Em uma cidade onde fatos estranhos tem acontecido envolvendo um túnel, várias histórias se interligam no passado e no presente. Inio Asano nos mostra que por trás da inocência pode se esconder um lado bastante sombrio.
Sinopse:
Com palco no terreno chamado Nijigahara, o passado e o presente dos alunos de uma escola se entrelaçam intensamente. O boato sobre o monstro que vive no túnel, o segredo que cada família carrega, um “surto” de borboletas que infestam a cidade… Através dos infindáveis eventos e “linhas do destino”, o mestre Inio Asano convida o leitor para adentrar um mundo nunca antes visto.
Queria iniciar esta análise pedindo a ajuda daqueles que nos seguem no Ficções Humanas. Isso porque depois de ler este mangá fiquei bastante em dúvida se deveria ou não colocar um alerta de gatilho antes do começo desta resenha. O mangá trata de alguns temas bem complicados como bullying, suicídio e jovens desesperançosos. Mas, Asano é bastante habilidoso ao manter estes temas encerrados no campo simbólico ou sendo tratados de uma maneira bastante sutil, necessitando de uma leitura bem profunda para compreender melhor o que está sendo dito. Essa é a minha dúvida: tem gatilhos, mas ao mesmo tempo não tem. Então acabei não colocando um aviso, mas se alguém que leu a resenha ou o mangá quiser compartilhar o seu ponto de vista, não vejo problema em editar a resenha e acrescentar um alerta simples (algo que não tem no mangá).
Na cultura oriental, as borboletas possuem um significado bastante especial. Elas podem significar a ascensão de espíritos rumo ao céu; também podem significar transformação com a passagem de um adolescente para a sua vida adulta. Mas, há também um terceiro simbolismo que é o da representação do ciclo da vida e da reencarnação, algo que se assemelha ao primeiro significado. Em Nijigahara Holograph, esses três sentidos se mesclam em uma história onde várias vidas se cruzam em uma história que, mesmo com suas várias estranhezas, revela as dificuldades da vida adulta, os erros e acertos do passado e as consequências de nossas escolhas. Essas histórias tem como origem dois espaços: uma escola com diversos alunos e seus respectivos problemas e um túnel misterioso onde vários acontecimentos estranhos se sucedem um após o outro.
Não é a primeira vez que vejo um roteiro caleidoscópico (com várias histórias que se conectam) do Asano. Li Cidade da Luz há pouco tempo e a proposta é bem semelhante a ela, sendo que neste último as histórias se conectavam através de um conjunto de condomínios. Só que o autor gosta de complicar a própria vida e colocou mais um agravante: as histórias alternam entre o passado e o presente. Vai parecer um pouco confuso a princípio porque não há uma demarcação clara seja no formato dos quadros ou pelo uso de um recordatório. Até que você percebe um elemento comum na alternância desses momentos que é a passagem de borboletas. À medida em que vamos avançando na história vamos nos acostumando com aquele grupo de personagens que se repete e com os simbolismos que ele emprega nas páginas. Ao ler alguns feedbacks sobre o mangá, percebi o quanto há um grande número de pessoas que simplesmente não gosta da história por ser bastante complicada de ser entendida. E ela é, de fato. Asano gosta de criar diversas camadas de compreensão, desafiando seus leitores a explorarem melhor o que estão lendo e tirarem as camadas, uma por uma, como se fosse uma cebola.
Asano usa sua arte para complementar o texto. Poucos são os mangakás que fazem isso com a elegância feita pelo autor. Nijigahara Holograph é repleto de simbolismos, metáforas e ambiguidades. Já expliquei a ideia da borboleta, mas existem várias outras situações como a caixinha de desejos (que alguém pode entender como a caixa de Pandora), a professora que vive enfaixada, o túnel. Esse segundo universo de compreensão por baixo do primeiro faz do mangá obrigatório como releitura. Porque vamos ter outra cabeça quando o lermos anos depois de uma primeira leitura. Ele exige compreensão de mundo, experiência de vida, algo pelo qual os próprios personagens estão passando. Algumas situações vividas por eles só terão suas consequências e reflexões posteriormente. Isso vai acontecer com a Maki, com o Komatsuzaki, com a professora. Volta e meia nós revemos algumas de nossas escolhas do passado e percebemos o quanto fomos tolos ou tomamos uma decisão errada. Isso é parte da vida e mostra que somos seres em constante transformação.
