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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "Shojo Jigoku - O inferno das garotas" de Yumeno Kyusaku

Neste clássico da literatura japonesa, o autor nos apresenta histórias curtas de mulheres que passaram por situações difíceis como falsas acusações, preconceito de gênero ou violências. Um autor que escreveu em um momento em que a sociedade japonesa vivia seu momento mais conservador e patriarcal, ele critica a sociedade.


Sinopse:


Publicada em 1936, a obra consiste em três contos, com estruturas narrativas e temáticas diferentes, cuja ligação principal reside nas protagonistas mulheres em situações diversas de vulnerabilidade social. O leitor, certamente, ficará intrigado com a maneira com a qual Kyûsaku desenvolve suas narrativas de modo muito orgânico: as tramas vão sendo construidas a partir de cartas, recortes de jornal e trechos de diários, te tal maneira que a imersão é muito espontânea, contribuindo ativamente para o suspense criado ao longo dos contos.


Embora escrito por um homem, "O inferno das garotas" traz temas delicados e os trabalha muito bem, conseguindo representar com muita empatia as agruras e pormenores do ser mulher no Japão dos anos 30 em diversos âmbitos. O autor demonstra, então, maestria ao construir o suspense de seus contos a partir de um universo feminino não romantizado, cujas problemáticas possuem recortes de classe e críticas sociais contundentes.


O livro contém os três contos da trilogia original: "Nada de mais", "Revezamento de homicídios" e "A mulher de marte" e o acréscimo de mais três minicontos "Narciso azul, narciso vermelho", "A prevenção contra bandidos de Yukiko-san" e "o deus da floresta".








Quando mencionamos o papel da mulher no Japão em épocas mais antigas, o tema vem carregado dos temas do dever e da submissão. Mas, nem sempre isso foi assim. Em períodos mais antigos da história do país, mulheres chegaram a ocupar cargos de governo ou até foram imperatrizes por algum tempo. Só que a partir da Revolução Meiji, uma forma de pensar conservadora buscou apagar a história e criar uma nova imagem. E foi bem sucedida nesse processo. Algumas vozes dissonantes deram as caras no século XX e buscaram criticar aquilo que eles viam como uma postura absurda como foi o caso de Yumenu Kyusaku. O autor foi uma prova viva de que o conservadorismo japonês do século XX (e que em certa medida chega até os dias de hoje) não foi aprovado por todos e que sempre existiram aqueles que viam nessa ideia de submissão extrema da mulher algo que autorizava o emprego da violência física e moral. Shojo Jigoku - O Inferno das garotas é uma aula sobre as sutilezas existentes na violência... e em como ela poderia se manifestar de variadas formas.


Falando sobre os aspectos técnicos do livro, a edição está com uma boa diagramação e bem gostosa. A tradução está bem feita e a leitura acaba sendo facilitada pelas escolhas de tradução. Tem algumas notas de rodapé que são curtas e diretas e ajudam a entender determinadas expressões. Tem um artigo muito bom no começo falando sobre o papel da mulher na sociedade japonesa. Maria do Carmo Oliveira, uma pesquisadora da UFPE, traça um panorama histórico fazendo uma relação entre os momentos mais importantes da história japonesa e como a mulher se encaixava nesse período. Ela faz isso até chegar ao século XX onde ela traça um contexto geral para situar o momento do país quando Yumeno Kyusaku escreveu sua obra. Há uma introdução também escrita pelo tradutor Felipe Medeiros dando uma sinopse superficial sobre os contos e alguns pequenos temas presentes neles, sem entregar muito sobre a história em si. Minha única crítica no aspecto editorial é que o livro precisava de uma revisão bem de leve porque alguns erros de português passaram. Não é nada que incomode, mas sempre é bom sinalizar. A obra conta ainda com algumas imagens baseadas nas histórias. No final do livro tem um ótimo texto de Felipe Soares Augusto Lima da Trindade falando sobre as origens do eroguro nansensu e como Yumeno Kyusaku se encaixa nessa tradição. O autor traça ainda o contexto de surgimento do gênero e as influências posteriores percebidas em mangakas como Suehiro Maruo, Junji Ito e Shintaro Kago. Vale a leitura porque ajuda a preencher uma lacuna importante em nossos conhecimentos sobre a sociedade japonesa.


