Em um mundo distópico, um homem tenta sobreviver diante de uma realidade claustrofóbica e acaba descobrindo o amor no lugar mais improvável de todos. Mas, para atender aos desejos de seu coração, ele se verá obrigado a enfrentar todo um mundo de problemas.
Sinopse:
Planeta Terra. Época e lugar desconhecidos. Esta é a história de um pacto de equilíbrio sutil. De um lado, os ameaçados, do outro, a ameaça ― da qual, apesar dos anos de convívio, das tentativas de maior aproximação, ainda pouco se sabe. Em um cenário de ritos intermináveis e sob a mediação de uma crescente desconfiança, o quadrinista Rafael Sica e o escritor Paulo Scott criam uma história de arquitetura extraordinária, de busca por tudo aquilo que há de humano em nós ― e colocam em cena o diálogo do qual depende a ordem, a suposta ordem, o concerto dos dias. Da paz. Da única paz. A mais terrível paz.
Segundo Paulo Ramos:
"As histórias em quadrinhos representam aspectos da oralidade e reúnem os principais elementos narrativos, apresentados com o auxílio de convenções que formam o que estamos chamando de linguagem dos quadrinhos."
Essa definição pode parecer simples, mas ela é bem ampla no que diz respeito ao objeto quadrinho. Esqueçam um pouco o conceito de narrativa sequencial de Will Eisner porque ela acaba encontrando alguns obstáculos em seu percurso. Como é o caso desta HQ de Paulo Scott e Rafael Sica. Como definir uma narrativa sequencial somente com base em uma sinopse bem livre? Onde temos uma direção pouco precisa sobre para onde seguir e quem fornece as direções é o próprio leitor? Nessa HQ, subjetividade é uma palavra até pouco precisa para o que está sendo entregue aqui. Somos convidados a participar da composição da história onde toda a informação que temos é que nos encontramos no planeta Terra e se trata de um futuro distópico. Só. E eu achei uma das viagens mais interessantes que eu fiz por esse universo da narrativa gráfica.
Bem, a resenha que eu vou fazer aqui é a partir da minha interpretação do que é a história. Ela pode mudar e muito de acordo com cada leitor. Dessa forma, queria me focar um pouco mais na arte em si do que no roteiro, mas eu preciso passar por ele antes.
Esse é um mundo onde aparentemente as pessoas perderam em parte sua liberdade. Clones das pessoas são criados para realizar as mais diversas atividades. Uma sociedade armamentista a tudo regula, sendo que aqueles que estão no controle exibem a sua mão de ferro. Quando alguém não segue o "falso normal" eles são reprogramados e devolvidos à sociedade. É uma fórmula parecida com a de 1984, do autor George Orwell, mas elevada a enésima potência. O protagonista é alguém que trabalha em uma dessas agências de reprogramação de clones. Sua vida é morosa e tediosa, mas ele vive com um desses clones que recebe o nome de Marta. Só que essas cópias tem um pequeno problema: elas tem um tempo de vida muito curto. São usadas apenas para trabalhos mundanos em que podem ser substituídas com facilidade por novos modelos. Em seu convívio com Marta, vemos que o protagonista começa lentamente a se apaixonar por sua vida com ela. E, em consequência, por ela mesma. Marta, que começa a HQ como uma criança, cresce até se tornar rapidamente uma adulta. O desejo de uma vida mundana do protagonista com ela é o que preenche os seus dias. Ele tenta levá-la para as ruas, procurando disfarçá-la da melhor maneira possível. Só que suas ações vão despertando a atenção de todos aqueles ao seu redor. Todos os que desejam acabar com esse governo opressor. E o protagonista é parte dele. O que será do protagonista e de Marta?
Como eu disse, essa é a minha interpretação do começo da história. Pode não ser a mesma que a sua; pode nem ser aquilo que os autores pensaram. Essa é a mágica de uma HQ sem diálogos. Ela permite um grau de subjetividade que está na própria essência do que significa narrativa gráfica. Exige de nós, leitores, uma capacidade de compreender figura e fundo. De dar sentido a uma sequência de situações ou a uma narrativa sequencial, como Eisner gostava de empregar esse conceito. São situações mundanas que quando unimos em um conjunto coeso são capazes de montar uma narrativa única com início, meio e fim. Tudo é simbólico nessa HQ. Cada objeto, cada parede, cada construção é representativo de alguma coisa. Vai caber ao leitor juntar todas essas peças e o que os personagens estão fazendo na história. É possível até trocar o protagonismo. Eu parti do princípio que o homem é o protagonista, mas em uma última análise é possível usar Marta como protagonista. E eu só usei o nome Marta a partir do título do livro. E se o nome dela não for Marta? E se Marta for o lugar onde eles vivem?
