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Resenha: "Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino" (Parte 1)

Esta é a primeira parte da nossa resenha dos contos fantásticos do século XIX cuja organização foi feita pelo autor Ítalo Calvino.

A coletânea possui 26 contos divididos em duas fases: O Fantástico Visionário e O Fantástico Cotidiano. Tem um artigo muito bom do Ítalo Calvino no prefácio do livro em que ele expõe como ele enxerga o conceito do fantástico e trabalha nas várias abordagens feitas sobre o tema no século XX. Ele faz também algumas justificativas sobre algumas de suas escolhas que são bem curiosas em relação a alguns contos e narrativas que seriam mais óbvias do que outras.


Nesta primeira parte temos os seguintes contos:


1 - "História do Demoníaco Pacheco" (de Jon Potocki) - 1805

2 - "Sortilégio de Outono" (de Joseph von Eichendorff) - 1808-1809

3 - "O Homem de Areia" (de E.T.A. Hoffman) - 1817

4 - "A História de Willie, o Vagabundo" (de Walter Scott) - 1824

5 - "O Elixir da Longa Vida" (de Honoré de Balzac) - 1830

6 - "O Olho sem Pálpebra" (de Philarète Chasles) - 1832


Vou tentar expor alguns temas e estilos nas resenhas que se seguem.


1 - "História do Demoníaco Pachecho"


Autor: Jan Potocki Avaliação:

Publicado em 1805

Traduzido por Rosa Freire D'Aguiar


Esta é uma das histórias que compõem o Manuscrito Encontrado em Saragoça. Nela vemos o protagonista despertando em uma situação bem lúgubre ao lado de dois enforcados. Ele não se lembra muito o que aconteceu (apenas tem alguns vislumbres que ele prefere não contar) e segue em viagem até ser hospedado por um ermitão em uma cabana próxima a uma capela. Lá o protagonista se depara com Pachecho, um homem que está tendo estranhas visões com espíritos malignos. O ermitão pede que ele conte sua história a nosso protagonista.


Se formos pensar por nossos parâmetros hoje, este é um conto que tem muitos elementos de terror: espíritos malignos, maldições. E vamos poder acompanhar em outros contos desta coletânea que a fantasia puxava muito para este lado mais assustador do que para o que conhecemos hoje. A escrita de Potocki é bastante figurativa, embora possua muitos traços do que vamos ver em livros como O Retrato de Dorian Grey e Os Sofrimentos do Jovem Werther. É aquele personagem sempre muito melancólico e analisando sua vida e sua existência com sofrimento. Talvez seja uma escrita que não agrade quem espera algo diferente. Por ser um clássico, é preciso observar com os olhos do período. E Potocki quebra com vários clichês da época, como por exemplo, na quebra de expectativa. O final da narrativa deve muito mais a escritos posteriores como os de Poe e Lovecraft do que a seus contemporâneos.


O tema deste conto é o do amor proibido e flerta um pouco com o "incesto" (não sei se falo exatamente em incesto já que a mulher é a madrasta). Potocki brinca com as concepções conservadoras da sociedade e coloca o personagem em uma situação que transborda sensualidade. Temos a mulher sendo apresentada como lasciva e encantando o homem para o caminho do pecado. Por conta de suas ações, Pacheco passa a ser amaldiçoado por ter quebrado com os costumes de sua época. O fantástico aparece na forma de uma punição por ele ter sido um transgressor.


Achei a escrita de Potocki curiosa em relação a outras coisas que eu li da época, mas não é exatamente um conto que tenha me agradado como leitor. É uma daquelas histórias que eu certamente vá me esquecer daqui a algum tempo. Mas, vale o registro do autor que é um símbolo do período.


2 - "Sortilégio de outono"


Autor: Joseph von Eichendorff Avaliação:

Publicado em 1808-1809

Traduzido por José Marcos Macedo


Esta é uma narrativa com um tom um pouco diferente em relação ao anterior, mas mantendo um pouco da atmosfera lúgubre típica. Estamos ao lado de um cavaleiro Ubaldo que encontra um estranho ao se encontrar sobre algumas montanhas. Ele abriga o estranho e este passa a segui-lo, ainda sem entender muito onde se encontra ou o paradeiro de seus familiares. Quando Ubaldo chega a algumas ruínas junto do estranho, ele revela pouco a pouco sua narrativa à medida em que suas memórias vão ficando mais claras.


Eichendorff emprega uma estética mais romântica, pegando bastante de influências passadas como cancioneiros e descrições de amores platônicos. Em relação à narrativa anterior, é uma história que me agrada mais, porém eu a achei demasiado longa. As descrições do autor são bem cansativas e em alguns momentos enfadonhas, não servindo muito para os propósitos do plot que está sendo desvelado. Em qualidade artística é, sem dúvida, uma história muito bem trabalhadas com as palavras sendo encadeadas com muito esmero. Confesso que achei o final meio estranho e tive que reler duas vezes a passagem para entender o que realmente se sucedeu.


