E se a nave que trouxe o Superman à Terra tivesse caído em outro lugar? Mark Millar imagina uma realidade alternativa onde o personagem é adotado por um casal de fazendeiros soviéticos e se torna o defensor do socialismo. Sua luta pela paz no mundo envolve a busca pela justiça social. Em uma reflexão sobre os limites do poder, Millar traz uma reflexão fascinante sobre o mundo em que vivemos.
Sinopse:
Nessa surpreendente releitura de um conto mais que familiar, uma certa nave kryptoniana cai na Terra, trazendo um infante que um dia se tornará o ser mais poderoso do planeta. Mas seu veículo não caiu nos Estados Unidos. Ele não foi criado em Smallville, Kansas. Em vez disso, encontrou um novo lar em uma fazenda coletiva na União Soviética! Da mente de Mark Millar, elogiado roteirista de Authority e O Procurado, chega esta estranha e genial reinterpretação do mito do Superman. Com arte de Dave Johnson, Kilian Plunkett, Andrew Robinson e Walden Wong.
Em outras resenhas como a de A Fazenda os Animais (de George Orwell) mencionei a contradição, embora complementar, de dominação e controle. Vocês podem estranhar usar uma frase como essa, mas dominação e controle nem sempre conseguem coexistir, mas costumam andar juntas. Millar faz uma exploração sobre o significado da justiça em um universo que, por causa de uma variável, virou de cabeça para baixo. E um mundo onde boas intenções acabam sendo afogadas por interesses particulares, vinganças pessoais. Superman - Entre a Foice e o Martelo é uma ótima HQ para nos fazer pensar se realmente existe uma diferença entre ideologias diferentes ou se essas diferenças são talhadas por pessoas. Afinal, mesmo uma boa ideia pode servir a um homem justo ou a um ser desprezível. Só depende do ponto de vista.
Embora ache que o roteiro apressa demais os acontecimentos, é muito bom perceber que Millar não caiu na tentação de criar um roteiro maniqueísta e colocar o velho confronto entre yankees e soviéticos. A narrativa é mais complexa do que algo assim e em vários momentos nos questionamos quem está do lado certo. Só um spoilerzinho: não tem lado certo nessa HQ. Podemos até argumentar que Luthor seja um cara egoísta e só pense em sua rivalidade, mas o Superman não fica muito atrás com a sua obsessão em consertar tudo. Millar divide a narrativa em três fases, o que acho ideal para a história e não a deixa cansativa. Tudo é amarrado de um jeito sensacional com uma piscadela para a ideia de que a história é cíclica. As coisas acontecem em seu tempo e tendem a se repetir em um continuum. Resta ao ser humano buscar aprender ou tomar outros caminhos. A narração é feita pelo Superman que age como um narrador onisciente, contando a história em retrospectiva para nós. Posso estar enganado, mas ela pode estar sendo narrada pouco depois do funeral que ele participa lá no final do terceiro capítulo e faz uma reflexão em retrospecto sobre os rumos que sua vida tomou.
A arte do Dave Johnson está adequada para a série. Não a considero espetacular até porque o roteiro não é voltado para grandes acontecimentos. Millar explora as diversas situações quase como que à distância e salvo o clímax na terceira parte, não temos grandes confrontos. Então cabe ao artista construir cenas que sejam icônicas ou mudar cenas que aconteceram em outras fases do personagem. Gosto de duas em particular: o primeiro salvamento do Super no Planeta Diário, aqui representado com seu uniforme cinza e vermelho com a foice e o martelo e o confronto com o Batman em São Petersburgo que espelha O Cavaleiro das Trevas. Essas recriações ficaram muito bem feitas e são belas homenagens a fases ou histórias importantes do personagem. Outro aspecto importante é a do design que precisa ser semelhante, porém diferente. Nesse sentido gostei de como o Batman do Dave Johnson é diferente não apenas no uniforme (não tirem sarro do gorrinho, por favor..), mas em todo o seu aspecto. O Batman desse mundo é muito mais extremista, seus movimentos são menos graciosos e mais bruscos. O Lanterna Verde dele me fez lembrar mais o do Neal Adams do que de fases mais próximas à HQ. Boa quadrinização, bom emprego de cores pelo Paul Mounts. Kilian Plunkett assume o segundo e o terceiro capítulo que vai exigir uma arte mais moderna ao invés das homenagens à Era de Prata feitas por Dave Johnson. Só que achei a arte inferior ao que havia sido mostrado antes. Tanto é que temos poucos quadros que são realmente memoráveis. Só consigo me lembrar da do Batman que tenha me chamado mais atenção.
A velha rivalidade entre Lex e o Superman é explorada ao longo de toda a edição. E Waid é partidário daquela filosofia que os coloca lado a lado. Mais do que inimigos, os dois são complementares e não conseguem existir sem o outro. É semelhante à visão do Batman e do Coringa. Eles representam facetas opostas do mesmo diálogo. Ambos são seres obsessivos e acabam por ferir aqueles que os amam. Lex Luthor é casado com Lois Lane, mas a trata com total indiferença. Luthor respeita a audácia e a inteligência de sua esposa, mas seu foco está em como vencer o Proletário de Aço. Não se importa em abandoná-la por vários meses, mas se irrita profundamente se ela não adorá-lo. Seu amor não pode ser dividido. Ele precisa ser o centro das atenções. O leitor não irá ver um Luthor maligno, alguém capaz de massacrar pessoas ou fazer atos de maldade apenas porque sim. Nada disso. Luthor resolve os problemas dos Estados Unidos em duas noites quando ele assim o deseja. É como se ele pudesse resolver os males da humanidade enquanto come um misto quente, mas isso é tão fácil que ele não tem tempo para isso. Luthor é movido por uma vontade inabalável de se livrar do alienígena a qualquer custo. Mesmo que outras pessoas precisem pagar o preço, e aí é que entra o Luthor maligno e capaz de matar pessoas. Ele não as mata por maldade, mas como efeito colateral em sua longa Guerra Fria.