Vi algumas opiniões bem complicadas na internet sobre a narrativa gráfica de Paulo Scott e Rafael Sica. Estamos acostumados a um formato meio comics de narrativa onde o autor e o artista entregam tudo mastigado ao leitor. Uma HQ experimental como essa apresenta diversos níveis de dificuldade para nós. Não é simplesmente passar as páginas em busca de um balão de diálogo. É preciso parar, pensar a composição de quadros, como estes foram concebidos, como eles ocupam as páginas, quantos eles são e como foram distribuídos. Existe até mesmo uma lógica por trás dos capítulos, que são sete ao todo. Podemos até pensar nesse número sete, como um número da criação, ou no caso aqui, da destruição desse mundo. O que eu mais achei legal em Meu Mundo versus Marta foi o fato de os criadores terem me tirado da minha zona de conforto. Me feito pensar cada página, cada quadro, cada conjunto.
Não é daquelas HQs que vão entrar no meu top5 de melhores leituras do ano, mas é uma HQ que vai me ensinar a narrativa gráfica. Que vai me dar uma aula sobre como ler melhor aquilo que eu consumo. Nesse ponto, em um sentido estrito e didático, essa é uma das melhores leituras do ano. Porque me fez pensar fora da caixinha, me fez rever os meus manuais sobre quadrinhos e até mesmo a pensar livremente. Só isso já me faz pensar o quanto ter lido Meu Mundo versus Marta foi essencial para o meu 2021. Porque aquilo que vier daqui para frente nas minhas leituras de quadrinho vai, indelevelmente, ter sido afetada por essa leitura.
O Quadrinho em 1 Quadro:
Não fui muito específico em qual quadro usar da HQ. Apenas queria compartilhar com vocês alguns detalhes da composição do Rafael Sica. Como vocês podem ver de cara, não existem divisões entre os quadros. Ou seja, falta a sarjeta aqui. Ela não foi inclusa para dar uma sequencialidade maior às cenas. O que chama a atenção é que os quadros foram compostos em um esquema de aspecto para aspecto, isto é, cada quadro apresenta um aspecto da cena em si. Pode ser um quadro com o rosto do personagem, outro em uma caixa de leite, um terceiro em uma cama. Ou lá em cima desse quadro: percebam como os quadrinhos retratam o que está acontecendo dentro da sala mostrado no quadro maior abaixo, mas a partir de diferentes ângulos? Isso dá uma sensação de dinamismo e sequencialidade ao que está acontecendo nesse pequeno espaço. Podemos interpretar diferentes ações. Por que isso chama a atenção? Porque o emprego de uma sequência aspecto para aspecto é mais comum em quadrinhos orientais que possuem uma função contemplativa e reflexiva. Rafael Sica nos estimula a refletirmos sobre o que estamos vendo no quadro. Pode ser uma HQ sem balões, mas ela é cheia de detalhes que tornam a leitura mais alongada do que parece em um primeiro momento.
Outra forte característica é a atenção ao fundo. A arte pode até ser simples e me lembra um pouco o estilo de linha clara com os personagens tendo poucos traçados, mas existe uma enorme preocupação com o que está sendo colocado em cena. A disposição dos livros, as placas em uma construção, os grafites e até as hachuras usadas para compor um cenário decadente e devastado. Foi um teste para as minhas parcas habilidades como um curioso na arte de quadrinhos. Fiquei apreciando e tentando entender o que é cada coisa. Minha análise do que Sica desenhou aqui pode estar completamente equivocada e peço desculpas ao artista e aos leitores, mas caramba, eu me perdia pela cena tentando decifrar todas as mensagens escondidas em cada canto.
Um último detalhe na arte é em como o branco é bem empregado. Parece bobagem, mas o vazio de algumas cenas diz muito sobre o que está sendo apresentado. Seja só um rosto pensativo em um imenso quadro branco ou uma personagem sorrindo enviesada. Nós, leitores, não costumamos prestar muita atenção ao branco dos quadros porque ele parece um silêncio dentro da cena. Mas, aqui, Sica faz esse branco ser ensurdecedor. Te apresentar muito mais do que aparenta à primeira vista.
Ficha Técnica:
Nome: Meu Mundo versus Marta
Autor: Paulo Scott
Artista: Rafael Sica
Editora: Quadrinhos na Companhia
Número de Páginas: 160
Ano de Publicação: 2021
Link de compra:
*Material obtido em parceria com a Companhia das Letras
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