Temos uma narrativa que se foca na temática do amor e nas loucuras que fazemos por ele. O estranho se apaixona por uma mulher perdidamente, mas seu amor acaba fazendo com que ele busque se livrar de todos os empecilhos que se colocam em sua frente para a realização do mesmo. O elemento do fantástico acontece muito por causa de um misto de culpa e remorso que ele sente. Talvez possamos colocar a passagem de tempo do conto como uma forma de seu coração cicatrizar os machucados provenientes da escolha que ele fez. Mas, quando ele precisa lidar com as consequências emocionais do que fez, ele não suporta. Mais uma vez, é um reflexo de um personagem tipicamente romântico.

3 - "O Homem de Areia"


Autor: E.T.A. Hoffman Avaliação:

Publicado em 1817

Traduzido por Luis A. de Araújo


Um clássico da literatura fantástica do século XIX trazido por um autor que se tornou famoso por alguns dos melhores contos de horror do período. E.T.A. Hoffman é um mestre na arte de criar tensão, de fazer o personagem ser instável e desequilibrado. É muito curioso perceber como o autor manipula as cordas que movem Natanael e o coloca em situações absurdas, fazendo despertar nele o véu da insanidade. O Homem de Areia só peca por colocar a narrativa em duas situações distintas e apenas linkadas pela figura de Coppelius/Coppola.


Uma vez vi uma autora comentar que desenvolver personagens é como brincar de ventriloquismo. O autor é um mestre manipulador e ele precisa fazer os personagens fazerem o que eles querem, sem parecer ser forçado demais. As ações não precisam ser naturais, elas precisam parecer naturais. É isso o que Hoffman consegue fazer com sucesso na narrativa. Temos um homem chamado Natanael que quando era pequeno conheceu a história do Homem de Areia: alguém que vem atrás de meninos desobedientes e jogaria areia em seus olhos para levá-los ao mundo dos sonhos. O menino, assustado, criou a figura de Coppola, um advogado de seu pai que teria intenções malignas e estaria ali para desgraçar a todos e jogar areia em seus olhos. O jovem menino culpou a suposta figura pela morte de seu pai. Mais tarde, ele transportou a figura de Coppola para um vendedor de barômetros chamado Coppelius. Este estaria desgraçando a vida de seu futuro cunhado e de sua prometida. Coppelius teria se aliado a um vizinho de Natanael, Spallanzani, com quem estaria realizando seus planos. Não quero comentar além disso, mas basta sabermos que estas três figuras representam toda a instabilidade do personagem.


É possível fazer tantas análises deste conto que daria para umas três ou quatro matérias. E essa é a maior riqueza de Hoffman ao nos dar espaço para tantas interpretações. Vou escolher uma e que tem mais a ver com o aspecto do fantástico. Para mim, este fantástico está na própria mente de Natanael ao reforçar suas ilusões com elementos reais. Ele imagina uma criatura maléfica responsável por todos os seus problemas (quando na verdade ele mesmo é fonte de vários deles). Quando criança é normal acreditarmos na lenda do boogeyman (ou bicho papão) e até é reforçado por nossos pais quando somos desobedientes. Mas, o fato é que Natanael passou a empregar essa figura como uma espécie de justificativa por ele não conseguir tocar a sua vida adiante. Seja ao se resolver ser o dono de suas propriedades e tomar as rédeas dos negócios de seu pai ou quando se interessa por outra pessoa. No fundo é ele próprio quem causa isso. Mas, ele cria justificativas fúteis para isto e a mentira se torna muito real a partir do momento em que ele acredita na ilusão.


Quando tudo explode mais tarde, sua mente não é mais capaz de discernir o que é real e o que é ilusão. O fantástico se tornou concreto. Hoffman é um mestre em conduzir o personagem àquele momento final nos arbustos, o que torna a cena poderosa e muito coerente. O Homem de Areia é um belo conto que merece ser lido com bastante atenção pelos leitores. Um exemplo clássico de como guiar personagens. Fico imaginando autores que deixam seus personagens fazerem o que quiserem e perdem o rumo da narrativa. Aqui está um ótimo exercício para perceber como é possível guiar a história para onde você quer sem parecer artificial.


