Um velho conta a seus companheiros mais jovens a história de um mundo que se foi. De um mundo onde havia progresso, civilização e desigualdade. Quando uma praga terrível surgiu e fez a humanidade regredir drasticamente. Esta é a história do ocaso da humanidade.
Sinopse:
Uma doença misteriosa varreu a humanidade no início do século XXI, deixando poucos sobreviventes e uma sociedade reduzida à brutalidade. Nesse mundo devastado, um velho professor universitário conta para seus três netos as desventuras que viveu para escapar da peste, em meio a desertos e cidades mortas.
Escrito em 1912 e ilustrado por Gordon Grant, A Praga Escarlate é um livro pioneiro do gênero pós-apocalíptico, por um dos mais célebres escritores do século XX, autor de clássicos como O Chamado Selvagem e Caninos Brancos. Como um profeta, Jack London viaja mais de cem anos na história e traz à tona algumas das questões mais profundas da contemporaneidade: somos mesmo uma sociedade civilizada? Ou um bando de bárbaros camuflados por tecnologias e convenções sociais?
Esse é um livro bastante importante para o que vamos ver no século XX sobre narrativas pós-apocalípticas. Antes dele pouca coisa havia sido escrito no gênero e sempre com um viés mais otimista. Mesmo Mary Shelley com o seu O Último Homem (resenhado no link ao lado) ainda tem algum nível de esperança. E há até a manutenção da ideia de progresso tecnológico. Em A Praga Escarlate, Jack London não deixa margens para isso. É uma bela crítica ao modelo econômico então vigente, que era um capitalismo ainda em fase de aprendizado, com vários vícios que vão culminar na crise de 29, quase vinte anos depois. Para quem não conhece a fundo a biografia do autor, London vai ter contato com ideais marxistas no final de sua vida e se torna um crítico ferrenho dos rumos tomados pela sociedade da época. Com sua argúcia e sua experiência como alguém que esteve em contato com várias realidades durante suas viagens, London produz uma narrativa cruel e pungente, que continua extremamente atual nos dias de hoje. O resultado é desconcertante para quem faz parte do sistema que ele critica com tamanha ferocidade e faz a humanidade retornar a tempos mais simples.
Essa é a narrativa do fim dos tempos. Um velho caça junto de seus companheiros, mas sua idade já não ajuda mais a acompanhar o ritmo necessário em um mundo tão diferente do que ele conheceu. Um mundo de feras e de homens-feras que se tornaram selvagens para poderem sobreviver a uma nova realidade. Os agrupamentos humanos são poucos e esparsos e os animais voltaram à sua selvageria anterior à presença humana. Os garotos com quem ele vive o consideram um tolo desnecessário, mas um deles gostaria de ouvir suas histórias para entender o que ele poderia aproveitar do passado. É então que o velho descreve o que foram os últimos anos da humanidade em seu ápice. Um mundo onde poucos dominavam pelo poder do dinheiro e muitos apenas sobreviviam sob seu jugo. Um mundo onde uma praga desconhecida varreu a humanidade do mapa e levou grandes cidades à ruína. Isso porque a praga escarlate foi o sopro que acabou com tudo e fez com que o planeta voltasse ao seu formato original.
Esse é um belo exemplo de um romance pós-apocalíptico. London está com uma escrita bem pontuada e as críticas sociais trasbordam das páginas. Só dar um destaque rápido para a minha edição, que não considero ser a melhor deste livro (acho a da Veneta com mais qualidade editorial), mas certamente a edição da Escotilha é bonita. Ela vem em uma edição vira-vira, dividindo espaço com outra história curta do autor, A Ravina toda de Ouro. A edição vem com páginas em papel especial, mais puxado para o brilhoso, com letras vermelhas na parte de A Praga Escarlate e douradas no outro romance. Tem uma Introdução falando sobre essa fase mais madura do autor, mas os textos de apoio estão no caderninho que acompanhava a caixa-surpresa onde vinha o livro. Não sei se a edição da Escotilha que foi vendida comercialmente tem isso. A tradução de Alice Klesck está competente, com o texto meio truncado em alguns momentos, mas no geral dá para entender numa boa. O material é em capa dura e o miolo interno possui algumas ilustrações de época. Há toda uma brincadeira com o tamanho das fontes o que dá um charme para a edição. Para uma edição que se propõe ser exclusiva aos assinantes, está muito boa.
Esse certamente não é o Jack London de Caninos Brancos ou de O Lobo e o Mar. Apesar de que suas características como escritor estão largamente presentes na obra. É um estilo de escrita mais reflexivo, com muitos momentos de fluxo de consciência, apesar de se tratar de um personagem contando uma história. Como o velho se esforça para se lembrar dos velhos tempos, ele tergiversa em várias oportunidades, deixando a gente maluco em alguns momentos. Mas, faz parte da maneira como o personagem busca reativar suas lembranças. O primeiro momento da trama se preocupa em apresentar essa nova realidade para o leitor, então ele usa e abusa das descrições, mais gerais do que específicas, dando a impressão de que a narrativa poderia acontecer em qualquer lugar do planeta (apesar de eventualmente ele localizar a trama no interior dos EUA). Em alguns momentos, a trama me fez pensar em A Estrada, do Cormac McCarthy. A amplitude do cenário, a desesperança de que o mundo poderia voltar ao normal, os personagens que se bestializam.
