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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "Viajantes do Abismo" de Nikelen Witter

Em um mundo atacado por constantes tempestades de areia, uma mulher vai deixar sua vida estática de lado para se empoderar e lutar contra aqueles que desejam fazer mal àqueles que ela ama. E tentar descobrir uma solução para o mal que assola seu mundo.



Sinopse:


Esta é a história de desertos que avançavam cobrindo cidades. A história de um mundo à beira da destruição. Da gente desse mundo, de sua alienação e da violenta guerra em que se perdeu. Esta é a história de uma mulher que fazia curas e de sua amiga, que dirigia um bordel. E de como elas enfrentaram tudo isso. Também é a história do tigre e da menina.Mas para conhecer todas elas, você terá de aceitar o chamado para olhar o futuro. E mergulhar no abismo.




Ventos que sopram destruição


Posso dizer sinceramente que eu tive minhas expectativas destruídas com este livro. Esse é um daqueles casos onde você pega algo para ler e se coloca em uma postura X e acaba tendo um resultado Y completamente oposto. Talvez eu tenha me enganado com a proposta steampunk da autora (que de fato existe) e fui com um espírito aventureiro para a narrativa. Em menos de cinquenta páginas tive que rever os meus conceitos. E achei isso maravilhoso! A Nikelen conseguiu fazer com que eu, do nada, sacasse o meu caderno de anotações e começasse a anotar ideias como um louco transtornado. Viajantes do Abismo tem muito mais do que você imagina e muito mais do que está ali naquela sinopse. Duvidam? Sigam o texto.


A narrativa da autora possui um vasto elenco de personagens. E vemos pessoas diferentes, com características e motivações que podem ou não se cruzar e se colocando até em lados diferentes do espectro da protagonista. Apesar disso tudo, estamos diante de uma clara narrativa em terceira pessoa, colada no ombro de Elissa, a qual serve como nosso ponto fiador da história. Em nenhum momento saímos de seu lado. Ou seja, é aquela narração pseudo-terceira pessoa, sendo que este é usado apenas para não ficarmos presos à mente da protagonista e termos a possibilidade de voar pelos ares e apresentar um mundo que não é inteiramente conhecido por ela. Boa escolha, principalmente pela construção de mundo em si.


"A gente nunca sabe para onde o tempo vai. [...] Andamos no escuro. Como cegos. Não vemos as pedras, os buracos ou quando o caminho acaba."

Somos colocados diante dos preparativos do casamento de Elissa com Larius Drex, um homem que conseguiu se alçar a uma importante posição em sua província. A protagonista está reavaliando suas prioridades e analisando como será seu papel como esposa. Claramente ela não gosta de reuniões e ter de desfilar para pessoas, mas decidiu se conformar com o que a vida lhe ofereceu. Aliás, esta é muito a tônica da personagem: ela gostaria de ser submissa, mas a vida acaba colocando-a diante do fato de que ela não deve ser. Que ela precisa tomar as rédeas de seu próprio destino. Larius então a abandona próximo ao casamento, alegando que não gostaria que o casamento destruísse a personalidade instigante dela. Que ele estava abandonando-a pelo seu próprio bem (calma, gente, isso não é spoiler... é o primeiro capítulo). Esse acontecimento acaba derrubando o chão dela que não sabe o que fazer de si diante do impacto. Ela tinha se preparado psicologicamente e emocionalmente para isso, e de repente precisa mudar tudo e repensar o que fazer com sua vida. É então que ela conhece a jovem Aleia, uma menina estranha que lhe dá conselhos como uma mulher adulta. A aconselha a fazer aquilo que seu coração mandar. Dessa forma, Elissa se torna uma curandeira.


"Vamos deixar algumas coisas bem claras, senhor. Sou uma curandeira e não pretendo deixá-lo morrer. Vou tratá-lo nem que, para isso, eu precise lhe dar um soco como anestesia."

O mundo criado por Nikelen é parecido, mas bem diferente (sem trocadilhos) em relação ao nosso. Entre os vários reinos, repúblicas e estados, a protagonista vive na República Tríplice, um lugar governado por três governadores que juntos decidem os rumos daqueles que vivem sob sua tutela. Mas, a república vive sérios problemas: o avanço das areias tem acabado com a vida daqueles que já possuem pouco para viver. A desigualdade social é enorme sendo que uma elite domina os recursos básicos para sobrevivência como água e alimentos. A maior parte da população vive em regiões que cobram muito de sua resistência. E o governo nada faz para ajudar a população empobrecida. Surge então um movimento independentista que deseja se descolar desse governo corrupto e retomar a autoridade para as mãos do povo. Do outro lado ficam os unionistas, cujo chefe militar é Harin Solano, um homem cruel e inescrupuloso que age em nome da República Tríplice. Após se tornar curandeira, Elissa vai se tornando pouco a pouco uma figura proeminente em seu vilarejo a ponto de servir como exemplo de resistência. Percebendo o perigo vindo da vila de Elissa, Solano e suas tropas vão até lá e arrasam tudo o que veem pelo caminho. Inclusive a casa onde moram Elissa, Simoa, Teodora, Miranda e sua mãe Ursula. A morte de uma pessoa importante para a família acaba fazendo com que Elissa tome a decisão de se vingar de Solano. Aí é que começa a história, principalmente após a protagonista encontrar a corajosa Tyla e o enigmático Seth.


