Em um mundo onde ser notada é essencial para continuar existindo, Manel Naher, uma garota que nunca se importou com isso, vai precisar encontrar formas de aumentar sua presença nessa sociedade insana. Afinal, saber um nome é existir. Mas, o que será que existe no Grande Vazio?
Sinopse:
Quem é essa outra Manel Naher que está na capa dos jornais? Ela está ofuscando Manel Naher, a verdadeira Manel Naher, a heroína desta história! Ela não percebe que, com todo esse sucesso, está colocando a verdadeira Manel Naher em perigo? Se todo mundo começar a pensar nessa Manel Naher que está ficando famosa, em vez de pensar na Manel Naher que passa seus dias nos fundos de uma pequena livraria... bem, podemos esquecer nossa Manel. E, neste mundo, se as pessoas não pensam mais em você, você morre, simples assim.
Pensar em alguém é dar-lhe Presença. Nessa cidade colossal, o horizonte é bloqueado por milhares de nomes, e tudo o que os mendigos pedem é um segundo de atenção. Sobreviver para alguns, tornar-se Imortal para outros – é a Presença que faz essa cidade girar. Manel adoraria virar as costas para tudo isso; mas lá, além dos arranha-céus, há apenas o Grande Vazio, de onde ninguém jamais voltou.
Primeira graphic novel da francesa Léa Murawiec, O Grande Vazio recebeu o Prêmio do Público France Télévisions no Festival de Angoulême, em 2022. A edição tem acabamento de luxo, capa dura, 208 páginas em cores, impressas em papel offset de alta gramatura.
Nesse conturbado mundo em que vivemos, as redes sociais se tornaram uma das maneiras que temos para provar nossa existência. Pelo menos, essa é a maneira com a qual os jovens de hoje se mostram e se validam num mundo repleto de modas, dancinhas e trends. Mas, imagine um mundo onde isso é elevado à décima potência. Léa Murawiec nos coloca em um mundo insano onde saber o nome de uma pessoa significa sua própria existência. Manel Naher e seu amigo Ali se cansaram desse mundo estúpido e decidiram seguir para o Grande Vazio, um lugar que é visto como uma lenda urbana onde as pessoas não estariam mais sujeitas às regras impostas pela sociedade. Mas, tudo isso vai mudar quando aparece uma cantora com o mesmo nome da protagonista com uma música que se torna moda rapidamente. A própria existência de Manel está ameaçada. E, para continuar existindo, só resta uma saída: aumentar sua presença a todo custo.
O que mais me agradou na arte dessa HQ é perceber o quanto o fazer quadrinhos passou a ter influências globais. Já me deparei com outros trabalhos que se influenciam por vertentes artísticas vindas de toda parte, mas Léa Murawiec consegue condensar isso em O Grande Vazio ao combinar duas linhas bem distintas. Seu design de personagens é claramente uma referência aos mangás japoneses. Os personagens são super expressivos e o molde do corpo é feito em um esquema super-deformed que remete ao Astro Boy do Osamu Tezuka. Em algumas cenas os personagens aparecem com pernas ou braços gigantes ou um olho bem expressivo. Isso depende muito de como a cena vai exigir um tipo específico de arte. Por exemplo, quando Manel vai dar um tapa em alguém, a palma de sua mão cresce e se torna muitas vezes maior do que seu corpo, expressando um sentimento de violência momentâneo que toma o seu ser. Para a composição de cenas, em determinados momentos, a autora usa o efeito De Luca, popularizado pelo autor Gianni de Luca. Nele, os personagens são representados realizando diversas ações em sequência no mesmo quadro, buscando um dinamismo no que está acontecendo. Os quadros parecem estar acontecendo quase que em uma animação. Logo nas primeiras páginas o leitor vai conseguir perceber isso.
Para a composição do cenário, acho importante destacar arte e colorização. A HQ é toda feita em tons de branco, azul e vermelho (seria uma menção à bandeira francesa?) o que oferece algumas perspectivas bem curiosas. O cenário é repleto de nomes, por toda parte em todo lugar e em todas as situações possíveis e imagináveis. Afinal, os nomes representam uma maneira de continuar existindo. Em alguns momentos as cenas parecem tão congestionadas que nos perdemos durante alguns minutos observando tudo. E a ideia geral é justamente essa: representar uma sociedade distópica onde se torna fundamental expor o nome de uma forma com que todos pudessem ver e lembrar. No sentido artístico, os cenários são pensados na mesma vibe como Chris Ware monta seus cenários geométricos em obras como Rusty Brown. A cidade se expande até o infinito e a repetição e o caos se espalham pelas páginas. O nível de detalhes é absurdo e fico me questionando quanto tempo Murawiec ficou pensando nessas cenas. Aliás, fica o desafio para os leitores encontrarem nomes conhecidos no meio das placas. Consegui encontrar alguns como o do ex-presidente francês Nicolas Sarcoszy, o do quadrinista Tran Nguyen e até mesmo o nome da própria autora que está no começo do quadrinho.
Esse é um livro extremamente atual e que vai mexer com algumas de nossas preocupações em relação a como nos apresentamos para a sociedade. Vou começar comentando aquele tema que está estourando em nossa frente ao ler o quadrinho que é o tema das redes sociais e do engajamento. É uma crítica feroz à necessidade de precisar justificar nossa existência através de atos nem sempre lógicos. Manel Naher, a protagonista do livro, acaba encontrando na violência a sua maneira de existir. Ao executar uma violência sobre uma outra pessoa, ela causa incômodo e repulsa. Mas, o seu ataque é tão chocante que estimula nos outros uma necessidade de ver, de observar, de entender por que aquilo está acontecendo. Quantas vezes já não vimos indivíduos realizando atos bizarros como competições de comer canela, acender fósforo para saber se produzimos metano, entre outras ações. Mas, há também o voyeurismo de observar os "babados", as "fofocas", as grosserias. Alguns desses fatos provocados para gerar cliques e comentários. Nessa ótica, o famoso pode surgir em segundos em um vídeo feito sem intenção. E a primeira vez em que Manel faz sua atrocidade, ela é acidental. As outras não. São com consciência e motivação para tal.
