Esta é uma coletânea com várias narrativas que exploram como personagens das camadas populares sobrevivem nos mais diversos cenários cyberpunks.
Sinopse:
O avanço tecnológico promete uma sociedade mais evoluída e próspera, mas a realidade é um verdadeiro abismo social que divide miseráveis e alienados sorrindo nas redes sociais. Quanto mais desenvolvidas e difundidas as nossas ferramentas, pior é a qualidade de vida da população. Esqueça todas aquelas distopias em grandes metrópoles do planeta e venha conhecer o sombrio Brasil do amanhã em Periferia Cyberpunk.
Nas ruas sem pavimentação e com esgoto a céu aberto, corre mais uma criança subnutrida que roubou um gadget capaz de transmitir seu cotidiano em tempo real ou acessar o oceano de informações da web na palma de suas mãos. Ela é apenas mais uma que se debaterá para não se afogar nesse mar poluído de dados contraditórios.
Em meio a megacorporações que controlam governos corruptos e desigualdade social que mistura violência e alienação hedonista em comprimidos sintéticos, Raphael Fernandes formou uma célula terrorista para sabotar o sistema. Para isso reuniu os hackers do roteiro Airton Marinho, Guilherme Wanke, Cauê Marques, Lucas Barcellos, Antonio Tadeu, Larissa Palmieri e Bruna Oliveira, e os ciberterroristas das artes Jader Corrêa, Braziliano, Cassio Ribeiro, Jean Sinclair, Thiago Lima, Azrael de Aguiar, Akemy Hayashi e Doc Goose. A capa que protege os seus rastros é do misterioso Camaleão.
Encare a verdade em histórias em quadrinhos sobre um tempo onde big data é mais importante que pessoas. Ou esqueça tudo isso e poste mais uma selfie que esconda sua vida robótica e afundada em consumo sem sentido.
Essa coletânea parte de uma proposta bem criativa. As histórias presentes aqui vão girar desde um homem voltando à sua comunidade depois de alguns anos fora e encontrando tudo pior do que antes, um grupo de ladrões que rouba uma espécie de robô que vai causar problemas, uma mulher atirada no esgoto e sendo aproveitada por um grupo de rebeldes que desejam retomar o controle, uma dupla de policiais a la Máquina Mortífera em uma Fortaleza cyberpunk. A imaginação correu solta. Isso gerou tanto histórias geniais, como ideias que poderiam ser boas, mas acabaram não sendo bem trabalhadas.
A história que melhor incorpora essa ideia do futuro com os problemas da população marginalizada é Babel de Cristo, do Lucas Barcellos com arte do Jean Sinclair. Na história vemos um homem retornando para casa após muitos anos afastado. A vida o marcou, mas a favela fez parte do seu coração, com todas as mortes, as dificuldades e a exploração. No futuro pensado pelo roteirista, o Corcovado se tornou uma imensa torre de Babel que recebe pessoas pobres e desabrigadas de todas as partes. Ela se tornou uma grande favela e a violência corriqueira de traficantes e policiais continua. O protagonista sai atrás de uma conhecida e vai precisar enfrentar adversários perigosos. Uma história com um direcionamento simples, mas muito eficiente. A arte explorou bem o ambiente pobre, das casas feitas de puxadinhos, das pessoas que habitam o local, vítimas e agressores.
Agora se eu posso retomar uma narrativa que me dá vislumbres de Neuromancer, de William Gibson, é Iansã Ferida, de Guilherme Wanke com arte do Brasiliano. Temos duas amigas que vivem diversos apertos nos subterrâneos da cidade. As pessoas mais pobres foram literalmente empurradas ainda mais para baixo. Bia e Letz estão tentando ficar tranquilas quando elas se veem em apuros e precisam se esconder no quartinho da Bia. Para se recuperarem do medo que passaram pouco tempo antes elas decidem "dar um tombo" (usar drogas para ficar de boa). O barato que elas sentem é tão forte que elas apagam vários dias. Só que ao despertarem ninguém parece estar respondendo. Este conto possui tudo aquilo pelo qual Gibson ficou famoso: as drogas, a decadência, a lisergia. Tudo está ali. Claro que na visão de Wanke tem um algo mais. É a destruição da ordem vigente para o surgimento de algo novo. Só que esse algo novo pode não ser tão melhor do que o que já tinha. Algumas perguntas ficaram: o que aconteceu com aqueles que subiram à superfície? E será que o contato de Bia estava ligada aos acontecimentos de alguma forma?
Outro conto que me chamou a atenção foi Condomínio Paradise, da Larissa Palmieri com arte de Azrael de Aguiar. O mais legal é que a Larissa me deu um belo swerve logo de cara. Quando eu vi a protagonista sendo enviada por uma tubulação para baixo (o que representaria a zona decadente), eu imaginei a cena do filme O Fugitivo, aquele scifi brega com o Arnold Schwarzenegger, da década de 1980. Mas, não, a intenção não era essa. A protagonista parece ter se envolvido em alguma situação que não é explicada precisamente na história, e é exilada. Quando ela cai no condomínio Paradise, um lugar onde os rejeitados pela elite habitam, encontra sua irmã, que ela pensava ter matado. Ao que parece, sua irmã se tornou a líder dos rejeitados que se tornaram uma espécie de grupo rebelde que deseja retornar à luz do topo do condomínio. Tem uma série de simbolismos presentes nesta narrativa: a desigualdade social entre os poucos que vivem no topo e os muitos que vivem abaixo, a forma como a sociedade enxerga essas pessoas, o desejo de uma revolução (lembrando que o conceito de revolução é uma tomada do poder de baixo para cima). No final, Larissa ainda deixa um final aberto, mas com uma tirada muito divertida.
O último conto que eu queria comentar é Fortaleza 2068 do Raphael Fernandes com arte do Doc Goose. Divertidíssimo e é uma brincadeira com a ideia dos policiais parceiros; um deles é um cara intempestivo e o outro é o mais cerebral e calmo. Raphael cria dois personagens que tem uma boa química logo de cara. E o fato de o seu parceiro ser fanho oferece uma série de tiradas engraçadas. Esse é aquele conto para você não levar a sério e apenas se deixar levar pelas loucuras inventadas pelo roteirista. A arte do Doc Goose também está excelente, exagerada e espalhafatosa o tempo todo. Há um mix de influências scifi com arte retrô que torna essa Fortaleza futurista uma cidade viva.
A coletânea é bem criativa e algumas histórias mereceram destaque para mim. Algumas eu gostei menos, mas no geral é uma daquelas coletâneas que eu recomendo a qualquer um que goste de boas histórias de ficção científica. Tem um elemento de brasilidade em todas as obras que só por aí já compensa o tempo investido. Me permitiu também conhecer excelentes artistas como o Wanke, o Doc Goose e até a Akemy Hayashi (do conto Midriasi que eu acabei não comentando). Mais um acerto da editora Draco.
Ficha Técnica:
Nome: Periferia Cyberpunk
Organizado por Raphael Fernandes
Editora: Draco
Número de Páginas: 176
Ano de Publicação: 2017
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