo filha de um poderoso comerciante, Thalla sempre teve uma vida abastada. Mas, no passado, ela viu algo terrível acontecer com sua mãe, o que moldou sua personalidade para sempre e a fez nunca perdoar seu pai, Cirius. Thalla ficou sabendo de um plano para colocar o reino do sul, governado pelo idoso Thuron, contra o império nortista, sob o comando de Arteen. E ela pretende envolver seu amante, Oren, o filho mais novo de Thuron, em seus planos para evitar o assassinato de Thuron e torná-la a futura rainha de Illioth. Mas, ela sabe que Oren é um homem fraco e manipulável, e para fazer seus planos surtirem efeito, ela precisará empregar um mercenário que possui interesses particulares na morte de algumas pessoas importantes do reino. É aí que entra Krulgar. Tendo sido criado como um cachorro (literalmente falando), ele só conheceu o amor da pequena Liliah, uma menina que mostrou a uma criança que era praticamente um animal selvagem, o dom do amor. Só que essa relação entre Krulgar e Liliah terminou de uma forma trágica: seu pai a vendeu por dez moedas de ouro a um grupo de sete nobres que a estupraram até a morte. Krulgar foi a única testemunha do ocorrido e não se esquece dos rostos malditos até hoje. Ele foi o bode expiatório da morte de Liliah e só foi salvo graças a um dhaenni chamado Khirk. Os dhaenni são uma raça semi-humana que sofre todo o tipo de preconceitos por todo o continente. Graças aos esforços do imperador Arteen, eles se tornaram livres, mas o sul é um lugar onde os dhaenni sofrem ainda com a violência das pessoas. Para tentar manter a estabilidade do continente, Arteen envia seu magistrado Marhos Grahan para negociar um acordo de cooperação entre os dois reinos. Uma viagem que vai se revelar mais perigosa do que parece porque irá esbarrar na ambição de Dhommas, filho mais velho de Thuron, e na vingança cega de Krulgar.
"Grandes reis começam uma guerra com um grande exército. Reis grandiosos são mais sutis. Para que se inicie uma guerra basta uma faca afiada. E a garganta certa."

Essa é uma narrativa que envolve vários personagens com interesses distintos. É como ver peças de xadrez se movendo em um tabuleiro. Por esse motivo, faz total sentido que Diego tenha escrito o livro em uma narrativa em terceira pessoa onisciente. E um onisciente mais amplo com o leitor entendendo todas as nuances do que está se passando na história, e não simplesmente aquela visão de câmera postada nos ombros. Não há uma separação muito clara entre os pontos de vista da história, com o autor alternando entre os personagens à medida em que se faz necessária. Ao mesmo tempo em que isso funciona bem porque não interrompe o fluxo da história, pode tornar um pouco confuso caso o leitor não consiga identificar qual personagem está na ribalta naquele momento. Na maior parte do tempo, Diego coloca vários indicadores sobre quem é o personagem principal naquele momento específico, mas algumas vezes não. Como a maioria das histórias de fantasia sombria, temos personagens que caminham na linha cinzenta: nada de heróis, apenas pessoas com ambições. Mesmo os personagens mais "principais" possuem características reprováveis e tomam atitudes que os leitores não irão gostar. Mas, são totalmente coerentes com suas histórias de vida. Quando Krulgar se vê diante de uma escolha crucial no momento climático da história, sua decisão reflete exatamente o que seu coração desejava.
Nos aspectos mais técnicos da obra, ela é de bom tamanho. O autor conseguiu abordar a contento parte dos assuntos que ele aponta no começo da narrativa. Ao mesmo tempo em que deixa ganchos para uma continuação. Aliás, gostaria muito de ver o Diego continuar a mexer com estes personagens. Depois de O Teatro da Ira, ele só publicou A Lenda do Mastim Demônio, que é um prequel para esse livro tratando apenas da infância de Krulgar. A narrativa é estruturada em três atos, porém senti que o primeiro ato é meio lento em relação aos outros que pegam um ritmo mais frenético. O leitor demora a entender aonde o autor deseja levar a narrativa. O que parecia era um grupo de personagens com objetivos distintos e desencontrados. Mas, a partir do segundo ato, quando a história se desenvolve mais, o autor dá alguns passos atrás e aborda as motivações dos personagens. O terceiro ato é muito veloz com as coisas acontecendo uma após a outra, quase como dominós caindo. Outro ponto que me deixou um pouco preocupado foi o aspecto da revisão. Há vários problemas espalhados pelo livro e ele merecia um cuidado maior.
"Hoje acordei me perguntando como saber se não estou encenando. Talvez eu esteja em uma peça; talvez eu seja apenas uma ilusão. Como ter certeza de se, em vez de mestre de marionetes, não somos títeres?"
A ira cega de Krulgar é o que vai mover a trama. É como uma narrativa de vingança em que existe uma lista de alvos a serem eliminados e o personagem precisa destruir um por um. Só que ao longo do caminho ele começa a se questionar sobre a validade disto. Sua promessa de vingança é colocada em xeque quando ele conhece Thalla. Ao longo de toda a narrativa o personagem que era para ser um animal selvagem demonstra sentimentos nobres. Por exemplo, ele e Khirk, o dhaenni, possuem uma relação quase de pai e filho. Quando as outras pessoas tratam Khirk como um escravo ou menos que um ser humano, Krulgar se sente atacado diretamente. Ou em outro momento em que ele poderia fugir para salvar a própria pele, ele reluta em fazê-lo para poder ajudar camponeses em necessidade. Só que toda a vez em que se vê confrontado com algum dos malfeitores de Liliah, sua mente regride àquela situação de violência extrema. Krulgar só viu o que o homem tem de pior, por esse motivo a sua ferocidade animal é uma reação quase infantil. A pureza da ferocidade absoluta. Desde o começo da narrativa percebemos que por mais que o leitor quisesse um rumo melhor a Krulgar, isso não seria possível. O guerreiro é o aríete que move a narrativa adiante; como uma lança atirada e que não teria como ser interrompida.
A situação dos dhaenni também é muito bem apresentada por Diego. Desde o começo os personagens são apresentados como criaturas dóceis que possuem estranhas habilidades derivadas do poder de suas canções. A maneira desumana como eles são tratados pelos homens é absurda. O que mais espanta é o quanto eles continuam dóceis mesmo diante das agressões mais absurdas que eles sofrem. No passado distante eles eram conhecidos como os altivos eldani, só que há muito eles perderam sua ferocidade. Essa relação de eldani - dhaenni me fez pensar imediatamente na existente entre parshemanos - parshendianos criados por Brandon Sanderson em sua série O Relato da Guerra das Tempestades. Percebi que havia alguma lacuna nessa história e ao longo da narrativa, mas ficaram muitas perguntas não respondidas. Mesmo que o autor tenha revelado alguns flashes disso no momento mais climático da história. No meio disso, temos Khirk, um fahinn, alguém que não possui mais o poder de cantar a Canção do Mundo. Os dhaenni cantam para produzir determinados efeitos curativos; já um fahinn, é um dhaenni amaldiçoado que não pode receber nenhum contato mais com seus iguais. Isso é motivo para Khirk possuir uma existência bastante sofrida e melancólica, tendo apenas o selvagem Krulgar como alguém capaz de mantê-lo vivo e com propósito. Parece haver mais mistérios em um fahinn, mas também não tivemos muitas respostas assim. Por outro lado, Evhin é alguém profundamente ligada a Thalla, mas por outros motivos. A gente não sabe a extensão do voto de Evhin com Thalla e sua mãe, Rhella, mas parece ser algo que ela leva tão a sério que pode pôr em risco sua própria vida.

