A adaptação de um mestre dos quadrinhos das obras de dois mestres da literatura de suspense e terror. Só poderia dar uma obra fenomenal. Confiram a nossa matéria!
Sinopse:
Reunidos pela primeira vez em um único volume, os universos inquietantes de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe adaptados por um dos maiores quadrinistas de todos os tempos.
No início dos anos 1970, durante uma viagem de Madri a Milão, Alberto Breccia compra uma edição barata com os contos de H.P. Lovecraft. O episódio o transporta imediatamente para a sua adolescência em Buenos Aires, quando nas páginas da edição argentina da revista Weird Tales entrou pela primeira vez em contato com o universo daquele que, segundo Neil Gaiman, é “o começo de toda a literatura de horror”. Nos anos seguintes, Breccia criaria versões para clássicos de Lovecraft e também de Edgar Allan Poe, testando diversas variações estilísticas e demonstrando seu domínio excepcional do desenho e da composição.
Das experiências com colagem e monotipo de “O chamado de Cthulhu” à montagem cinematográfica e minimalista de “O coração delator”, dos tons grotescos de “William Wilson” ao clima expressionista de “O estranho caso do Sr. Valdemar”, o virtuosismo e a desenvoltura de Breccia assombram. Exemplo extraordinário da complexa relação entre literatura e quadrinhos, o mundo dos dois mestres do horror ressurge mais perturbador do que nunca. “Eu não queria oferecer ao leitor apenas a minha visão”, anotou Breccia, “também queria que cada leitor acrescentasse algo de seu, que utilizasse a base que eu fornecia para revesti-la com seus próprios temores, com seu próprio medo”.
Esse é um compilado das adaptações feitas por Alberto Breccia dos contos de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe. Só um alerta antes de passar para a resenha: esta não é a única obra que mostra adaptações feitas por Breccia destes autores. Ele chegou a fazer outras ao longo de sua carreira. Este compilado é considerado por muitos como o mais famoso e o melhor, mas isso vai um pouco das preferências do leitor. Por exemplo, a Comix Zone chegou a publicar uma coletânea de adaptações chamada Sonhos Pesados cujos roteiros são ilustrados por um Breccia em outro momento de sua carreira. Uma arte mais semelhante com o que vamos ver no segmento voltado para Edgar Allan Poe no final deste material, com uma arte mais surrealista. Como fã de Breccia, recomendo comprar tudo o que ele produziu. É um mestre dos quadrinhos, insuperável em sua arte e um dos melhores na América Latina. Mas, se você deseja um material onde as principais adaptações estão presentes, podem adquirir numa boa esse material da Companhia das Letras.
Falando sobre o editorial em si, o formato está bem grande. no mesmo também da coleção Alberto Breccia da Comix Zone, com a diferença de que é uma HQ em capa cartonada, algo que muito me agradou. Não sou nenhum sommelier de capa e prefiro algo que se encaixe na minha estante e que prime por outras coisas que não simplesmente uma capa bonita. Por exemplo, a tradução de Bruno Cobalchini Mattos está muito boa, deixando o texto bastante compreensível para os leitores. E olhe que Lovecraft possui um texto bem complicado de traduzir, ainda mais quando adaptado por outro roteirista como é o caso de Norberto Buscaglia. Estamos falando da tradução de um leitor de Lovecraft. Muita coisa poderia ter saído errado. Sobre a edição em si, o papel usado é fosco e de alta gramatura o que ajuda e muito nas pinceladas poderosas de Breccia. O artista é um especialista no preto e branco e se o papel fosse transparente demais, prejudicaria a leitura. Minha única crítica é a falta de um prefácio apresentando a obra ou um texto de apoio no final. Poderia ser algo simples de uma página no começo. Garanto que muita gente boa do mercado como o Érico Assis, o Rodrigo Rosa (que é alguém que já publicou material na Companhia das Letras) ou o Sidney Guzman teriam adorado fazer um texto para uma HQ tão importante. Achei uma falha ainda mais em um clássico como esse. Mas, okay, vida que segue.
