Uma narrativa poderosa sobre os dois anos em que Kate passou em campos de petróleo no Canadá. E ela viveu inúmeras situações bastante degradantes para uma mulher. Confiram no post!
Sinopse:
Kate Beaton se formou e não tem como pagar o financiamento estudantil, por isso resolve deixar a terra natal e seguir tantos outros que foram trabalhar em campos de petróleo em busca de um bom salário. Isolada num mundo dominado por trabalhadores homens, a jovem descobre um mundo marcado pelo assédio diário e pelo sexismo. Com humor e sensibilidade, neste quadrinho ela faz uma síntese da história do Canadá, da política econômica e de sua experiência individual. Kate nos expõe, num relato contundente e íntimo, a violência no ambiente de trabalho, nas relações humanas e na exploração dos recursos naturais. Prêmio Eisner de melhor quadrinho autobiográfico (2023) Prêmio Eisner de melhor roteirista/artista (2023)
Esse é, certamente, um daqueles quadrinhos para ficar na lista de melhores do ano de qualquer um. É uma história provocante, reflexiva, poderosa sobre ambientes de trabalho completamente nocivos para uma mulher. Kate Beaton nos descreve os dois anos que passou em campos de petróleo canadenses em que ela precisou trabalhar para pagar sua dívida estudantil. São anos repletos de surpresas, decepções, traumas e amadurecimento. Anos terríveis nos quais ela tenta nos contar de uma forma leve mas que, em determinados momentos, te dá um soco no estômago e diz a você o quanto homens podem ser perfeitos canalhas. Algumas páginas dão asco de ler e não são exagero da autora ou "lacração", como parte da cultura conservadora gosta de comentar. Isso é vida real e é por isso que Patos dói tanto de ler. Mas é uma jornada e uma discussão necessárias nessa sociedade patriarcal que temos.
Deixando um aviso básico: nas linhas a seguir vamos tratar de temas como violência, assédio e estupro. Fica o meu aviso de gatilho. Não leiam caso sejam temas sensíveis a vocês.
Falando rapidamente sobre a arte porque ela não é o essencial, necessariamente, aqui. Para essa história em particular, faz-se necessário que a arte consiga fornecer ao leitor duas coisas: o encaminhamento da mensagem e a capacidade de causar impacto. Beaton tem uma sensibilidade fora de série e o sequenciamento narrativo funciona muito bem. Há uma clara conexão entre balões de diálogo e a intencionalidade do quadro. Como Beaton é a roteirista e a artista, ela consegue fazer essa conexão com mais facilidade e as cenas possuem uma coerência muito boa. Elas fazem sentido no todo. O ato de causar impacto é obtido a partir do momento em que um quadro ou uma sequência de quadros é capaz de lhe passar algum sentimento ou passam a mensagem que o leitor precisa saber. A primeira cena de estupro não é explícita, mas você consegue dizer o que está acontecendo a partir das três páginas anteriores. É a intencionalidade do que está sendo feito. O traço de Beaton é claramente inspirado na linha clara europeia com um design simples, porém eficiente. Aliás, é perfeitamente notável que se trata de algo voltado para ser publicado na internet já que várias páginas conseguem ser lidas sozinhas, apenas sabendo o contexto geral da narrativa. Para Patos, a arte funciona como uma luva, não havendo necessidade de algo altamente realista.
O roteiro possui muita verdade atrelado a ele. Dá para perceber a relação entre a história contada por Beaton e o impacto que esse momento de sua vida teve nela. Apesar de o eixo central de Patos ser toda a questão do assédio e do preconceito de gênero, Beaton ainda consegue trabalhar outras temáticas como a desigualdade social, a falta de perspectiva e a denúncia de o quanto os empréstimos estudantis quebram a vida de estudantes mais humildes. A autora não força a barra em nenhum momento e seu timing irônico/satírico é excepcional a ponto de ela conseguir transformar momentos bizarros em situações em que você se pega rindo. Mas, sabe aquela risada culpada? Quando você se sente parte daquilo que a autora denuncia, por mais que você seja diferente ou não ou não faça parte da realidade dela? A narrativa é bem tranquila de ler, Beaton possui um roteiro claro e simples e o leitor se pega passando rapidamente as páginas. A pesar de haver uma alta rotatividade de personagens devido às mudanças constantes da autora, a gente consegue pegar com certa facilidade quem é quem e o traço da autora é claro o suficiente para distinguirmos entre eles. É uma narrativa sobre vida real, então ele não segue os parâmetros de uma narrativa com altos e baixos. Ou seja, é uma biografia mesmo só que mais localizada naquilo que a autora deseja comentar.
