A morte de alguns indivíduos pertencentes a um grupo de caçadores em uma pequena cidade na Polônia faz com que Janina Dusheiko, uma senhora com uma obsessão por astrologia e William Blake, se envolva em uma trama que envolve a morte hedionda de animais. O que estará acontecendo?
Sinopse:
Subversivo, macabro e discutindo temas como mundo natural e civilização, este livro parte de uma história de crime e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense existencial. “Uma das grandes vozes humanistas da Europa”, segundo o jornal The Guardian, Olga Tokarczuk oferece um romance instigante sobre temas como loucura, injustiça e direitos dos animais.
A caça de animais é uma prática realizada desde que o homem decidiu se organizar. Era uma forma de sobreviver em um mundo onde ele era apenas mais um no menu. Com o passar dos milênios e o surgimento das cidades, os animais foram domesticados e alguns se tornaram parte da alimentação cotidiana. Mesmo assim, os caçadores continuavam a existir em diversas partes do mundo. Várias espécies desapareceram, fruto de uma caça desenfreada e que nem sempre era voltada para a alimentação. Isso porque surgiu a prática da caça esportiva, voltada para troféus e prêmios. O homem se sentia mais másculo ao abater um animal selvagem terrível ou apenas ver um corpo sob seus pés. Foi necessário criar regras para a caça esportiva, estabelecendo épocas do ano, espécies autorizadas e formas de abate. Mas, como toda a atividade que lida com os instintos mais primitivos do homem, tais regras nunca foram obedecidas. Caçar continua fazendo parte da vida de alguns indivíduos. E são os animais que pagam por isto.
Sobre os Ossos do Mortos é um livro que mescla suspense e um pouco de terror, em que Olga Tokarczuk nos coloca em uma pequena cidade na fronteira da Polônia com a República Tcheca. Uma cidade com aspectos bem rurais e afastada de muita coisa. Lá conhecemos Janina Dusheiko, uma senhora de hábitos bastante pitorescos, que vive solitária, salvo pela companhia de um ex-aluno seu, Disio, e cujos hábitos simples a tornam estranha aos olhos dos outros moradores da cidade. Junto de seu Samurai (o seu carro) ela cuida das casas espalhadas pelas montanhas afastadas da pequena vila. Uma série de assassinatos vai envolvê-la no olho de um tornado em que pessoas morrem de formas bastante bizarras como um osso de corça entalado na garganta, um homem que engole besouros entre outros. A sra Dusheiko acredita que isso se trata de uma vingança dos animais caçados violentamente pelos membros do clube de caça ilegal da cidade. Será mesmo? Ou teremos um serial killer local? Ou alguma coisa ainda mais insidiosa?
" - Deus criou o ser humano para ser feliz e rico. Mas a astúcia fez com que os inocentes virassem pobres - parafraseei, livremente, as palavras de Blake. Aliás, é o que eu penso mesmo."
A escrita de Tokarczuk é extremamente envolvente e contém tudo aquilo que os fãs de um bom livro de suspense querem: tensão, uma pequena vila no meio do nada, assassinatos brutais. Tem um tema ecológico inserido no meio que já chego nele, mas preciso falar da escrita da autora que é uma aula de narrativa. Temos um livro narrado em primeira pessoa, a partir do ponto de vista da sra Dusheiko que é uma narradora não confiável. Seus hábitos estranhos e sua forma peculiar de enxergar o mundo a tornam dessa maneira, o que oferece uma outra camada ao que a autora está trazendo para nós. A escrita é bem envolvente e a autora constrói para o leitor toda a realidade deste local afastado, com as pequenas redes de relacionamento, os desafetos e o status local. Curioso é que enxergamos toda essa dinâmica a partir de uma senhora já na metade final de sua vida e que sofre um semi-ostracismo por parte dos locais. Ela é vítima de preconceito pela sua idade e por suas ideias particulares. Vale destacar também que a protagonista escolhe o que está contando e como está contando a história. Isso fica ainda mais claro em uma segunda leitura quando percebemos as lacunas propositais que ela vai deixando. E vamos parar para pensar: quando contamos uma história a outra pessoa, costumamos ser seletivos sobre o que contamos. Às vezes deixamos detalhes de lado, os quais só iremos lembrar posteriormente. O que me espantou em seu livro é em o quanto ela consegue encaixar em pouco mais de duzentas e cinquenta páginas. Parece pequeno, mas existe um mundo de informações presentes aqui.
