Resenha: "Marcha para a Morte" de Shigeru Mizuki
- Paulo Vinicius
- 31 de mar. de 2022
- 7 min de leitura
Acompanhamos uma companhia estacionada, durante a Segunda Guerra, na Ilha de Nova Bretanha. O perigoso cotidiano, a banalidade da morte e os questionamentos sobre os motivos da guerra se abatem sobre soldados que só querem voltar para casa. Mas, um ataque kamikaze frustrado vai fazer com que aos soldados seja dada uma ordem impossível de cumprir: morram pelo bem da pátria.

Sinopse:
No final da Segunda Grande Guerra, os soldados de uma companhia da infantaria japonesa são ordenados a morrer em nome do seu país ou serão executados ao regressar da batalha. Marcha para a Morte! relata as consequências devastadoras deste episódio para o moral dos soldados. A narrativa poderosa e pungente traduz de forma sensível as circunstâncias difíceis e caóticas, em uma declaração de Mizuki contra a futilidade da guerra e a estupidez da mentalidade militar.
Quadrinhos sobre a Segunda Guerra Mundial sempre conseguem nos emocionar ou impactar de alguma forma. Foi o primeiro grande conflito mundial em que civis foram tão vitimados pelos efeitos colaterais da guerra do que os combatentes. Mas, a História é meio cruel com aqueles que foram derrotados. Como já se dizia inúmeras vezes, a narrativa histórica é sempre contada pelos vencedores. Por essa razão temos uma quantidade menor de materiais falando sobre o ponto de vista dos derrotados. Menos ainda do pano de fundo oriental em que o Japão expandia seus tentáculos pelo Extremo Oriente até ser detido pelos americanos. O que faz de Marcha para a Morte tão impactante não apenas é mostrar o quanto os japoneses não entendiam direito o que estava acontecendo ou por que estavam lutando, mas todo um questionamento sobre a cultura de guerra japonesa. E isso vindo de alguém que esteve no conflito, Shigeru Mizuki.
A narrativa fala de uma companhia de soldados japoneses estacionada na Ilha de Nova Bretanha, uma região que foi disputada entre EUA e Japão durante a Segunda Guerra. Os soldados fazem parte de um acampamento na região de Bien, um ponto estratégico que permite enxergar a chegada e a saída de tropas americanas. A partir de então o que vamos ver será a vida destes soldados em meio a um conflito mundial. O tédio, a desesperança, a banalidade da morte. Alguns membros da companhia irão morrer de formas estúpidas, seja por uma bala perdida ou por algum acontecimento tolo. Quando as coisas pareciam estar perdidas com a chegada de reforços americanos cercando uma colina atrás do acampamento, o chefe de companhia decide realizar um ataque kamikaze contra os americanos. Após todos fazerem as pazes com a eventualidade da morte, eles se dirigem até o local, mas por conta de um acontecimento inesperado, uma parte da companhia acaba sobrevivendo. E isso coloca os comandantes dos batalhões na ilha em um dilema: se o ataque era kamikaze, todos deveriam ter morrido. Aqueles que sobreviveram devem morrer, caso contrário causarão a desmoralização do exército japonês. Será que os soldados aceitarão morrer pelo simples fato de não terem morrido antes?
O roteiro de Mizuki é absolutamente brutal em sua abordagem. O que eu acho mais curioso é como ele faz isso com um humor negro que incomoda o leitor. Quem me vê falando sobre a narrativa dessa forma, imagina uma história terrível com sangue e tripas se espalhando por toda a parte. Mas não é isso o que acontece. Lendo Marcha para a Morte eu me senti lendo uma tirinha do Recruta Zero, com os soldados tendo umas tiradas absolutamente sem noção e as situações de morte sendo tão estúpidas que chegam a ser engraçadas. Só que é aquele engraçado de você se sentir culpado por estar rindo da desgraça alheia. Tem uma cena onde alguns soldados são incumbidos de irem pescar para o jantar da tropa. Um dos soldados está com tanta fome (eles estavam sem mantimentos há algumas semanas) que ele enfia o peixe inteiro na boca. Só que ele acaba morto porque as escamas do peixe cortaram sua goela. É uma morte bizarra, mas totalmente possível de acontecer. É um roteiro que se debruça fortemente a respeito de um discurso antiguerra, te mostrando uma realidade nua e crua através do humor.