Admito que gostei mais da arte do Asano neste mangá do que em Cidade da Luz até porque ele está mais econômico nos diálogos. Uma coisa que me espanta é como o design corporal dele é característico. O leitor consegue pegar um mangá do Asano e identificar no ato que é dele, sem precisar de identificação. O olhar, o formato do nariz, a circunferência do rosto, os movimentos gestuais. Se posso associar a arte do Asano a algum outro mangaká é ao Masakazu Katsura e sua Video Girl Ai. Um personagem adulto do Asano é um personagem adulto mesmo. Seu rosto transborda aquele peso que a experiência da vida traz. Pequenos significados como inveja, raiva, desgosto, malícia estão presentes. E ele consegue passar essa mensagem sutil sem necessitar de uma fala ou um pensamento. Os cenários estão belíssimos com algumas boas splash pages, algo não muito comum na arte do autor. Gosto também de como Asano usa a passagem de quadros de momento para momento e representa tipicamente o pensamento oriental de composição dos quadros e molduras. No quadro acima dá para percebermos a delicadeza no ato da personagem de pegar uma borboleta. É uma passagem em três quadros, mas que tem um significado de movimento e de pensamento ao mesmo tempo.
A narrativa é bastante pesada e é preciso avisar logo de cara que Asano não romantiza a inocência infantil. É raro vermos esse tema tratado e quando aparece, choca. Até porque crianças são capazes de realizar atos malignos também. Logo no começo da história, no prólogo, vemos a pequena Kimura sendo atirada dentro de um poço por um grupo dos seus coleguinhas de escola. Eles a atiraram no poço porque ela ficava dizendo que tinha um monstro no túnel e o grupinho pensou que ao atirá-la no poço eles não precisariam ter medo do monstro. Citei essa situação em particular porque ela é a primeira que aparece na história, mas não é a única. É até um alerta do autor sobre essa idealização da infância e não devermos encarar todos os seus atos como desprovidos de malícia ou maldade.
Saindo do universo das crianças por alguns instantes temos a professora Sakaki e seus dilemas no passado e no presente. De uma professora atenciosa e preocupada com os seus alunos ela passa por uma situação traumática onde ela acaba sofrendo o efeito colateral de uma tragédia. Embora ela tenha sido a pessoa que menos saiu ferida na situação, suas convicções sobre ensinar e se importar passam a se confundir com a mera vontade de sobreviver. De ao não se envolver demais com as situações vividas por seus alunos, ela não mais se machucar. Quando essa realização acontece, Sakaki cria um distanciamento automático com os seus alunos e isso a transforma completamente. Curiosamente a pessoa que se apaixona e se casa com ela, era alguém que foi cativado por essa sua qualidade. Mas, a relação dos dois se inicia justamente quando a professora está em um processo de transformação. Como uma borboleta que entrou em um casulo. O resultado era completamente esperado e apenas demorou para ter o seu final.
Os simbolismos empregados pelas crianças são bem curiosos. Como elas ainda não tem toda a experiência necessária para detalhar o que lhes aconteceu durante o dia, elas frequentemente usam metáforas. Monstros, passagens, vagalumes. São apenas formas não ditas de outras coisas. Ou até mesmo a honestidade cruel por trás de suas palavras como chamar uma amiguinha de feia ou gorda apenas porque não quer estar perto dela. Ou por algum outro tipo de sentimento não facilmente explicável. Lidamos com esses dois casos ao longo das histórias e as confusões e desentendimentos que geram causam algumas situações bem reais e calamitosas. Por exemplo: dói de ver a colega se declarando para o menino e sendo rechaçada de maneira até cruel por ele. Ou as brincadeiras com apelidos que acabam machucando o coração. E podem causar transtornos que duram por toda a vida.
Nijigahara Holograph é um mangá do qual podemos tirar vários significados e não conseguiríamos fazer a leitura completa dele. Mostra a versatilidade e a sensibilidade de Inio Asano. Não cheguei nem a comentar sobre as famílias desestruturadas que aparecem no mangá, a ligação entre passado e futuro que acontece inesperadamente, os rumos que cada personagem levou. No fundo, esse é um mangá sobre seguir em frente, se perdoar e é somente quando isso acontece é que vemos alguns ciclos finalmente se rompendo. É uma leitura bastante desafiadora, mas ela recompensa o leitor no final porque acaba nos trazendo algumas mensagens para nossas vidas. Quando um livro ou um quadrinho é capaz de alcançar este nível de reflexão no leitor, ele foi capaz de cumprir o seu propósito.
Ficha Técnica:
Nome: Nijigahara Holograph
Autor: Inio Asano
Editora: JBC
Gênero: Fantasia/Drama
Tradutor: Jae H.W.
Número de Páginas: 200
Ano de Publicação: 2016
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