Essa coletânea é ótima para vermos diferentes fases do artista. Dá para perceber claramente as diferenças das adaptações visuais da primeira parte dedicada a Lovecraft e da segunda dedicada a Poe. A começar pelo fato de que as adaptações de Poe foram feitas pelo Breccia integralmente enquanto na primeira o texto fica a cargo de Buscaglia. Como todo gênio, Breccia era um homem inquieto. A todo momento buscava aprimorar sua arte, brincando com as fronteiras do concreto e do abstrato. A gente consegue acompanhar a jornada de Breccia em busca do que lhe agradava mais. Nos trechos de Lovecraft já vemos o quanto a arte de Breccia sai de um concreto realista e vai aos pouquinhos embarcando em um rumo mais abstrato, ora com o emprego de um pontilhado mais apertado, ora com o emprego de névoas e esfumaçamentos para dar um clima mais tenebroso e amedrontador para o leitor. Suas silhuetas são apavorantes em adaptações como A Cor que Caiu do Espaço e Um Sussurro nas Trevas. Das adaptações de Lovecraft são as que mais me impactaram visualmente. Só que tomamos um choque quando passamos para as adaptações de Poe. Primeiro o impacto da arte completamente surrealista com traços angulosos e menos reais. Quase como se fosse um quadro de Picasso. O segundo impacto é que todo esse trecho é colorido, algo incomum na obra do artista. Sinceramente, a opção pelo abstrato na segunda parte foi muito acertada porque os contos escolhidos são bizarros como O Gato Preto ou O Coração Delator. Combina perfeitamente.
Falando de roteiro, Buscaglia carrega demais no emprego de textos do Lovecraft. A adaptação parece mais um livro ilustrado do que uma HQ. Sei que isso é usual em adaptações literárias, mas encontrar um bom equilíbrio entre texto e arte é o ideal nessas horas. Em vários momentos, o texto atrapalha a arte maravilhosa de Breccia. Até achei que Buscaglia foi sábio ao empregar partes específicas do texto original e não engessou demais o que estava apresentando. Minhas desculpas aos fãs de Lovecraft, mas não curto muito o autor. O excesso de descrições feitas por ele me desagrada e considero o texto pomposo demais. Buscaglia encontrou um meio-termo nisso. Aliás, percebam o quanto não é necessário carregar demais no texto nas adaptações de Poe. Breccia é econômico e deixa a arte falar por si só. Mesmo que o leitor não tenha se deparado com nada de Poe, é possível entender O Gato Preto numa boa. Talvez o caso mais emblemático seja A Máscara da Morte Rubra que quase não contém balões de diálogo ou recordatórios. E possui muita fluidez, permitindo aos leitores entender as diferentes camadas do texto de Poe.
Das adaptações de Lovecraft queria destacar duas que me agradaram muito: A Sombra de Innsmouth e A Cidade sem Nome. No primeiro, Breccia vai construindo imagens incríveis do protagonista chegando à perigosa Innsmouth. Assim como o texto de Lovecraft vai em um crescendo de estranheza, vamos mergulhando nesse estranho mundo saindo de um cenário mais realista e nítido e adentrando em um mundo enevoado, bizarro e caótico. A arte amplifica a sensação de que estamos sendo observados e de que nosso lugar não é ali. Quando entramos em Innsmouth, nos colocamos à mercê de criaturas ancestrais que desejam tomar nossas almas e aumentar suas legiões. Os personagens de Innsmouth são desconfiados e alguns possuem feições bizarras que o protagonista aponta na mesma hora. Breccia conseguiu captar bem isso nos colocando diante de pessoas cujas faces são quase derretidas, com olhos esbugalhados e uma silhueta disforme. Tem uma cena maravilhosa no final onde o personagem se encontra no alto de um terreno rochoso e Breccia brinca com o branco (a total ausência) e pequenas pitadas de cinza pelo cenário. A conotação disso é a perda de contato do narrador com a realidade que o cerca; ele não é mais capaz de discernir o que é real ou não.
