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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "Na Mente de Sherlock Holmes" de Cyril Lieron e Benoit Dahan

Um amigo de Watson é encontrado em um estado bem ruim e com diversos lapsos de memória. Sherlock Holmes se interessa pelo fato e aos poucos vai desenrolando o novelo de uma trama que envolve estranhos desaparecimentos.


Sinopse:


O maior detetive de todos os tempos e seu fiel companheiro e biógrafo desvendam um mistério espetacular nesta história original baseada na famosa obra de Sir Arthur Conan Doyle! Um dos quadrinhos franceses mais inventivos de todos os tempos, com uma narrativa que simula a mente investigativa de Sherlock Holmes, chega ao Brasil num álbum extremamente luxuoso!


Em uma típica manhã de sexta-feira, um agente da polícia bate à porta da casa localizada no 221B da Baker Street, trazendo um velho conhecido do doutor Watson em condições lamentáveis. O estranho relato do sujeito chama atenção de um entediado Sherlock Holmes, que rapidamente percebe estar diante de um mistério muito maior.


As pistas envolvendo um enigmático espetáculo de magia, bilhetes com ideogramas chineses, um pó totalmente desconhecido e desaparecimentos aparentemente aleatórios atiçam a curiosidade do detetive-consultor, que se anima com a possiblidade de um caso que o desafie.


A editora Pipoca & Nanquim convida a todos para um passeio investigativo pela Londres do século XIX, atrás dos indícios que levem à resolução de uma nova e intrincada charada, em um álbum com formato grande (21 x 30 cm), capa dura com um furo na forma da cabeça do personagem (que revela uma bela arte de guarda atrás, interagindo com a capa) e 108 páginas coloridas impressas em papel offset de alta gramatura.


Aproveite esta rara e pitoresca oportunidade para ver, em tempo real e com detalhes, o funcionamento daquela que o doutor Watson um dia chamou de “a mais perfeita máquina de observação e raciocínio”: a mente de Sherlock Holmes!






Dizemos que alguns quadrinhos conseguem se tornar pontes perfeitas entre arte e narrativa escrita. Em Na Mente de Sherlock Holmes, Cyril Liege e Benoit Dahan conseguiram esse feito em um quadrinho lindíssimo trazido pelo Pipoca e Nanquim para o leitor brasileiro. É daqueles quadrinhos que conseguem furar a bolha que existe entre os leitores de quadrinhos e o público em geral. Principalmente pelo fato de Sherlock Holmes ser um personagem que já está entranhado em uma cultura comum mundial. O detetive com capacidades únicas de investigação, capaz de observar detalhes que nenhum outro foi capaz de se atentar, além de possuir uma memória prodigiosa. Este quadrinho consegue ser fiel ao material original do qual se inspirou, mas foi além e nos trouxe uma história inédita que se o leitor não sabe que é uma história roteirizada por Cyril e Benoit, imaginaria que o próprio Conan Doyle teria escrito. Sem falar na arte de Benoit Dahan que brinca com o próprio fazer quadrinhos, colocando o leitor como um participante ativo da história contada.


Falando da edição da editora Pipoca e Nanquim, ela possui aquele apuro editorial típico já do trabalho que eles fazem há tantos anos. Trata-se de uma HQ em capa dura, com um detalhe importante que é um recorte no meio da capa que funciona como uma porta a ser aberta para a mente do famoso detetive. A todo o momento é mencionado e ilustrado na história a mente de Sherlock como sendo um sótão onde ficam armazenados os seus conhecimentos que ele acessa como se realmente fosse um espaço físico. Então esse recorte na capa funciona como uma metáfora visual para isso. A HQ contém dois álbuns do original francês, o que nos oferece a história completinha. Então não se preocupe com o quadrinho ter um volume 1 ou 2, ou 3... é uma história fechada em si mesma. Existe uma vontade dos autores de escreverem outra história, mas a ideia é que essas histórias não dependam de nada. Até se você nunca leu nada escrito por Arthur Conan Doyle é possível entender a narrativa numa boa. O papel usado no quadrinho é um off-set com uma coloração amarelada, que é visual do original mesmo. Fiquem tranquilos porque a gramatura está ótima e as transparências podem acontecer apenas eventualmente e provocadas pelos autores do quadrinho. Vou explicar mais abaixo, mas existem efeitos participativos nas páginas.