4 - "A história de Willie, o vagabundo"


Autor: Walter Scott Avaliação:

Publicado em 1824

Traduzido por Ricardo Lísias


Histórias sobre o outro lado ou sobre o demônio eram bem comuns até o final do século XIX. A gente ainda está em uma sociedade marcada por valores católicos e até bastante conservadora. Por isso, a presença da sensualidade, do erotismo, do pacto fáustico como elementos de transgressão. Walter Scott é um dos autores que mexem um pouco com esse caldeirão ao nos introduzir um personagem virtuoso que precisa passar por provações para manter seu status. A narrativa é repleta de pequenos simbolismos oriundos de lendas locais como o apito para chamar o sobrenatural, o não tocar em nada do outro lado, o chamado do demônio. Tudo isso é trabalhado de forma muito coerente pelo autor que apresenta uma narrativa simples porém eficiente.


Não vou adentrar na discussão sobre o que eram os whigs e os torys porque acho de pouco valor para o contexto geral que a gente quer discutir. Basta entender que são posturas opostas em relação ao que se entendia por política na época: de um lado os whigs representavam uma postura mais liberal e voltada para os interesses da burguesia inglesa no século XVII enquanto que os torys eram os conservadores, aqueles que desejavam a manutenção dos privilégios da nobreza e do clero. Era claramente uma disputa pela manutenção ou não do Antigo Regime (algo que mais tarde redundará no movimento iluminista e na Revolução Francesa). Estou sendo bem simplista na explicação e existem muito mais detalhes envolvidos, mas para o que pretendemos, isto já basta.


O protagonista Steene é um vassalo do senhor feudal local. Steene é uma espécie de músico (foi o que deu para entender a partir do conto) e ele precisa pagar os seus impostos ao seu senhor em dia (provavelmente algum direito relacionado a ocupar as terras de seu senhor). O conde Redgauntlet subitamente morre quando Steene tinha ido pagar a sua taxa anual. No meio de toda a comoção o dinheiro pago pelo personagem acaba desaparecendo. O herdeiro, SIr John, exige do personagem que ele pague novamente já que não existem mais testemunhas de que ele teria feito o pagamento de suas dívidas. É aí que ele tem uma experiência sobrenatural onde ele segue ao mundo inferior para pegar o seu recibo e descobrir aonde o dinheiro foi parar.


É uma narrativa com vários pequenos detalhes como, por exemplo, a festa que acontece no submundo. Me parece uma festa saída da mente tortuosa de Dante Alighieiri ou de Bocaccio, com personagens nefandos agindo em uma celebração cadavérica. Todos os homens malignos estão ali presentes ao cargo de suas paixões e anseios pecaminosos. Durante sua estadia no submundo, Steene se depara com todo o horror da sociedade do Antigo Regime. É aí que ele precisa manter sua virtude para conseguir retornar em segurança ao mundo dos vivos. Caso contrário, o demônio virá coletar sua alma.


A história é contada pelo neto do personagem que procura ressaltar demais as virtudes de seu avô a ponto de ficarmos meio desconfiados. Mas, aparentemente isso assim se dava. Alguns elementos do folclore europeu estão presentes, mas vou destacar um em especial: a passagem para o submundo é aberta em uma floresta sombria onde o véu dos mundos é fino. Podemos especular sobre quem é a entidade que abre a passagem para Steene. Walter Scott tem uma escrita muito boa, apesar de em alguns momentos ela parecer um pouco cansativa. De qualquer forma é uma narrativa que permite ao leitor conhecer algumas das superstições e lendas típicas do século XVII.

5 - "O Elixir da Longa Vida"


Autor: Honoré de Balzac Avaliação:

Publicado originalmente em 1830

Traduzido por Rosa Freire D'Aguiar


A imortalidade volta à baila em mais um conto da coletânea. Percebam que esse é um tema recorrente no século XIX (O Retrato de Dorian Grey e Frankenstein são outros dois bons exemplos). Mas, ao mesmo tempo há uma percepção de que a imortalidade entra em choque com o que é natural, no sentido da criação divina. Discute-se muito o que é ético ou não, no sentido de seguir uma boa compreensão dos ensinamentos divinos. Mas, na contracorrente, temos uma percepção cada vez maior sobre uma sociedade decadente e que vive de aparências e máscaras sociais. É isso o que Balzac nos traz neste conto repleto de alegorias e críticas bem pertinentes e que refletem o clima da época.


Neste conto temos a história de Don Juan Belvidero, um jovem herdeiro rico e que passa sua vida em extravagâncias e mulheres. Seu cotidiano reflete sua inépcia diante da sociedade e o quanto ele extorque dela. Seu pai é um homem bom e honesto, mas busca algum remédio que possa prolongar sua vida. No início da história, ele está às portas da morte e pede a seu filho que molhe seu corpo com um unguento especial que faria ressuscitar o seu corpo. Seu filho acaba molhando os olhos de seu pai com um pouco de unguento e é aí que ele tem uma visão aterradora.