A sra Dusheiko nos guia através da história com seu olhar de fora dos fatos. Por ser uma pessoa isolada, ela desenvolveu diversos hábitos que para uma sociedade contemporânea seriam inaceitáveis. Ela pouco se importa com televisão, com sinal de celular e vive uma existência bastante pacata. Suas atividades são feitas com paciência, persistência e calma. A urbanidade a incomoda. Ela observa o desenvolver da civilização como algo agressivo à natureza. Tomamos como padrão determinadas situações que seriam entendidas como violências caso acontecessem com seres humanos. Ela tenta se manter parte do agrupamento social, mas ela claramente se incomoda em precisar se relacionar com pessoas. Para termos uma ideia, ela tem o hábito de dar apelidos às pessoas com base na visão que ela tem delas. Quase nunca ela chama o outro pelo seu nome, salvo em alguns casos de pessoas que ela acha que o nome se encaixa ou que passam a ter um contato maior com ela. Em sua visão, nomes são convenções sociais, não falam a verdade sobre quem uma pessoa é de fato. A cada novo capítulo, a personagem vai se afastando mais e mais do convívio social, embora ela desenvolva novas amizades e até ficamos conhecendo como é sua rotina, como o fato de ela ensinar idiomas para uma turma de 3º ano, entre outros.
Há uma discussão forte de civilização x isolamento aqui. A protagonista dá valor a uma existência mais frugal e menos afeita a bens materiais. Tem um momento na narrativa em que ela se inspira no dentista local que diz ser capaz de colocar todas as suas coisas em uma mochila rapidamente. Isso é um tipo de foreshadowing da autora para o que viria mais à frente na narrativa. A vila é mostrada como um lugar decadente em que as pessoas não são mais capazes de respeitar ou se sintonizar com o universo natural que as cerca. A sra Dusheiko faz amizade com pessoas que vivem à margem da sociedade como Boas Novas, a menina que trabalha no brechó local, mas que por sua pobreza e aparência é um pouco deixada de lado. Nesse ponto, Tokarczuk, ao ter escolhido Wiliam Blake como uma espécie de mentor por trás das ideias da protagonista, acertou em cheio. Blake é conhecido por essa visão deveras crítica sobre os rumos da sociedade e em como perdemos o contato com o mundo natural ao decidirmos habitar nas grandes cidades. A fronteira entre civilização e natureza é mediado pela floresta e pelos animais selvagens, que acabam sendo perseguidos pelos caçadores locais. Estes estreitam ainda mais essa fronteira, fazendo com que não sejamos mais capazes de nos horrorizarmos com atos cruéis.
Não posso deixar de trazer a crítica ferrenha que Tokarczuk faz à caça indiscriminada de animais. A sra Dusheiko vai radicalizando o seu discurso à medida em que a narrativa passa, mas inicialmente ela se vê mais indignada com a caça esportiva. A maneira cruel com a qual animais são assassinados apenas para serem expostos como troféus. Não são sequer consumidos. Pessoas como o Pé Grande expõem suas aquisições nas estantes de suas casas. A autora faz descrições realmente aterradoras desses momentos de caça e não alivia nem um pouco para o leitor. O objetivo é causar o incômodo em quem está do outro lado. E ela faz isso com maestria. Chega a um ponto em que, mesmo que as reclamações da velha senhora sejam um pouco exageradas, nós concordamos com elas. Isso porque a autora usa bem a sua habilidade de escrita para causar empatia. E isso cria um efeito curioso porque, quando dei uma parada na leitura, comecei a fazer uma autocrítica. Somos uma sociedade que consome toneladas de carne todos os anos. Não paramos para pensar de onde essa carne vem, como o animal é morto, como o alimento é preparado. Se fizermos isso, dificilmente continuaremos consumindo carne. O processo é bem cruel. Isso pode ser entendido se pensarmos em nossos animais de estimação, os quais desenvolvemos laços afetivos. Deixando cães e gatos de lado, é fato que pessoas que cuidam de galinhas ou perus, não sentem a menor vontade de consumir esse tipo de carne. Isso acontece porque acabamos por espelhar isso nos animais que tomamos conta. O discurso que a sra Dusheiko dá no dia de São Huberto na Igreja é brutal e descreve precisamente o quanto o consumo de animais é cruel com o meio ambiente.