Vou dedicar um parágrafo específico para falar da tradução feita por Fernando Paz. Antes de mais nada é preciso que a tradução está ótima e mantém aquele clima de história de mistério do século XIX. Houve todo um apuro com o tipo de vocabulário empregado. Vi algumas pessoas reclamando que nem todo o quadrinho foi traduzido, com as placas do fundo, notícias de jornal e outros detalhes que ficam atrás da cena principal nem sempre recebendo esse cuidado. Não é algo que me incomodou, mas é preciso pontuar que esse é um quadrinho que tem muitos, mas muitos detalhes. A editora optou por traduzir aquilo que fosse essencial para a compreensão da história deixando os nomes das ruas em inglês, alguns outros detalhes também nesse idioma. A gente precisa discorrer aqui sobre se é necessário realmente traduzir tudo o que está presente em um quadrinho. A editora poderia ter feito? Sim. Faria diferença para a compreensão da história? Nem sempre. Na maior parte dos casos, não. Em vários momentos, a mera tradução de uma palavra iria acarretar em alterações na própria arte, o que daria um enorme trabalho, pedindo autorização para cada pequeno detalhe mexido. E olhe que esse quadrinho deve ter dado um trabalho violento para traduzir. Ariel Wu e Camila Suzuki, letreiristas e diagramadores, devem ter tido um trabalho hercúleo aqui. Posso discordar com uma ausência de tradução aqui ou ali, mas no geral, está tudo muito bem feito.


A arte disso aqui é um absurdo de detalhista. Cada página possui formato diferente e uma maneira de apresentar a história que é única em si mesma. É pouco provável que eu vá encontrar outro quadrinho similar a esse este ano; ou melhor, por um bom tempo. A quadrinização se mescla com o ato de contar a história. Tem um momento em que eles estão se dirigindo a outra parte na cidade, então a arte mostra um mapa de Londres e eles indo de um ponto A a um ponto B. As metáforas visuais empregadas são criativas ao extremo como na figura acima em que na página é desenhada a silhueta da cabeça de Holmes com uma representação interna de um personagem atuando em uma espécie de teatro de marionetes. E essas representações são as mais diferentes por toda a obra. Mesmo quando os autores precisam mostrar uma cena comum, eles a inserem de uma maneira criativa como quando Sherlock e Watson vão assistir a uma peça de teatro, representada em uma página dupla de uma forma bem peculiar. O leitor não vai se perder em nenhum momento se seguir a linha vermelha da investigação. Sim, uma linha literal. Vejam na página acima que tem um fio de linha vermelha que atravessa os quadros. Essa é sua ordem de leitura. Por vezes essa ordem pode ser alterada, mas os autores sempre nos sinalizam como proceder.


O aspecto mais legal da arte é a participação ativa do leitor. Não apenas para decifrar as metáforas visuais, as formas alternativas de apresentar uma cena ou até os momentos de luta que são bem curiosos e diferentes. Mas, existem momentos em que teremos de dobrar páginas, fazer rolinhos, colocar uma parte da página contra a luz para descobrir um segredo. As brincadeiras são as mais diversas e fazem com que nossa relação com o quadrinho saia do lugar comum. Não são obrigatoriedades, o leitor pode ler a história sem participar das mesmas, mas é um recurso editorial tão legal que eu procurei participar de todos.