Após esta situação, vemos dom Don Juan muda completamente a sua maneira de encarar o mundo. É como se ele abrisse os olhos para uma outra existência. A narrativa trata do antagonismo entre pureza e devassidão. A sua exploração sobre a sociedade passa por esse ponto onde ele questiona o que o homem tem de puro. Seus instintos primitivos tomam conta de suas vontades e quando ele tem seu filho passa por uma situação semelhante à de seu pai. O final na igreja onde acontece aquela cena tétrica é a culminância da filosofia de Don Juan. É o quanto ele despreza o ser humano e o considera um ser mais decadente do que abençoado.


Apenas achei que o conto perde parte de seu fôlego na metade da narrativa por Balzac acabar abraçando temas demais e não se focando necessariamente no que importava: a questão religiosa aliada à crítica social. Ele mescla alquimia com uma Ferrara tomada pelos interesses escusos de uma nobreza hedonista. Nem precisava ter dado tanta importância ao filho. Bastava alguém molhar o seu corpo com o mesmo unguento para provocar aquela cena final. Mas, em todo caso, é um conto muito bom com uma estética narrativa fora do comum. Muito recomendado a todos.


6 - "O Olho sem Pálpebra"


Autor: Philarète Chasles Avaliação:

Publicado originalmente em 1832

Traduzido por Rosa Freire D'Aguiar


Histórias que exploram tradições são sempre interessantes. Eu fiquei surpreso que a história que mais me agradou dentre estas seis iniciais foi a mais parada de todas. Uma espécie de narrativa sobre o cotidiano de um grupo de escoceses comemorando o Halloween. Temos pessoas festejando, um homem ainda de luto por sua esposa, e espíritos da floresta. Aliás, espíritos zombeteiros da floresta. E é aí que a história fica um pouco mais sombria ao apresentar a estranha relação entre os seres humanos e os espíritos.


Jock Muirland é um homem ainda sofrendo pela perda recente de Tuilzie. Ela era o grande amor de sua vida. O escocês jurou a si mesmo que jamais se casaria novamente. Durante a festa de Halloween, seus convivas tentam animá-lo e ele parece corresponder e até brincar. Quando a festa se aprofunda na noite, os espíritos da floresta vem a esse mundo para fazer suas travessuras. Muirland desperta de manhã estando casado com uma linda mulher, mas que somente ele consegue ver que ela não tem pálpebras. Esta bela mulher é extremamente ciumenta e não dorme nunca, estando sempre de olho no que o protagonista está fazendo.


No começo da história, descobrimos que Muirland era um homem abusivo. Tinha ciúmes extremos de Tuilzie, proibindo-a do contato com outras pessoas de sua vila e chegando a deixá-la com marcas de agressões. As circunstâncias nas quais sua esposa falece são bem estranhas e não muito claras para nós (ela teria ficado doente... de que, não sabemos). Então, o que ele acaba sofrendo depois com o espírito é em parte uma espécie de "justiça poética". Mesmo com todos os detalhes mórbidos vemos que o agressor se torna um agredido e ele não tem mais paz de espírito. Mesmo se distanciando de tudo e de todos, os erros de seu passado o perseguem aonde quer que ele vá. Talvez essa seja uma das maiores mensagens que o autor passa através de sua história: nunca nos livramos completamente de nossos erros. Eles sempre voltam para nos assombrar.


Ao mesmo tempo uma outra mensagem está subjacente na narrativa: o de caminhar em frente. De nada adianta remoermos aquilo que se sucedeu. As tragédias acontecem e não importa o quanto a gente tente evitá-las, elas só podem nos fazer seguir em frente. Devemos sim ficar de luto por aqueles que nos deixam para trás. A vida não pára. É isso o que os convivas de Muirland estão tentando a dizer a ele durante as festividades. Com as brincadeiras sobre uma nova esposa, com as superstições e os espíritos.


Chasles consegue nos entregar uma narrativa muito boa, repleta em informações sobre o folclore escocês. A tradução ajudou demais a compreender o que está sendo colocado na narrativa e em nenhum momento me senti perdido. Não é uma daquelas histórias que vão agradar a todos principalmente pelo ritmo constante e meio parado. É mais uma história de costumes do que alguma coisa com uma narrativa principal ao findo. Mesmo assim, eu achei agradável e me divertiu bastante.

Ficha Técnica:


Nome: Contos Fantásticos do Século XIX

Organizado por Ítalo Calvino

Editora: Companhia das Letras

Gênero: Fantasia

Tradutor: ver em cada conto

Número de Páginas: 520

Ano de Publicação: 2004


Outras partes da resenha:


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*Material enviado em parceria com a editora Companhia das Letras





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