Um planeta em perigo


Essa é uma jornada de empoderamento para Elissa. Começando como uma personagem conformada e submissa, ela vai entendendo que sua vida pertence a ela mesma. E que, ao se submeter, ela estaria deixando de lado a sua capacidade de viver e de tomar suas próprias decisões. Não apenas isso, mas a possibilidade de escolher que rumo deve seguir. Elissa preferia agir com indiferença diante das coisas. Ao se convencer de que nada a afetava, se sentia segura e não poderia sofrer. Só que se envolver com outras pessoas faz com que ela desperte sentimentos aos quais sua racionalidade não consegue lidar. Os laços que se formam ao seu redor, obrigam-na a agir. A tornam ativa. Esse emaranhado de relações fazem com que ela precise tomar decisões não apenas pensando no que é seguro para ela, mas no que é bom para aqueles que a cercam.


Em uma de suas jornadas, ela conhece Seth, alguém que aparece junto de uma tempestade de areia alegando que teria matado o mundo. Tratado como louco por todos que o cercam ele acaba contando para a protagonista sua história. Achei a abordagem da autora interessante ao nos apresentar um planeta como uma espécie de ser vivo. O que de fato é. E que, muito da culpa pela destruição do planeta cabe aos seres humanos que não são capazes de cuidar apropriadamente dos recursos naturais. A ideia de que o planeta pode ficar doente também é uma linha de raciocínio plausível e até já explorada por alguns cientistas.


"... as lendas que falam de um só contra tudo são as que inspiram as multidões. Esse um é apenas alguém com os instintos necessários para dizer não ou sim na hora certa. Os outros o seguirão."

Por outro lado, existe uma questão filosófica por trás da narrativa. Ao estarmos em constante guerra com nossa própria espécie, estamos também afetando o planeta. Se estivéssemos no lugar de um deus criador, qual seria nossa postura? Ajudar os seres humanos e tentar lidar com as alterações que já fizemos ou recomeçar tudo de novo, eliminando quem está atualmente no planeta? Adaptação ou recomeço? Se formos parar para refletir bem sobre os argumentos que regem ambas as posições veremos que ambos os lados possuem seus prós e contras. Hoje vivemos em um planeta que parece estar caminhando para um estado terminal. E não sabemos mais o que fazer para impedir a nós mesmos de continuar em uma lenta (não tão lenta mais) caminhada da destruição.



"Nunca em sua vida estivera tão apaixonada quanto naquele exato momento. Nunca amara tão profundamente e nunca estivera tão completa apenas por ser Elissa. O poder de mandar em si mesma, fazer o que quisesse, planejar ações, liderar outras pessoas. Estava romanticamente imersa na própria existência. E tinha prazer em saborear a tensão antes de cada ação e o que se seguia."

Seguindo em frente


A autora faz uma bela brincadeira usando um deus ex machina na história. Normalmente esse artifício serve para corrigir algum encaminhamento que não atenderia aos objetivos do autor. Alguns autores buscam esconder esse mecanismo, mas Nikelen nos mostra desde o começo. O emprego de um certo personagem funciona como um deus ex machina. E é bem utilizado. A ponto de entendermos com naturalidade a sua presença na narrativa. O legal é que é quase como se a própria autora estivesse ao lado da protagonista ajudando-a e aconselhando-a em momentos de real necessidade. Isso é feito de forma orgânica sem ferir a narrativa.


Porém, preciso dizer alguns pontos que me incomodaram um pouco. Achei a escrita um pouco pesada desde o começo e a narrativa não pegou velocidade comigo por toda a sua extensão. Geralmente quando eu consigo me assentar a uma escrita, a narrativa acaba seguindo com mais fluidez. Não vou saber responder o motivo disso, mas talvez tenha sido culpa da primeira parte da história (o livro é dividido em duas partes; uma espécie de prólogo inicial e o grosso da história). Nesta, parece que a autora está me apresentando uma série de fatos que se sucedem um ao outro. Não consegui me investir da história nesse momento e, quando a história realmente engrenou lá pela metade do livro eu não tinha comprado a narrativa lá atrás.


Um segundo ponto que me preocupa são os personagens de apoio, que acabam ficando obscurecidos diante de um protagonismo centralizante de Elissa. Mesmo personagens fortes como Teodora e Tyla não conseguem ser mais do que satélites gravitando ao redor da protagonista. Gostaria de ver talvez mais núcleos narrativos até para explorar mais o mundo criado por Nikelen. A autora perdeu uma boa oportunidade para brincar com sua criação. É curioso que apesar de ser apresentado como um cenário steampunk, este é usado de forma bem parcimoniosa e sutil. Se não tivesse alguns dirigíveis e os googles eu não lembraria que se trata de um steampunk. Não digo nem que é necessário explorar todos os aspectos do gênero, mas dava para brincar um pouco com isso.


Viajantes do Abismo é uma narrativa que vai fazer com que olhemos para o nosso planeta com outros olhos. Como pessoas preocupadas com o destino que nossas ações podem provocar e o que devemos fazer para mudar esse cenário. Para que sejamos como Elissa que se investiu de seu próprio destino e se empoderou o suficiente para gritar para o mundo que as coisas deveriam mudar.



Ficha Técnica:


Nome: Viajantes do Abismo

Autora: Nikelen Witter

Editora: Avec

Gênero: Fantasia (steampunk)

Número de Páginas: 304

Ano de Publicação: 2019



*Material enviado em parceria com a Avec Editora





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