"O ato de matar se tornou impune. E por ser impune, ninguém o percebe mais. E já que ninguém percebe, não existe. Quando passam pelas vitrines dos açougues onde grandes pedaços vermelhos de corpos esquartejados estão pendurados em exposição, acham que aquilo é o quê? Não refletem sobre isso, não é? Ou quando pedem um espetinho ou um bife, o que recebem, então? Nada disso assusta mais. O assassinato passou a ser considerado algo normal, virou uma atividade banal. Todos o cometem. Assim seria o mundo se os campos de concentração se tornassem algo normal. Ninguém veria nada de errado neles."
Por fim, queria escrever algumas linhas sobre como a sociedade enxerga uma senhora peculiar como a protagonista. E isso traz bastante a maneira como a sociedade trata as pessoas que fazem parte da Terceira Idade. Ela se sente um fardo para a sociedade. Depois de muito tempo contribuindo com a sua força de trabalho, subitamente ela é jogada de lado já que não serve mais como força motriz e de inovação. A maneira condescendente como ela é tratada quando vai fazer as denúncias de assassinato também nos ilustra a crueldade com a qual facilmente desconsideramos as ideias e conhecimentos de tais pessoas. Por mais que o que ela dissesse fosse exótico e peculiar, infantilizar o discurso de uma pessoa com tantos anos de experiência é de uma crueldade ímpar. Ela só conseguia manter suas atividades normais porque algumas delas não envolviam contato com outras pessoas e seu trabalho na escola era mais um tapa-buraco. Essa realidade que Tokarczuk nos mostra é a total realidade da vida. Quantos de nós já não fizemos isso, mesmo que não tivéssemos uma intenção maliciosa? Gosto que a autora nos mostra a personagem fazendo coisas normais, seja realizando alguma obra ou conserto, tentando continuar ativa com suas atividades profissionais, aconselhando seu ex-aluno com insights importantes e até se relacionando sexualmente com outras pessoas. Uma vida normal, sabe.
"Quando chegamos a uma certa idade, precisamos entender que as pessoas sempre ficarão irritadas conosco. Antes, nunca tinha percebido a existência ou o significado de gestos como acenar com a cabeça rapidamente, desviar o olhar, repetir "sim, sim", feito um relógio. Ou checar as horas, ou esfregar o nariz. Mas agora entendo muito bem que esse teatro todo só quer expressar uma simples frase: "Dá um tempo, sua velha". Às vezes fico pensando se um jovem bonitão ou uma morena curvilínea seriam tratados da mesma forma se dissessem as mesmas coisas que eu."
Gostei bastante do romance e a autora conseguiu manter a tensão do começo ao fim. Não gostei só da resolução do caso, que me levou ao velho hábito de Agatha Christie de precisar explicar tudo nos mínimos detalhes do começo ao fim. Achei que a autora poderia ter deixado alguns dos fatos para o leitor deduzir o que se sucedeu ali. Não havia necessidade de detalhar os acontecimentos. Isso tirou um pouco do brilho da história. Me fez até pensar naqueles desenhos onde o vilão maligno precisa explicar ao mocinho todos os seus planos diabólicos. Não, sabe. Mas, no mais, gostei de como a autora deu uma personalidade individual para a protagonista, sem estereotipá-la. Os problemas sociais são apresentados com uma franqueza e honestidade que são como flechas no peito. A protagonista é fascinante, em suas qualidades e defeitos e gostei de ter feito parte de sua jornada.
Ficha Técnica:
Nome: Sobre os Ossos dos Mortos
Autora: Olga Tokarczuk
Editora: Todavia
Tradutora: Olga Baginska-Shinzato
Número de Páginas: 256
Ano de Publicação: 2019
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