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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "A Sereia da Floresta" de Hiro Kawahara

Brissen é um ser marítimo que vive em um mundo repleto de seres diferentes uns dos outros. Quando uma doença dizima a população de seu mundo, ela faz um pacto com uns seres chamados de Abaias e renasce em outro corpo em nosso mundo. É quando ela conhece Kui, uma "bruxa" da floresta odiada por homens ignorantes da vila próxima.


Sinopse:


Para sobreviver, a última sereia aceita um acordo e se transforma em humana, com a condição de entregar seu futuro filho para criaturas obscuras.


Uma cientista e alquimista persa foge do seu país para salvar sua vida e se torna uma bruxa curandeira.


Seus destinos se cruzam em uma floresta durante a epidemia da Grande Peste, e deverão se transformar novamente para proteger aqueles que elas amam.






Uma coisa que aprendi com os quadrinhos do Hiro Kawahara é sempre esperar o inesperado. Já venho acompanhando o autor há bastante tempo (a única obra que ainda não li é Os Últimos Deuses) e posso afirmar que suas narrativas sempre quebram algum clichê. Não é diferente aqui com um trabalho bastante desafiador. Hiro nos coloca na pela de um ser bastante alienígena, no sentido de sentir e se expressar de uma forma completamente distinta da do ser humano. Quando tentamos colocar Brissen em um rótulo ou um conjunto de características, ela não se encaixa e reage de outra forma. Ao mesmo tempo, vemos uma época onde a incompreensão e a intolerância são a ordem do dia. E nem sempre o ser humano se revela capaz de ultrapassar esses obstáculos. Ou seja, assim como algumas outras obras do Kawahara, não é uma história que tem aquele final feliz e fofinho. E sempre deixa para trás aquela linha de reflexão no qual aprendemos alguma coisa.


A narrativa nos apresenta duas personagens: Brissen e Kui. Brissen é um ser marinho de outro mundo que tem sua vida feliz ao lado de seus companheiros e de outros seres bastante diferentes dos humanos. Mas, um dia uma estranha doença acaba com todas as espécies de seu mundo e somente ela fica para trás. Uns seres estranhos chamados Abaias oferecem uma alternativa a ela: morrer depois de vários dias de muita dor intensa ou aceitar ser transportada para um novo corpo em outro mundo e sem as memórias de sua vida pregressa. Ela aceita e vem parar no nosso mundo. Kui é uma mulher vinda do Oriente Médio que possui inúmeros conhecimentos médicos e botânicos. Algo que é fruto de suas viagens. Depois que ela embarcou em um navio saído da China, este sofreu um acidente e veio parar em uma Europa medieval atacada pela Peste Negra. Com os seus conhecimentos, ela tenta ajudar as pessoas do vilarejo próximo, só que ela passa a ser conhecida como uma bruxa e perseguida pela Inquisição. Kui se esconde todos os dias e sobrevive do que a floresta lhe dá. Um dia, ela encontra Brissen que, literalmente, cai do céu em cima dela.


A arte do Kawahara é bem bonita, com tons pasteis e um cenário que sempre busca refletir as emoções que ele deseja nos quadros. Seus personagens mesclam influências tanto ocidentais como orientais. Em momentos, os personagens terão traços que nos fazem lembrar da típica linha clara europeia enquanto em outros parecem saídos de um mangá japonês. Essa miscigenação artística produz um resultado incrível que vi poucas vezes nas HQs. Vivemos em um mundo globalizado em que todos nós temos acessos a quadrinhos vindos de várias partes do mundo. É óbvio que a tendência é surgir artistas como o Kawahara que mesclam elementos de diversas influências e criam sua própria identidade artística. A quadrinização é muito boa e ele emprega menos quadros por página variando entre 3 e 6. Até tem umas páginas com mais do que isso, mas não são comuns. Essa opção permite à sua arte se espalhar e respirar o que nos presenteia com belas composições. Algumas das páginas gostaria de emoldurar de tão belas. Acredito que nem todos os leitores vão curtir a arte dele por ser mais em uma linha de aquarela do que realista. A mim, me agrada bastante por causa das opções de colorização que ele faz.

Outro ponto da arte que vale mencionar é a economia de diálogos. Kawahara não é verborrágico, deixando as cenas falarem por si só. Isso produz um efeito interessante com várias páginas despossuídas de qualquer diálogo. Por falar nisso, o autor criou um idioma para as sereias do início do quadrinho. Não me lembro se ele mencionou se havia ou não como saber o que elas estavam conversando. Fica o alerta para alguns de vocês que essa é uma HQ voltada para maiores, tendo algumas cenas com bastante violência e sexo espalhadas pelas páginas. Me chamou a atenção o gore presente aqui, mas entendi o motivo disso. Um dos primeiros momentos mais bizarros é no começo da HQ em que a intenção é mostrar que realmente ninguém sobreviveu aquilo e o quanto a dor era insuportável para Brissen. Mais à frente a violência vem da intolerância dos homens quanto às personagens do quadrinho. Eles queriam destruir o pequeno refúgio que elas construíram para si. A violência estava na devastação desse espaço, no fim de um porto seguro. A HQ passa por três cores principais: o azul do oceano primevo onde Brissei vive, o preto da escuridão e do esconderijo onde Kui se esconde dos perseguidores e o vermelho do sangue que pode significar tanto a morte de indivíduos como o nascimento de uma nova vida.