Já vi alguns questionamentos sobre o motivo de Beaton ter ido parar nos campos de petróleo se ela tinha uma faculdade e uma formação boa. E me pego perguntando se alguns leitores realmente entenderam o que leram. Isso porque ela explica bem o que a levou a estar naquele lugar. Por ela ser de uma comunidade pobre e afastada como Cape Breton, não havia muitas oportunidades de emprego para ela. Como qualquer jovem, ela desejava ascender socialmente e dar uma vida confortável a seus pais. Com uma dívida estudantil grande a ser paga lhe restavam poucas opções. Ela expressa em várias ocasiões o quanto a sua escolha por se envolver em algo que nada teve a ver com a sua formação lhe doía. Essa é a realidade de várias pessoas, mesmo no Brasil, que se originam de comunidades pobres. O leque de opções envolve estar com a família, trabalhar em algo que não é o seu sonho e se livrar de dívidas. Perseguir um sonho é uma possibilidade para poucos e envolve muitos sacrifícios. A menos que você tenha tido uma criação privilegiada. Não é o caso de Beaton e nem de suas irmãs.
E aí se insere a personagem em um ambiente de trabalho que é, em sua maior parte, masculino. Ela poderia ter ido a um local diferente? No caso dela, não, porque ela desejava quitar sua dívida e isso exigia uma grande entrada de dinheiro. Tem um momento no quadrinho em que ela está em um momento bem ruim e ela sai dos campos e vai trabalhar em Vitória, uma outra região canadense, em um museu, algo que ela sempre quis para si. O resultado disso é que ela não consegue mais quitar sua dívida embora tenha a tranquilidade que ela tanto almejava. Isso ilustra como é a vida de estudantes que partiram para o financiamento educacional após sua saída da escola ou da universidade. É fato que a maior parte sai com estas dívidas que eles passam boa parte da vida pagando. Os juros dessas dívidas são cruéis e tiram a possibilidade de escolha deles. Muitos se veem precisando trabalhar em áreas completamente díspares do que fizeram no seu período universitário. Esse é um problema social que afeta tanto os EUA como o Canadá. Recomendo até um documentário da série Explicando (da Netflix) sobre Financiamento Estudantil que explica os dilemas vividos por adolescentes que passam por esses problemas.
Mas, Patos é sobre assédio e abuso contra mulheres em campos de petróleo. E vamos deixar claro aqui que a autora faz um bom apanhado de situações que são consideradas corriqueiras. Os comentários são basicamente aqueles que vemos em ambientes como o da construção civil, da mecânica e outros onde o homem é maioria nesses espaços. O que começa como comentários idiotas vai tomando outras proporções à medida em que os dias se passam. Beaton se sente cercada por homens que a enxergam como um pedaço de carne. O isolamento e a falta de controle nessas regiões fazem de qualquer funcionário do sexo masculino um predador em potencial. Beaton descreve situações bizarras como quando ela estava na ferramentaria e formou-se uma fila quilométrica de homens que queriam ferramentas que não precisavam apenas para ficarem secando ela durante o dia inteiro. E quando ela reclamava, dizia-se que ela deveria se sentir privilegiada de ser alvo de tanta atenção. É a velha história masculina: se você está recebendo elogios de homens por seus dotes físicos, não deveria se indignar, mas ficar alegre. Só que não. O processo de objetificação nesses espaços é violento e selvagem.