A Cidade sem Nome é um conto pequenininho, mas que mostra perfeitamente a habilidade de Breccia em lidar com amplos espaços. A narrativa se passa em um deserto onde o protagonista encontra uma cidade ancestral com textos e vestígios de civilizações que foram apagadas da história para que estes horrores fossem extintos para sempre. Mas, o mal sempre encontra um jeito de retornar. O cinza de Breccia está maravilhoso seja na representação das dunas, nos mostrando um terreno árido e devastado, seja na cidade antiga onde o preto tomou tudo. As ruínas da cidade mostram silhuetas de civilizações passadas com tabuletas e efígies com uma escrita ancestral. O leitor percebe isso em quadros muito bem delineados pelo autor. Tem um quadro sensacional com duas tabuletas nas laterais e uma figura bizarra no meio que remete a um monstro ou a alguma criatura saída de nossos piores pesadelos. Os quadros arenosos dariam posteres maravilhosos (só retiraria o texto mesmo).
Dentre os textos de Poe os que mais gostei foram A Máscara da Morte Rubra e O Gato Preto. Vou começar pelo último até porque é o meu conto favorito de Poe. E, para mim, Breccia captou toda a estranheza do conto. A arte surrealista com o gato parecendo uma criatura infernal combinou perfeitamente com o protagonista egoísta que detesta o animal. No conto, um homem detesta com todas as forças o gato preto de sua esposa. Em um dia de bebedeira ele acaba por matar e enforcar o bichano. Só que ele começa a ter vislumbres da criatura por toda a parte até que sua esposa adota outro gato. Só que este acaba assombrando-o e ele se fixa em uma mancha branca no peito da criatura que ele imagina ser a imagem da forca com a qual ele matou o primeiro animal. Não vou contar o resto para não estragar a história para aqueles que não leram. A adaptação é inteira de Breccia e ele nos mostra sua habilidade de contar uma história apenas a partir de sua arte. Poucos balões de diálogo e a leitura se dá mais pela sequencialidade dos quadros que nos contam nitidamente o que está acontecendo.
Já A Máscara da Morte Rubra me chamou atenção por como Breccia faz sua quadrinização. No começo da história ele emprega quadros grandes de forma a mostrar aos leitores onde está se passando a história e quem são os personagens envolvidos. Mais para a frente da história ele adota uma formação de seis quadros verticais por página para conseguir mostrar o maldito baile de máscaras. E é como se fosse um enorme carnaval do caos em que os personagens se esbaldam em cenas bizarras e repletas de luxúria e pecado. A história se passa em um reino onde a peste assola o povo enquanto os ricos realizam um baile de máscaras onde os desejos mais desvairados tomam conta dos convidados. Até que.... bem, aí você terá que ler para conferir.
Lovecraft/Poe é uma excelente coletânea de adaptações proporcionadas por um mestre das artes gráficas. Para aqueles que buscam algum artista que facilite a entrada nas obras de um autor que gostariam de conhecer, aqui está uma ótima pedida. Buscaglia reduz o texto de Lovecraft e consegue transmitir a essência do que ele queria trazer para os leitores aliado a um tratamento gráfico de preto e branco que é assustador. Sem falar na ótima adaptação de Poe por Breccia. Para aqueles que desejam conhecer Breccia, aqui ele mostra toda a sua potencialidade seja em uma arte mais concreta e voltada para o uso magistral do preto, cinza e branco ou para uma arte mais abstrata cujo objetivo é assombrar e assustar. Tem para todos os gostos e tenho certeza que essa é uma daquelas obras essenciais na estante de qualquer fã de arte latino-americana.
Ficha Técnica:
Nome: Lovecraft/Poe
Autores: Alberto Breccia e Norberto Buscaglia
Artista: Alberto Breccia
Adaptado das obras de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe
Editora: Companhia das Letras
Tradutor: Bruno Cobalchini Mattos
Número de Páginas: 200
Ano de Publicação: 2022
Link de compra:
*Material recebido em parceria com a Companhia das Letras
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