A narrativa passa por um pacto fáustico feito pela protagonista. Em troca de ter sua dor cessada, ela precisa seguir para outro mundo. Em troca, seu primeiro filho precisa ser dado aos deuses que lhe deram essa nova chance. Claro que existe uma pegadinha no pacto feito, algo que só vamos entender mais adiante na história. Sendo uma história baseada em um pacto deste tipo, é óbvio que ela não vai acabar bem. Mas, Kawahara inova ao mesclar essa ideia com a filosofia do eterno retorno. E ele já chegou a abordar esse assunto em HQs como os vividos por Parzifal (Astolat e O Bestiário Particular de Parzifal). E Brissen realmente não compreende os objetivos destes seres tão diferentes do que ela conhece. Essa vai ser uma temática também recorrente nesta HQ. Fato é que Brissen se comporta de maneira instintiva, obedecendo a seus anseios, algo que Kui nem sempre é capaz de compreender. A grande questão é que ao ser a última de sua espécie, Brissen só consegue pensar em uma coisa e quando esta não acontece da forma como ela deseja, rapidamente procura reformular seus objetivos. Só que os seres humanos são frutos de suas paixões e sentimentos, e algo como um abandono não passa pela cabeça de Kui.


A relação entre as duas personagens é bastante complicada. Não podemos colocar Brissen no potinho do humano porque sua forma de ver o mundo é diferente da nossa. Até como ela expressa suas emoções e desejos passa por outros parâmetros. Então como saber o que é amor, afeto ou carinho? A forma como ela expressa representa esses sentimentos ou não? Kui é uma mulher que sobrevive, que se sente abandonada e traída por um mundo que sente medo dela. Ela encontra em um ser completamente diferente da espécie humana o amparo que ela tanto precisava. Só que controlar uma criatura que vive a partir de seus instintos pode ser mais desafiador do que parece. A incompreensão vai permear essa relação e determinadas situações trágicas vão se desdobrar muito porque as personagens não "falam a mesma língua". E digo isso em um sentido mais do interior de si mesmas do que na capacidade de falar ou não. Humanos acabam se apegando de forma até irracional a seus filhos, como se fossem partes de si mesmos. Já as espécies animais se baseiam em um instinto de sobrevivência e proliferação. As engrenagens que movem o seu raciocínio em relação a seus filhotes é diferente da nossa.


Ter situado a narrativa no período da Peste Negra foi bastante acertado da parte do autor. Estamos diante de uma Inquisição que mostra aquilo que o homem tem de pior. Diante de uma doença cruel como a peste bubônica, que se proliferava por conta da falta de saneamento básico, um malefício das grandes cidades, a iminente Igreja buscava alguém para culpar. Se tornou comum sair atrás de ciganos, judeus ou o que fosse diferente e considerá-los hereges. Kui é proveniente da região da antiga Pérsia e seu conhecimento sobre herbalismo e sua religião diferente do cristianismo a colocam como alvo primordial de homens ignorantes. Queimar em uma fogueira era uma maneira de um cristianismo decadente tentar encontrar a solução para um problema que eles não tinham como resolver através da oração. Para piorar, na aldeia próxima de onde Kui vive, o padre local deseja manter seu rebanho sob o seu jugo. Para tanto, eles usam toda e qualquer prática de tortura contra outros "hereges" para encontrar o paradeiro de Kui. Algumas cenas de tortura são bizarras, mas totalmente baseadas em relatos da época (sim, a parada da chaleira realmente existiu). Claro que a reação da Brissen foi totalmente desproporcional e baseada em um artifício de sobrevivência. Kui queria ficar em paz; Brissen queria não ser mais incomodada. São duas formas diferentes de resistir a um cerco montado por pessoas estúpidas.


A Sereia da Floresta é mais um bom trabalho de Kawahara e pega em alguns temas bem pesados dessa vez. Carregado com a ideia acerca da capacidade que temos de compreendermos uns aos outros, o autor nos coloca para refletir o quanto outras espécies de seres podem pensar o mundo e a realidade que os cerca. Nossa maneira de pensar pode ser muito estreita e distinta de outras. A arte continua muito boa, com muito espaço nos quadros para apresentar suas composições de cena. A mescla de um estilo ocidental e oriental produz uma arte bem particular que reflete os interesses e influências do autor. É uma história que merece a sua atenção.













Ficha Técnica:


Nome: A Sereia da Floresta

Autor: Hiro Kawahara

Editora: Independente

Número de Páginas: 144

Ano de Publicação: 2021



















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