A arte de Mizuki é um absurdo de perfeita. Vocês vão estranhar eu falar disso porque os personagens são extremamente caricatos, com rostos feios, distorcidos e expressões exageradas. Mas, façamos um exercício: esqueçam os personagens. Prestem atenção no fundo. Veem as palmeiras do primeiro quadro? Percebam o detalhe de cada folha da palmeira, onde Mizuki se preocupa com a curvatura e o tamanho das folhas, com a proporção das copas das árvores e com um visual em perspectiva do caminho formado por elas. Percebam as casas feitas de palha? Notaram que a palha tem uma textura? Mizuki faz o mesmo exercício que fez quando escreveu Nonnonba: criou personagens caricatos e estranhos e todo o resto do quadro super detalhado. Fico pensando no grau de dificuldade que é orientar sua própria criatividade a perceber essa diferenciação entre camadas de desenho. Esse exercício é inteiramente proposital da parte do autor, que faz isso em outras obras.
Outro detalhe é a expressividade dos personagens. Ao adotar esse visual caricato, ele faz com que os personagens sejam exagerados em sua forma de reagir às situações. Por exemplo, em um dado momento temos um capítulo em que os soldados reclamam das agressões sofridas por eles. Seus superiores tinham por hábito dar tapas na cara deles por qualquer motivo. A cena deles levando um tapa parece saída de um episódio de O Gordo e o Magro ou de um filme do Chaplin. Algo como se fosse uma comédia pastelão. Ou outro momento quando um dos soldados é vítima de uma granada acidental que o mata. O personagem aparece com sua cabeça saltando do corpo como se fosse um foguete. Mas, de uma forma tão bizarra que se assemelha a uma comédia. O emprego da arte para ressaltar a violência extrema da guerra só que por outro caminho é chocante. Talvez na primeira ou na segunda vez eu tenha achado graça do absurdo que ela era. Depois disso só consegui ficar chocado. Isso porque a filosofia colocada por Mizuki nos mostra a guerra como algo tolo e estúpido. E essa estupidez está presente até na arte que replica isso. Quando a morte passa a ser comum e perdemos o contato com a preciosidade da vida.
A extrema disciplina japonesa é enxergada de outra forma pelo roteiro da história. Preciso dizer antes que esse mangá é baseado em fatos reais. Mizuki de fato participou dessa companhia apesar dos fatos acontecerem de uma forma ligeiramente diferente. O autor perdeu um braço durante essa campanha japonesa. Não é à toa que ele tem uma visão privilegiada sobre os conflitos realizados entre potências. O cotidiano dos soldados era duro e marcado por ausências. É curioso vermos que a única presença de mulheres na história é quando os soldados são ordenados a irem visitar mulheres da vida. Mesmo estas não conseguiam atender a todos os homens que tinham necessidades não apenas sexuais, mas de carinho propriamente dito. É curioso também porque a canção das prostitutas se torna o hino da companhia. Reclamando de seu ofício, da dureza da vida e da falta de compreensão sobre sua função na guerra. Procurar entender o que está acontecendo não é tarefa do soldado, que é menos importante que um cavalo na opinião dos superiores da companhia. Frequentemente eles eram colocados em missões sem sentido, em combates em que eles não compreendiam o que estavam fazendo. Sem falar na falta de mantimentos.

O moral deles era muito baixo e isso se refletia dia após dia de campanha. Um dos soldados escondia uma plantação secreta de batatas para ter o que comer. O oficial médico lutava contra a malária que se espalhava entre os soldados. Mas, não havia remédio suficiente para todos. A tropa como um todo não recebia ordens claras das outras companhias que se encontravam em outras regiões da ilha. Morrer era algo tão comum que no mesmo dia era possível ter dois ou três comandantes diferentes. Quando as pessoas deixam de ser pessoas e se transformam em números. Algo semelhante ao que aconteceu no Brasil em uma guerra muito diferente: a guerra da pandemia de covid-19. Os soldados rasos não sabem mais sequer como está seu país: se eles estão ganhando, se foram derrotados. Isso cria uma desconexão total com a realidade tornando a vida um desespero constante. Alguns dos soldados estão tão desesperados que vemos suicídios acontecendo em certos momentos. Os comandantes precisam criar atividades tão cansativas e tediosas que os soldados não teriam tempo de pensar em outras coisas.
Falamos muito sobre o instituto do seppuku e da função do kamikaze na cultura japonesa. Até pessoas apontando como isso representaria a lealdade extrema ao seu país. Só que ao ler Marcha para a Morte tenho certeza de que vocês irão mudar de ideia. Mizuki critica o ato de atirar sua vida fora por alguém que você não conhece. Deixar para trás sua família, seus filhos e tantas outras coisas que alguém ama. Há todo um questionamento sobre os motivos que levam alguém a realizar um ataque suicida. Tem um diálogo ótimo lá pelo final do mangá em que o oficial médico segue até a outra base para pedir pela vida daqueles que não morreram durante o ataque suicida. Ele busca a todo custo tentar entender se essa forma de ataque era realmente necessária e se não haveria outra forma de obter uma vitória honrosa. Algo que não envolvesse o sacrifício de vidas. Todo o instituto da honra e da glória cai por terra quando a vida deixa de ser importante para atender a interesses.
Marcha para a Morte é uma jornada brutal a um campo de batalha marcado pela morte e pela desonra. Onde soldados são menos importantes que insetos. Onde não há a compreensão sobre o que está sendo feito com as vidas e destinos de pessoas que estavam ali representando seu país e suas famílias. E quando tudo o que se tem a entregar às famílias daqueles que morreram são cinzas e morte. Tudo isso feito com uma maestria por um gênio dos mangás, alguém que esteve envolvido nos esforços de guerra e conhece de perto o terror da desesperança. Um mangá poderoso e um dos melhores títulos do selo Tsuru.


Ficha Técnica:
Nome: Marcha para a Morte!
Autor: Shigeru Mizuki
Editora: Devir
Gênero: Guerra
Tradutor: Arnaldo Oka
Número de Páginas: 368
Ano de Publicação: 2018
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