Uma guerreira abatida por um conquistador. Um brilho de vingança em seus olhos. Uma escolha que pode leva-la a uma decisão terrível. Essa é a história de Jirel de Joiry e de como ela se vingou de Guillaume. Mas, esta também é a história de como uma guerreira honrada precisou deixar sua honra de lado para alcançar seus objetivos.
Sinopse: Nobre e governante da região de Joiry, em um cenário que aparentemente é a França Medieval, a jovem Jirel vê, apesar de seus esforços, seu domínio ser invadido. Presa, depara-se com a possibilidade de ser igualmente tomada à força pelo invasor, o odioso Guillaume. Movida pelo ódio, está longe dos estereótipos e dos padrões que o gênero costuma destinar às mulheres: não é uma virgem inocente, não espera e nem quer ajuda dos homens ao seu redor - a única concessão a isso, na história de apresentação, é o pedido ao padre para que ouça sua confissão.
Um importante resgate histórico
O gênero de espada e feitiçaria é normalmente atribuído a personagens como Conan e Elric de Melniboné. Mas, muitos se esquecem de que houve uma pioneira no gênero que criou uma personagem fabulosa que, até hoje, é um marco: Jirel de Joiry. Aqui no Brasil não me recordo de O Beijo do Deus Sombrio chegar por qualquer outra editora que não esta publicação feita pela Arte & Letra. O que é lamentável porque parece que estamos provocando o esquecimento da personagem. Finalmente temos a oportunidade de conhecê-la e entender por que ela é tão representativa para a literatura fantástica.
A edição da Arte & Letra está muito simpática e com um acabamento luxuoso. A imagem de capa reproduz uma antiga ilustração de Jirel em preto e branco por trás do título. Só acho que o branco do título poderia ser um pouco mais esmaecido para dar ênfase na ilustração do fundo. Até porque ela é bem impactante. A folha de guarda é em um amarelo mostarda e o acabamento é em capa dura. O papel empregado é o pólen, ou seja, mais durabilidade para guardar na sua coleção. A tradução também está excelente: foi feita pela Ana Cristina Rodrigues, uma das melhores da área. No final, tem uma matéria dela sobre a importância da C.L. Moore para o cenário de literatura fantástica.
A escrita da autora lembra muito outros contemporâneos dela como Lovecraft e Tolkien. Moore tem uma escrita bastante descritiva e ela consegue criar descrições muito boas que acabam ficando com o leitor. Ela é capaz de fazer com que imaginemos o que está acontecendo naquele momento. Seus cenários são sempre muito sombrios. Para aqueles que não gostam do estilo descritivo do Tolkien, vão encontrar uma reação semelhante aqui. Porém, preciso pontuar que achei a forma da Moore de mexer com o cenário e nossas sensações melhor do que a do Tolkien. Claro, Senhor dos Anéis é uma obra maior em escopo, e O Beijo do Deus Sombrio é uma novella, quando muito. Mesmo assim, achei-a mais efetiva nesse sentido. Alguns momentos de narrativa são bizarros como os cavalos em disparada fazendo ruídos semelhantes ao nome de uma pessoa. Uma imagem assustadora e poderosa e que só teria esse efeito no leitor se a autora não tivesse sido capaz de criar essa atmosfera.
Jirel enfiou um calcanhar armado com espora na canela de um dos guardas e se contorceu para fora do seu aperto enquanto ele uivava, lançando um joelho coberto de ferro no abdômen do outro. Tinha se libertado e dado três longos passos na direção da porta antes que Guillaume conseguisse pegá-la. Ela sentiu os braços, vindos por trás, fechando-se ao seu redor e jogou os calcanhares em um ataque inútil contra a perna protegida pela armadura, torcendo-se como uma louca, lutando com joelhos e esporas, forçando sem sucesso as cordas que prendiam seus braços. Guillaume riu e a virou, debochando do brilho dos olhos amarelados. De forma deliberada, colocou o punho por baixo do queixo dela e aproximou-a de sua boca.
A cor vermelha da vingança
Jirel é uma personagem muito bem desenvolvida por Moore. Uma personagem forte e decidida, mas que possui suas fragilidades como mulher. Sua fúria selvagem vista ao longo da narrativa se deve ao fato de ter tido o seu orgulho ferido por Guillaume. Ela deseja retomar suas terras e se vingar da humilhação que sofreu. Há de lembrarmos que o fato de o antagonista ter revelado sua real aparência é um dos principais motivos para que a personagem passasse a "enxergar vermelho". Provavelmente (isso não é dito na narrativa), Jirel escondia seu gênero por trás da armadura de cavaleiro. Ter sido revelada foi um ato de desonra extremo que ela não podia aceitar. Claro que vamos ver depois que seus sentimentos não eram tão claros a respeito do que ela iria fazer a seguir. E isso se liga muito à escolha que ela fez.
E aí vamos ao detalhe sobrenatural da narrativa. Porque, ao ter seus domínios controlados pelo exército de Guillaume, ela precisa encontrar outra fonte de força para poder retomar o que é seu e exercer sua vingança. Mas, o preço a ser pago pode ser alto demais para a personagem. Em sua jornada nos subterrâneos de Joiry, ela vai se deparar com horrores inimagináveis. Esse é um trecho que lembra bastante as narrativas horripilantes de Lovecraft, com seus mundos repletos de terrores que assolam a alma. Temos um pouco de fé cristã sendo debatida aqui a partir do momento em que Jirel precisa deixar de lado parte de seu espírito para obter uma força nefasta para derrotar seus adversários. Digamos que ela troca sua salvação após a morte por isso. A fé dela é testada durante a jornada e o que ela visualiza são testes necessários para ver até onde ela é capaz de ir.
Achei que a autora poderia ter comentado alguma coisa a mais sobre a ligação entre Jirel e Joiry. Fica muito subentendido isso. O foco maior da narrativa é na vingança de Jirel e em como ela vai entrar em decadência para conseguir aquilo que deseja. A própria Jirel é o núcleo narrativo e o que ela vai ou não fazer é o que fica em evidência. Por essa razão eu senti que a narrativa perdeu um pouco de sua força, apesar de o ponto alto de O Beijo do Deus Sombrio é Jirel (curioso e contraditória a minha fala). Pensar que Jirel, uma personagem tão empoderada e decidida, foi criada na época das narrativas pulp, de personagens como Conan, John Carter e Tarzan, é um atestado à força da escrita de Moore. Convido a todos a conhecerem essa personagem. O Beijo do Deus Sombrio é obrigatório a todos os fãs de espada e feitiçaria.
Ficha Técnica:
Nome: O Beijo do Deus Sombrio
Autora: C.L. Moore
Editora: Arte & Letra
Gênero: Fantasia
Tradutora: Ana Cristina Rodrigues
Número de Páginas: 72
Ano de Publicação: 2018
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