A narrativa é uma história original criada pelos autores e eles seguem muito bem a cartilha de Arthur Conan Doyle. Sherlock é um personagem bem desenvolvido por eles do começo ao fim e o conhecemos em suas virtudes e defeitos. Ele não é apenas o detetive infalível que é quase como a alegoria do que é um deus ex machina. Também o vemos como um homem inquieto, cuja inteligência precisa ser alimentada com desafios o tempo inteiro. Quando não está em uma investigação, sofre com uma depressão profunda que precisa ser mitigada com substâncias alucinógenas. Watson é o seu complemento, um homem honesto e com os pés no chão e que cujo senso comum e sagacidade às vezes fazem com que Holmes tenha seus insights. Ao mesmo tempo, Sherlock é desconsiderado pela Scotland Yard que procura diminuí-lo sempre que tem uma oportunidade. A inteligência do protagonista é desafiada à exaustão aqui e o veremos precisando usar de todas as suas habilidades para solucionar o caso.

A maneira como eles representam o raciocínio lógico de Sherlock é uma aula sobre o método científico. De como o personagem vai precisando juntar evidências para solucionar um grande quebra-cabeças cuja maior parte das peças está ausente. É um processo lento e meticuloso que envolve sair em busca de pistas, observação e a formulação de hipóteses. Os autores foram muito felizes em representar o sótão da mente de Sherlock e podemos acompanhar em "tempo real" como o personagem vai chegando às suas conclusões. Como qualquer obra de mistério, existem alguns momentos que vamos dizer que é impossível que o Holmes tenha chegado àquela conclusão, mas os autores representam muito bem o caminho seguido pelo personagem. Então por mais impossível que seja uma descoberta, as pistas estavam ali e o protagonista apenas seguiu o que ele vinha imaginando ao longo da investigação. Há também os becos sem saída a que o personagem é submetido, mas como ideias que não levam a lugar nenhum, são sumariamente descartadas.


Existem alguns temas históricos mencionados durante a narrativa como a Guerra do Ópio e o imperialismo inglês na Ásia ou os zoológicos humanos que acabam se tornando centrais na investigação da segunda parte. Os autores poderiam ter trabalhado melhor estes aspectos, mas entendo que isso não era o central na trama. Para não entrar em muitos detalhes e estragar a experiência do leitor, basta a gente pensar que durante o século XIX estavam na moda as expedições científicas e a amostragem pública do desenvolvimento de novas tecnologias nas feiras mundiais. Desde a viagem de Charles Darwin no S.S. Beagle que este tipo de expedição se tornou comum e a Inglaterra as utilizou para entrar no interior do continente africano e asiático e levar sua "civilização" aos "bárbaros" que lá viviam. Um dos motes para o imperialismo desse período era a missão civilizadora. O que era encontrado nestes lugares e que fugiam à compreensão do homem branco europeu era encarado como exótico e pitoresco. Deveria ser mostrado quase como em um zoológico para apreciação e debate (ambos altamente preconceituosos) das elites da época. A ideia de um darwinismo social, com o europeu se colocando como o topo da cadeia humana, data dessa época e é um conceito que fugia ao pensamento original de Darwin da evolução das espécies. O resultado prático disso foi a exploração de centenas de comunidades afro-asiáticas por quase um século e seus reflexos estão presentes até hoje no subdesenvolvimento de diversas localidades em ambos os continentes. Sem falar no preconceito étnico que existe até os dias de hoje.


Na Mente de Sherlock Holmes é um quadrinho genial pensado por duas mentes brilhantes que inovaram no emprego do quadrinho como um meio que associa arte e texto. A genialidade das composições artísticas é de fritar o cérebro e cada uma das páginas pode ser apreciada por muito tempo. Mas, o roteiro não fica nem um pouco atrás com uma história que não deixa nada a desejar ao mestre criador de um dos personagens mais fascinantes da literatura mundial e que se tornou um fenômeno da cultura pop mesmo nos dias de hoje. É daqueles quadrinhos que vão agradar a quem curte artes gráficas, quadrinhos e até literatura. E certamente estará nas listas de melhores do ano de muita gente por aí.



Ficha Técnica:


Nome: Na Mente de Sherlock Holmes

Autores: Cyril Lieron e Benoit Dahan

Editora: Pipoca e Nanquim

Gênero: Mistério

Tradutor: Fernando Paz

Número de Páginas: 108

Ano de Publicação: 2023


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