A HQ fala também de identidade. Até porque ter uma identidade significa existir nesse mundo estranho. E a autora parte da visão de que nossa identidade faz sentido a partir de uma validação dada por outros. Somos quem somos porque outros definem quem somos. Nesse mundo maluco. Até porque há várias visões sobre como uma identidade é construída de fato. Mas, a autora dá um passo além. Essa identidade equivale a uma realidade percebida e aí entra o conceito do Imortal, os indivíduos que possuem uma existência eterna neste mundo. São tão lembrados que se tornam perenes. Só que existem uma pegadinha nisso: essa imortalidade acontece a partir da visão original que as pessoas deram a este indivíduo. Por exemplo, tem um bebê que participa de um diálogo fascinante com a protagonista, que é um bebê porque as pessoas só conseguem enxergá-lo como um bebê. Essa é a imagem existencial dele que se tornou perene. Na cena, o bebê aparece fumando um charuto porque ele possui muitos anos de idade. Só que está preso neste corpo.
A protagonista não é uma pessoa com a qual vamos sentir empatia. Ela realiza diversas ações reprováveis na trama. Sua caminhada é repleta de más decisões e isso a torna interessante. Por ser uma personagem falha, ela foge do clichê da protagonista ideal. É curioso porque ela começa o quadrinho desejando encontrar o Grande Vazio, mas a partir do momento em que sua existência é ameaça, Manel se torna obcecada em sobreviver custe o que custar. Isso vai ter um preço muito caro para ela. O momento em que a trama sofre um salto temporal, o leitor fica chocado com isso. E a própria personagem também fica. No começo achei essa transição meio complicada e não tendo fornecido algumas respostas, mas depois de conversar com outras pessoas que também leram o quadrinho, me convenci de que o choque que a gente sente é semelhante ao que a própria protagonista sente. É o resultado da futilidade de suas ações, de o quanto ela se perdeu em seu caminho e se voltou para um hedonismo absurdo.
Confesso que o final aberto deixado por Lea Murawiec me incomodou muito. Ao te deixar criar uma interpretação sobre os próximos acontecimento, é preciso dar condição aos leitores para imaginar este final. No livro Wonderbook, Jeff Vandermeer destaca que se torna necessário fornecer um resultado satisfatório para o leitor, seja resolvendo os problemas enfrentados durante a trama, fornecendo um desfecho para o clímax ou oferecendo uma evolução para o que foi proposto inicialmente. Finais abertos precisam deixar algum tipo de mensagem, em uma cena que nos leva a pensar o que pode vir a seguir. Eu não me incomodaria se o final da narrativa fosse em um determinado momento em que Manel está com um carro se dirigindo para um certo lugar. Seria como o final de um faroeste quando o estranho que chegou à cidade não tem mais o seu espaço ali e precisa encontrar um novo lugar. E, no fim das contas, é isso. Manel chega a um ponto em que aquela realidade no qual ela sempre viveu não se basta mais para ela. É como se ela estivesse sendo expulsa pelo próprio sistema no qual as engrenagens daquele mundo funcionam.
Um ponto que diferencia O Grande Vazio de outras obras é que a autora nos presenteia com uma narrativa do gênero do realismo mágico. E isso vem de sua influência de autores como Jorge Luis Borges e Bioy Casares. E a narrativa lembra bastante as interrogações deixadas no livro A Invenção de Morel. Em nenhum momento, Lea Murawiec se preocupa em nos explicar por que acontece essas questões de identidade e engajamento. Elas simplesmente são porque são. Nem mesmo os limites são explicados. O leitor é que vai montando conjecturas a partir dos dados que são apresentados e essa participação ativa na montagem do contexto da realidade desse mundo torna a leitura mais aprazível. A narrativa não gira também em torno dessa questão; a protagonista sabe que não tem como evitar seu apagamento quando ele acontecer. Não há algo mágico para evitar isso. Todas são características desse gênero de história. Achei curioso a combinação entre ficção científica e realismo mágico quando este último tende a ser mais combinado com fantasia.
A HQ me agradou bastante e propõe várias discussões que são bastante pertinentes. É uma daquelas narrativas que geram várias discussões até porque o enredo nos incita a encontrar várias temáticas diferentes. Me voltei mais para a questão do engajamento e das redes sociais, mas O Grande Vazio também pode ser entendido como uma crítica ao modo de produção capitalista ou até uma visão fractal sobre o que é real. A arte é bastante interessante porque reúne em si uma série de influências vindas dos mais diferentes lugares. Mas, não se trata apenas de copiar artes distintas e colocar num caldeirão: Lea Murawiec fez dessa combinação algo particular seu, lhe deu vida própria. A narrativa tem alguns problemas como um excesso de subtramas que não são encerradas e um final aberto demais e que pode provocar algum incômodo nos leitores. Mas, é uma daquelas histórias recomendadíssimas ainda mais neste nosso mundo em constante transformação.
Ficha Técnica:
Nome: O Grande Vazio
Autora: Lea Murawiec
Editora: Comix Zone
Tradutor: Fernando Paz
Número de Páginas: 208
Ano de Publicação: 2023
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