A narrativa segue personagens traçando planos atrás de planos para conseguir alcançar seus objetivos. Mas, sabemos que planos são inúteis quando confrontados com as inconstâncias da prática. E ninguém sofre mais com isso como Thalla. Tendo a habilidade de navegar pelos sonhos, ela procurou manipular o maior número possível de peças em seu jogo de xadrez. Buscando colocar suas peças nos lugares certos, ela não conseguiu entender que pessoas não são peças e possuem vontade própria. Elas nem sempre obedecem aos nossos planos cuidadosamente postos. Pouco a pouco, Thalla vai vendo seus planos desmoronando, principalmente diante de pessoas instáveis como Krulgar ou Dhommas, que não podem ser facilmente lidos. Sem contar com o elemento adverso que é colocado em seu caminho, na figura do coen Ethron, um homem contratado para realizar um espetáculo teatral para o rei Thuron, mas que parece ter outros objetivos por trás. A personagem vai ficando cada vez mais desesperada à medida em que seus planos vão fracassando um por um.
"Você está vendo o Império aqui? Esse povo se governa há séculos; nenhum deles jamais viu o Imperador. Reis e nobres são tão distantes como deuses aqui. Estão todos no poleiro de cima, cagando nas aves de baixo. Nós somos apenas ratos no chão do pombal, mas um rato tem dentes e, vez ou outra, ainda pode devorar um pombo."
Estamos diante de um bom livro que inicia uma série a ser desenvolvida pelo autor. Começamos com uma ameaça de guerra e o subtítulo do livro aponta para uma possibilidade real desta se concretizar. Mesmo com os personagens lutando para evitar algo em grande escala acontecer, vamos nos deparando com os interesses e ambições particulares de cada um dos envolvidos. Logo no início da trama já desconfiamos que as coisas não vão dar certo. É uma boa leitura para os fãs de fantasia que certamente verão uma aventura sendo desenvolvida e personagens cativantes realizando ações não tão heroicas. Um prato cheio!


Ficha Técnica:
Nome: O Teatro da Ira
Autor: Diego Guerra
Editora: Draco
Número de Páginas: 360
Ano de Publicação: 2016
Link de compra:

Comments