Se falei do Luthor, tenho que falar do Superman. Porque ele é tanto protagonista como antagonista de sua própria história. É curioso como a ausência de alguns personagens-chave na biografia do personagem e que ajudavam a temperar o seu caráter fazem toda a diferença. Vou voltar no Luthor logo abaixo porque ele representa a própria essência do capitalismo, mas o Superman é um homem obcecado em ser o salvador, aquele que ajuda as pessoas a trilharem um caminho melhor. E ele faz isso sem derramar uma gota de sangue. Segundo ele, é uma revolução sem violência. Só que ao estudarmos sobre tipos de violência em Sociologia nos deparamos com a violência simbólica, como apontada por Pierre Bourdieu. Ou seja, um ato de violência pode estar presente em um constrangimento, um assédio, um ato de negacionismo. No caso aqui, Superman provoca vários desses atos menos físicos. Em um deles, ele usa o carinho e amor que Diana tem por ele para fazê-la se livrar à força do Laço da Verdade, provocando danos permanentes nela. Logo em seguida, ele não demonstra qualquer empatia pela sua dor. Andando disfarçadamente pelas ruas, Superman escuta traidores e os reprograma como andróides subservientes. Ele retira deles a possibilidade de se manifestar, de reclamar de se colocar contra a autoridade vigente. O personagem incorpora a própria imagem do Grande Irmão exigindo empenho de todos.
Já Luthor tenta obter o mesmo resultado através de outros meios. Por meio da força bruta, da dominação, ele quer tomar a União Soviética e tomá-la como parte de seu grande projeto de país. A violência de Luthor é física e não vê pudores em sua ação. Vemos como ele cria a galeria de vilões do Superman, realizando experiências em pessoas comuns e sacrificando-os como peças de xadrez. Luthor incorpora a visão dos Estados Unidos expansionista que se revela um libertador quando na verdade é um mero agressor. Com uma falsa idiossincrasia, os americanos liderado por Luthor se transformam em bárbaros selvagens quando a vitória parece estar distante. Luthor, o autocrata, ascende ao poder de forma quase permanente. A brincadeira de roteiro é ótima: com 101% de votos ele se transforma em um presidente vitalício. Como assim 101%? Essa é a filosofia do autocrata, aquele que domina falseando as informações sobre suas conquistas. Não só isso como o personagem compra toda a mídia e aqueles veículos de imprensa que são independentes ou contra ele são deixados para falirem em uma economia em total dependência do governo.
Quem vence? Quem perde? Isso não é importante. A sociedade que resulta disso é uma que vai se tornar condescendente. A busca por um bode expiatório para todos os problemas é o que coloca tanto o lado soviético quanto o americano. Para os soviéticos, a revolução só irá terminar com a derrota de Luthor e a conquista da América. Para os americanos, a derrota do Superman e a conversão da União Soviética é tudo o que importa. Vejam como nesse ponto, as posições se invertem como em um jogo de xadrez quando uma peça se transforma em um rei. Vale pensar que a derrota de um deles não significou uma mudança drástica no desenvolvimento da sociedade humana. Até porque aquele que perdeu deixou uma série de planos e projetos que o outro lado aproveitou. No fim de tudo, isso não passou de um jogo de xadrez iniciado mais de meio século atrás, como o roteiro de Millar deixa transparecer. Enquanto isso é a população que paga pelo confronto entre dois indivíduos que não suportam um ao outro e que não conseguem coexistir.
Millar escreveu Entre a Foice e o Martelo em 2003 e se tornou uma HQ icônica desde então. Mas, possivelmente ela nunca esteve tão mais atual como nos dias de hoje. Boa parte dos problemas do mundo e da HQ são reduzidas a um conflito de visões de mundo. Quando isso não é verdade. Somos como as pecinhas de xadrez no tabuleiro de Luthor com o Superman do outro lado com as peças pretas. Isso nos torna indolentes e sempre aguardando algum tipo de figura messiânica capaz de salvar a humanidade de suas próprias mazelas. Qual foi o erro do Superman? Querer resolver tudo. Precisamos ter a capacidade de agirmos por nós mesmos, de termos nosso livre arbítrio, errarmos, aprendermos com os erros e seguir em frente. Cobrar daqueles que nos representam ações justas e válidas. Por que ninguém cobrou algo diferente de Luthor ou do Superman? É o medo da representação de poder? É sua percepção? Todas essas questões são ótimas para refletirmos a NOSSA sociedade e pensarmos se vale a pena trocarmos uma democracia por uma autocracia barata e destrutiva.
Ficha Técnica:
Nome: Superman - Entre a Foice e o Martelo
Autor: Mark Millar
Artistas: Dave Johnson, Kilian Plunkett, Andrew Robinson e Walden Wong
Colorista: Paul Mounts
Editora: Panini Comics
Tradutores: Jotapê Martins e Fabiano Denardin
Número de Páginas: 172
Ano de Publicação: 2017
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