São seis contos, mas vou me ater aos três principais. Nada de mais é uma narrativa sobre uma misteriosa garota chamada Himekusa Yuriko que pede para trabalhar no hospital especializado em otorrinolaringologia de Uzuki. Ela começa como uma enfermeira e aos poucos o seu talento e carisma vão se destacando e Yuriko consegue o carinho dos pacientes. A ponto de pacientes vindo de outros lugares vão até o hospital apenas para serem tratados por ela. Só que quando ela se apresentou no começo, algumas lacunas ficaram no seu pano de fundo: sua família, sua formação e o contato com o professor Shirataka, um amigo de Uzuki. Amigo esse que Uzuki parece nunca conseguir se encontrar. Aos poucos as pequenas mentiras e omissões vão se tornando mais complicadas de se sustentar até que a desconfiança toma posse do coração de Uzuki. Isso leva ao trágico suicídio de Yuriko (contado nas primeiras páginas do conto). Agora Uzuki vai revisitar sua história com a estranha jovem para entender o que a levou a esse ato tão extremo.



Como já comentamos sobre o autor, ele tende a encarar a sociedade japonesa com um tom bastante crítico. Yuriko não é uma personagem virtuosa, mas não é maligna per se. E suas ações são bastante dúbias, fazendo com que o leitor não possa ler a história sem ficar com um pé atrás. Lembrando que é uma narração em primeira pessoa, feita por Uzuki que fez um diário de suas interações com ela. Só que percebemos de cara que Uzuki não é um narrador confiável e seu discurso vai tomando um tom estranho à medida em que a história avança. Está certo que as pequenas mentiras de Yuriko não ajudam em nada e o leitor fica mesmo sem entender o propósito das mesmas. Podemos apenas supor algumas linhas de análise. Yuriko não é uma golpista, nem uma criminosa ou sequer uma assediadora. Nem mesmo stalker. Ela só omite detalhes de sua vida que só comprometem sua versão dos fatos. E isso vai levar a um desvio de seu discurso a pensamentos bizarros. Em determinado momento da história, o chefe de polícia leva a crer que Yuriko seria uma espiã comunista. Lembro que quando li esse trecho foi tão estranho que eu reli as duas últimas páginas para tentar entender como ele chegou a essa conclusão. E a resposta é: do nada. Não tem nada que indique isso.


Se estamos falando de Yuriko, é preciso mencionar a própria esposa de Uzuki que vai criando uma série de artimanhas para desacreditar a jovem. Alguns leitores vão ficar curiosos imaginando que ela teria algum coisa ou desconfiado de algo sobre Yuriko. Tem mais um adendo a essa relação familiar que se trata de uma certa inveja de Uzuki. O sucesso de Yuriko junto aos pacientes provoca muito ciúme do médico. Ele não consegue conceber como uma simples mulher e enfermeira consegue realizar procedimentos cirúrgicos tão bem ou melhor do que ele. Em certo momento ele reclama da habilidade de previsão que Yuriko tem em relação às necessidades dos pacientes. Na verdade, essa "previsão" não era nada de mais. A jovem apenas prestava atenção ao que os pacientes estavam sentindo, apendia rapidamente com Uzuki alguns tratamentos e os implementava com eficiência. É mais uma vez uma sociedade machista subestimando a habilidade de uma mulher. Aliás, uma coisa que o personagem de Uzuki considerava absurda era como Yuriko conseguia ser tão bela e inteligente. Era um absurdo isso.


O segundo conto se chama Revezamento de Homicídios e trata de uma série de cartas escritas por Tomiko à sua amiga Chieko desaconselhando-a a trabalhar como motorista de transporte público. Ela narra a ela todos os assédios e humilhações que ela precisa passar diariamente. Em um determinado momento ela comenta que recebeu a informação de uma amiga de outra cidade sobre um possível assassino que atacava mulheres vulneráveis. E o novo contratado da empresa de transportes, Niitaka, se parece justamente com a descrição dada por sua amiga. Depois de uma série de encontros e desencontros, ela se casa informalmente com Niitaka e aí é que as coisas ficam tensas.


Esse conto é um retrato de como as mulheres são tratadas no ambiente de trabalho. Tomiko recebia cantadas e palavras sujas de outros colegas de trabalho, era intimidada pelos oficiais de trânsito. Sempre colocada para baixo, submissa. Seus colegas entendiam que ela deveria saber qual é o seu lugar. Isso nos mostra mais uma vez uma sociedade conservadora que via na mulher apenas a procriadora, a cuidadora da casa. Tomiko começa a viver uma espiral de situações estranhas que a fazem desconfiar de seu companheiro. Mas, ela tinha medo de se separar dele porque poderia ser incompreendida pela sociedade. Quando acontece uma certa tragédia lá pelo final do conto, levanta-se a suspeita que Tomiko talvez tivesse tido algum papel. Só que é uma acusação sem qualquer fundamento e baseada em prova alguma. Se não soubéssemos que se trata de um conto da década de 1930, ele poderia facilmente espelhar uma situação bem atual.