Quando Beaton buscou o apoio de outras mulheres em seu setor, ela encontrou condescendência da parte delas. Várias sugeriram para ela usar o seu corpo para ganhar mais dinheiro. Ou arrumar um "macho" para protegê-la de outros "machos". Só que Beaton queria apenas ficar na dela. Tem um trecho mais para a segunda metade em que um funcionário mais velho se indigna por ela não estar usando seu corpo todas as noites e que ela teria uma mina de ouro nas mãos. São comentários estarrecedores que você se questiona o motivo disso já que a maioria é formada por homens casados e com família. Sim, esse é outro aspecto cruel da coisa. Aqueles que buscam assediar Beaton são casados ou com o dobro da idade dela. É aí que a autora discute o conceito do "comportamento de manada". O local é isolado e a maior parte dos funcionários se encontram em turnos que podem pegar vários dias com folgas bastante espaçadas. Não raros são os casos onde os homens passam meses sem ver suas famílias. A própria Kate fazia horas extras em um ritmo excessivo para conseguir dinheiro. O que a autora alega é que esses comportamentos só se sucedem porque eles se encontram em grupos de homens que precisam provar sua masculinidade. Há toda uma necessidade de aceitação entre seus pares e pegar uma mulher desprotegida faz parte desse ritual bizarro. Alguns dos comportamentos deles são tão explícitos e fora do padrão que chocam o leitor. Como o do cara que sai do armário da irmã da Kate ou das dezenas de caras que só faltam torcer o pescoço para olhar por baixo da saia da Becky.
O assédio vem também na forma dos comentários e das fofocas. Sejam palavras sobre o corpo da Kate ou boatos infundados sobre o fato de ela ter se envolvido com fulano ou ciclano. Ou até um nervosismo e frustração da parte dos colegas porque Kate é fechada demais e não aceita numa boa os comentários estúpidos. Isso é um somatório de coisas. Até ameaças veladas acontecem a ela. Só que precisamos comentar sobre o estupro. Ou os estupros, no plural. Em um determinado momento, ela se encontra em uma situação de fragilidade e tentando curtir com as colegas enquanto bebe umas cervejas, quando um cara a leva para um quarto e se aproveita desse momento. Algo que se repete outras vezes porque quando Kate se dá conta do estupro em si, sua mente apaga. Ela não consegue processar o ato de violência que aconteceu a ela somado a todo o processo de objetificação e sexualização pelo qual ela passa diariamente. É uma armadilha emocional: ela não pode sair do lugar porque perderia as condições de pagar suas dívidas e nem pode permanecer porque a violência moral e física agora são reais. Para quem está de fora é fácil criar uma lógica de "ah, ela não sai porque não quer" quando na verdade existe todo um impacto na vítima do estupro. É algo do qual somente quem viveu a situação pode ser capaz (ou não) de opinar ou comentar, se é que deseja comentar sobre o caso.
Outros temas fazem parte do escopo da HQ como a ultraexploração dos trabalhadores, a falta de segurança no ambiente de trabalha, denúncias do uso de drogas pesadas. Enfim, daria um belíssimo debate e é por essas e outras razões que Patos ganhou diversas premiações por onde passou. Por causa de sua verdade e de sua capacidade de debater temas bastante sensíveis. Kate Beaton faz isso com uma classe única e me espanta ela ser tão aberta sobre o que aconteceu nestes dois anos em se tratando de situações tão traumáticas. A HQ é bastante necessária para todos nós, para revermos nossos conceitos sobre o papel da mulher em determinadas profissões e ambientes que são "tipicamente" masculinos. A maneira como elas devem ser tratadas e a possibilidade de abrir canais de diálogo e denúncia para quando casos como o que se sucedeu a Kate acontecem.
Ficha Técnica:
Nome: Patos - Dois anos nos campos de petróleo
Autora: Kate Beaton
Editora: Wmf Martins Fontes
Gênero: Biografia
Tradutora: Caroline Chang
Número de Páginas: 440
Ano de Publicação: 2023
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