Em uma bela história de uma menina perdida em um trem, somos levados a conhecer a história da construção e do desenvolvimento da malha ferroviária paulista. Tocante e sensível, vai ser uma hq que vai encantar a todos.
Sinopse:
Ibi, uma garota de 10 anos, decide pegar o trem que a levará à Vila de Paranapiacaba. Ela embarca em uma viagem singular ao lado do jovem Dilan.
A proposta dessa HQ é bem simples: contar a história da construção da principal linha de trem de São Paulo e como ela se envolveu na história da própria cidade. Ou seja, o que vamos ver é muito mais algo didático e de certa forma homenageando sua história. Mas, o que poderia parecer algo chato, a Talessa transforma em algo doce e sensível através da história de Ibi e Dilan. A proposta de Sobre Trilhos é diferente do Cinco Vermelhos, e isso é perceptível até no tipo de arte empregado nos quadros; mostra a versatilidade da artista. Sem dúvida alguma, é uma obra diferente, e, apesar de eu ter gostado menos do que a anterior, é algo que me impactou em como a artista foi capaz de montar o enredo.
É possível dividir o roteiro em dois tipos: a história de Ibi e a história da linha férrea. Ibi é uma menina que se descobre perdida dentro do trem. Ela parece ter fugido da casa dos avós e quando vê não sabe onde ou quando se encontra. Vários personagens estranhos se encontram nos vagões do trem: um menino que perdeu uma bola, um homem fazendo uma refeição sozinho, um senhor melancólico à janela, um soldado, um menino perneta que vende doces, um senhor idoso... E a lista segue. Ibi corre de vagão em vagão sem entender nada até que encontra um rapaz que serve como guia para ela. A partir daí a história se move entre a história da menina e a daqueles que habitavam os vagões do trem.
Vamos lidar primeiro com o tema mais complicado. Sim, no fundo é uma HQ de divulgação sobre a história da linha ferroviária. A ideia parece ter sido fazer uma homenagem ou algo nesse sentido. E nesse ponto o roteiro cumpre até bem esse papel a partir da segunda metade da história. Vemos momentos como a chegada de imigrantes no Brasil, os investimentos do Barão de Mauá na construção da linha férrea, o desencanto de Santos Dumont com o que foi feito de seus inventos, as duas revoluções que tiveram a linha férrea como meio (a de 1924 e a de 1932). Não tem como fugir do elemento explicativo-histórico porque, do contrário, a história não cumpre parte de seu propósito. Por esse motivo, tem bastante info dumping, mas acho até que a Talessa conseguiu amenizar bastante o emprego de informações ao relacionar com a história da menina.
Já a história de Ibi é onde a habilidade da Talessa se manifesta mais. No começo da narrativa o leitor vai ficar confuso. A artista não fornece tantas informações sobre o que está acontecendo porque a ideia é o leitor ir montando as peças junto da protagonista. Então é natural se perder. As coisas vão começando a fazer sentido a partir do momento em que aceitamos o papel que o sobrenatural tem na história. No fundo é uma história sobre fantasmas e sobre arrependimentos. Ao mesmo tempo tem a ver com a própria protagonista que vai te surpreender no final. Uma boa brincadeira narrativa que a Talessa faz é soltar pequenos easter eggs aqui e ali que mais à frente vão começar a fazer sentido como um todo. O roteiro é bastante coeso, apesar de que o final me deixou um pouco confuso. Não sei se eu cheguei a entender exatamente os últimos quadros. Mas, nada que uma releitura não vá me ajudar a compreender completamente.
A arte da Talessak em Sobre Trilhos está diferente em relação a Cinco Vermelhos. Essa é uma arte mais aquarelada com as cores mais claras. Esse detalhe serve muito à narrativa porque cria uma sensação onírica incrível à história. Por ser uma história que envolve fantasmas, ter um cenário enevoado ou com detalhes menos explícitos contribui para esse clima. Há um grande emprego de cores quentes e alguns quadros com cinza e azul-claro (quando se tratavam de cenas mais tristes). A quadrinização também é bastante eficiente com uma frequência maior de páginas com quatro ou cinco quadros. Mas, tem alguns momentos com dois ou três que são sensacionais. Sinceramente, eu gosto bastante quando a Talessa emprega quadros amplos porque mostra todo o potencial de sua habilidade de ponta de pincel. Mas, sou sincero: eu prefiro mais o estilo de Cinco Vermelhos que me impressionou bastante. Aí é mais uma questão de preferência de fã de um trabalho.
Vale a pena assinalar que a Talessa emprega os meios digitais para complementar a experiência do leitor. Ela insere uma série de QR codes que podem ser lidos e levam a um site onde tem áudios e vídeos. Não é algo estritamente necessário e nem vai comprometer a experiência de leitura, mas certamente vai te dar um algo a mais. Em Sobre Trilhos, a Talessa preferiu se dedicar mais a uma trilha sonora de acompanhamento. Mas, tem algumas cenas bem legais feitas digitalmente. Ou seja, experimentem ouvir a trilha sonora enquanto fazem a leitura. No mínimo, é algo diferente.
Sobre Trilhos é uma HQ diferente de uma artista que sabe empregar uma bela arte. Tem todo o aspecto de divulgação, mas a artista tira um ótimo proveito da oportunidade para nos apresentar uma narrativa sensível sobre uma menina em busca de si mesma e do significado da família. É uma história repleta também de memória e história e o quanto os momentos felizes e tristes podem compor toda uma trajetória. Por exemplo, sempre imaginamos Santos Dumont como um inventor fabuloso por ter criado o 14Bis, mas nunca paramos para pensar como ele se sentiu ao ver o seu invento ser empregado para a guerra. Enfim, esse é um dos muitos exemplos de histórias presentes na HQ.
Ficha Técnica:
Nome: Sobre Trilhos
Autora: Talessak
Editora: Auto-Publicado
Número de Páginas: 140
Ano de Publicação: 2019
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