Na minha opinião A Mulher de Marte é o melhor dos três contos e é o que mostra o verdadeiro potencial do autor. Passando pelos aspectos técnicos, essa é uma história contada de duas formas diferentes: como o público percebe o que aconteceu e como a história se sucedeu de verdade. A primeira metade da novella é contada a partir de fragmentos de jornais e notícias mostrando o impacto para a sociedade daquilo que aconteceu dentro da escola. O diretor Morisu, que era um homem respeitado em sua região, vai decaindo pouco a pouco frente a escândalos que se sucedem um após o outro. As notícias ajudam a construir um cenário desesperador que a gente não consegue entender completamente porque faltam algumas informações. É na segunda parte que estas lacunas são preenchidas. Nela, vemos Amakawa Utae escrevendo um relato sobre aquilo que lhe aconteceu e tendo entregue à sua amiga e amante Aria para que lhe ajudasse a expor os crimes cometidos por Morisu e seus comparsas. Ou seja, temos uma narrativa epistolar contada de forma muito competente através de jornais e relatos pessoais que não deixa nada a desejar a outros livros que usam a mesma abordagem como Drácula, de Bram Stoker. A narrativa é bastante tensa e vemos o circo pegando fogo em diversas oportunidades com temáticas como corrupção, abuso, bullying, body shaming entre outros sendo abordadas.


E eu começo pelo body shaming e o bullying que é a temática do início da segunda parte. Utae é uma menina magra e muito alta para os padrões japoneses. Essas características a transformam em um alvo de chacota e piadas de suas colegas embora ela se destaque em competições esportivas dado o seu desenvolvimento precoce. Através do relato de Utae vemos o quanto isso a machucava e o desprezo não vinha apenas de seus colegas, mas também de professores e até de sua própria família. Um dos trechos mais tristes dessa história é o pai e a mãe se questionando por que ela não morreu jovem ou o fato de ela poder atrapalhar suas irmãs mais novas a se casar já que ela poderia causar constrangimento a elas. Esses trechos são carregados de uma insatisfação da personagem com o mundo que a cerca. E até os motivos pelos quais ela existe. Utae encontra uma forma de continuar vivendo em pequenas coisas que a fazem se esquecer das humilhações diárias até que ela descobre um refúgio onde ela consegue se esquecer dos problemas mundanos. Mas, é aí que ela se envolve em uma confusão maior ao descobrir o lado verdadeiro de pessoas que administram a escola.


E é quando chegamos no segundo grande tema desta trama que é a corrupção. Vale mencionar que essa trama não deixa nada para trás em nenhum acontecimento que vemos nos últimos anos no Brasil. Desvio de verba, corrupção, desvio de finalidade, autoridades envolvidas em escândalos de lavagem de dinheiro. Parece brincadeira, mas é uma história curta escrita no começo do século XX... por um japonês. Morisu se aproveitava de doações feitas por ex-alunos ou de contribuições pedidas para obras na escola para enriquecer. Ele, uma professor e o seu secretário combinavam novas ações do gênero no tal do casebre onde Utae se escondia. Funcionava como sua base de operações. O diretor era enxergado como uma pessoa idônea e humilde que ajudava a sociedade. Ser adepto do catolicismo entregava também um aspecto religioso à sua conduta moral. Publicamente ele tinha uma imagem a zelar e muitas das doações aconteciam porque acreditava-se que ele estava fazendo um bem para a escola. Até coisas estapafúrdias como uma estátua de bronze (depois um busto) foram colocados à frente da instituição para homenageá-lo e ele os aceitava com "humildade". Por trás existia uma rede de lavagem de dinheiro onde os três envolvidos se dirigiam a casas de prazer para gastar o dinheiro com sexo e jogos.


Vale destacar também que essa é uma história que nos mostra o envolvimento de duas mulheres, algo que no Japão da época era considerado um tabu. Utae e Aria se envolvem romanticamente, e isso é feito de uma forma bastante sutil. O autor usa de jogos de palavras para estabelecer esta conexão entre elas. É curioso pensar que a forma como ele faz isso com elas é diferente de como ele descreve os envolvimentos sexuais de Morisu e dos demais. Enquanto uma é mais metafórica e singela, a outra é violenta e desagradável. A dicotomia é clara e dá a entender o quanto a relação de Utae e Aria é marcada pelo tabu que existe no país. No entanto, Aria é quase como um oásis de carinho no meio dessa loucura e insanidade que se torna a vida de Utae. Os três contos principais do livro conseguem nos mostrar o quanto a existência dessas mulheres é sofrida e que não importa o quanto elas tentem ser independentes, a sociedade continuará a buscar formas de sujeitá-las à submissão completa e absoluta. Mesmo se isto estiver sendo feito por pessoas de índole suspeitosa. O livro vale demais a pena.











Ficha Técnica:


Nome: Shojo Jigoku - O Inferno das Garotas

Autor: Yumeno Kyusaku

Editora: Urso

Tradutor: Felipe Medeiros

Número de Páginas: 237

Ano de Publicação: 2021


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