London faz uma crítica ferrenha ao modelo capitalista. Nesse mundo novo, um homem que era um burguês endinheirado não tem vez. Ele é apenas um estorvo, um objeto decorativo de um outro tempo que serve para ser achincalhado pelos seus pares. Muitas das coisas que ele valoriza como importantes a um indivíduo não servem a essa nova configuração social. London nos mostra um outro tipo de revolução. Baseado nos ideais revolucionários franceses, quando a história foi vista de baixo e os camponeses tomaram o lugar das elites, aqui a necessidade de sobreviver fez com que a população que era oprimida tomasse por meio da força o seu lugar. Não havia como as elites se esconderem de algo que não tinha rosto. Quando o mundo implodiu, aqueles que viviam na bonança não sabiam o que fazer diante de um mundo tão diferente. Talvez o melhor exemplo dessa revolução pós-apocalíptica esteja presente na mulher de um dos homens mais ricos do mundo sendo subjugada por um homem que foi oprimido por toda a sua vida e que agora se tornou o líder violento que essa sociedade precisa. Ele provoca o velho a lhe tomar a mulher, a quem ele idolatra como o símbolo da princesa de uma sociedade que já se foi. Como a burguesia covarde de outrora, o velho apenas recua e aceita as humilhações. Pior... foge quando pode.
Valores como educação e respeito não são compreendidas aqui. Isso porque essa sociedade possui outras características que a balizam. O velho não é respeitado pelos seus pares. Isso acontece porque ele é inferior e não foi capaz de criar uma casca dura que essa nova realidade exigia. Representa apenas os ícones de uma civilização passada. Ele era um intelectual, com conhecimento amplo sobre sua área de estudo. Só que sua área de nada serve aqui. O que realmente importaria para resgatar a humanidade, como conhecimentos técnicos, ele não sabe. Era apenas um literato, alguém que refletia sobre sua realidade. Mas, essa sociedade precisava reaprender a construir arranha-céus, a desenvolver tecnologias de defesa... e ele nada sabe disso. Seu conhecimento é engessado, pertence a uma outra torre de marfim que não teve contato com o mundo real. Aqui, ele só serve para ser feito de bobo por aqueles que são capazes de realizar as coisas. É uma crítica aos intelectuais que não contribuem com o progresso da humanidade; presos em suas Academias e vendo a desigualdade social aumentar cada vez mais.
Mas, preciso pontuar uma crítica a London. Ao mesmo tempo em que é bastante progressista, algumas coisas sugerem um contato com teorias eugenistas que incomodam o leitor lá para o final da narrativa. Ele sugere a superioridade de uma raça, promove a violência social como solução para tudo. É um ideal anárquico gritante em suas páginas. Nada de governo; nada de instituições. São líderes tribais que supervisionam uma sociedade primitiva e que se preocupa com a sobrevivência de si e de seus (poucos) pares. Não se trata de uma narrativa de teor irônico ou satírico; London fala sério e repete em vários momentos suas posições. Isso é externado pelo líder dos garotos que, apesar de desejar aprender um pouco com o velho, é um indivíduo deste novo mundo. Se London tivesse vivido um pouco mais, como ele teria desenvolvido suas ideias? É perceptível como o autor estava enfadado com os rumos tomados pela sociedade. Para alguém que escrevia sobre o mundo natural e como precisamos alcançar nossas essências em contato com o selvagem, ver para onde estávamos indo deve tê-lo chocado. Lembrando que A Praga Escarlate foi publicada em 1912, dois anos antes da Primeira Guerra Mundial. Os anos que antecederam o conflito foram tensos e havia uma noção de que seria preciso uma guerra para acabar com todas as guerras para resolver os conflitos então existentes. Era um sentimento de desespero que se acumulava dia após dia.
Uma boa leitura, vale pelo impacto histórico que London teve no gênero. Sei que é daqueles materiais que não vão agradar a todos pelo teor do que está escrito. Para mim, é um material mais de ideias do que de uma narrativa propriamente dita. Me ajudou a compreender melhor o período em que London viveu e como autores que se arvoraram da temática aproveitaram as ideias deste clássico e a tornaram suas. Não se trata de um material cinco estrelas porque a leitura me incomodou um pouco com a quantidade de vezes em que o narrador se perde em sua narrativa. Isso sempre me tirava do prumo e eu precisava voltar um pouco para não perder o fio da meada. Mas, recomendo bastante até porque é uma leitura rápida e importante em nossa formação como leitor.
Ficha Técnica:
Nome: A Praga Escarlate
Autor: Jack London
Editora: Escotilha NS
Tradutora: Alice Klesck
Número de Páginas: 144
Ano de Publicação: 2019
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