O líquido pesado se tornou a nova sensação entre os jovens. Uma droga capaz de despertar sensações incríveis, mas que faz as pessoas perderem o contato com sua realidade. S e Luna descobriram uma maneira de potencializar os efeitos da droga e depois de se darem mal ao lidarem com seus fornecedores, precisam fugir. Mas S acaba conhecendo alguém que quer pagar bem para que ele vá atrás de uma artista reclusa.

Sinopse:
Num futuro em que Nova York evoluiu para uma metrópole como aquelas vistas nas histórias de ficção científica, um homem chamado S se envolve em um mistério permeado de amor e drogas ― em particular uma substância viciante chamada "líquido pesado", que é tanto uma droga quanto uma forma de arte. Em sua busca pela única artista com habilidade o suficiente para transformar o líquido pesado na escultura perfeita, S se vê enfrentando psicóticos inimigos mortais, bem como os demônios interiores de seu vício. Caso ele sobreviva a essas provações físicas e mentais, S pode até descobrir o chocante segredo por trás do líquido pesado ― e reencontrar um amor que ele pensou ter perdido para sempre.
Nós dizemos hoje que muitos de nossos jovens estão perdendo o contato com a realidade. Não conseguem entender mais o significado das coisas, lutam para lidar com responsabilidade. Os espaços estão sendo esvaziados com uma juventude alienada e que se torna presa fácil de substâncias alucinógenas para fugir de uma realidade opressiva. É possível fazermos uma associação (até certo ponto) com os anos 70 em que a vibe do paz e amor e a busca por um novo mundo fazia parte dos sonhos adolescentes. Há diferenças bem grandes (como o posfácio pontua bem), mas a verdade é que estamos em um momento semelhante. Heavy Liquid foi escrito na década de 90 em que os quadrinhos lutavam para conseguir novas inspirações. Paul Pope desponta nessa época como alguém capaz de fornecer novos ares, com uma abordagem bem diferente daquilo que os ocidentais estavam acostumados. E ele traz esses questionamentos ao mesmo tempo em que inova com uma arte que questiona o status quo. Isso é Heavy Liquid.
S e Luna estão em um apê apertado lidando com a realidade de que precisam sair dali a qualquer custo. Eles roubaram uma enorme quantidade de líquido pesado (a nova droga do momento) de seus fornecedores e precisam dar no pé antes que eles sejam mortos. Luna deseja apenas uma vida tranquila enquanto S está em busca de um algo mais. Esse mundo é vazio demais para ele e ele quer encontrar aquilo que lhe dê prazer. Enquanto foge de seus perseguidores, S acaba conhecendo um bon vivant japonês que o apresenta a um colecionador riquíssimo. No passado, S atuou como um investigador, então ele é bom em encontrar pessoas. E esse colecionador deseja que ele encontre uma artista de vanguarda cujos trabalhos são o que há de melhor na atualidade. Sua ambição é simples: ele deseja que a melhor artista do mundo usa a substância mais exótica do mundo (o líquido pesado) para criar a obra de arte definitiva. E o colecionador não irá poupar recursos e recompensar para quem conseguir encontrá-la. Seu nome é Rodan Esperella. E há um probleminha nesse novo trabalho: Rodan é uma antiga chama da vida de S. E isso vai fazer com que ele tenha que enfrentar algumas péssimas decisões que tomou no passado.
Sendo bem curto e grosso: a história não funcionou para mim. Já explico com mais detalhes abaixo porque quero tentar convencê-los a dar uma chance para o todo que representa essa história. Sim, eu não sei ainda se pretendo passar esse quadrinho adiante porque ele tem várias coisas interessantes além da história. Primeiro que a edição da Mino está bem legal. Um papel de boa gramatura, a tradução da Dandara Palankof está excelente e ele tem vários extras. E é a esses extras que quero chamar a atenção. Tem uma longa entrevista do Pedro Cobiaco com o Paul Pope e só esse material já vale o quadrinho todo. O Pedro conseguiu extrair muita coisa do Pope, desde a sua visão sobre o mercado editorial dos anos 90, como ele começou até coisas bem específicas da produção do quadrinho. Vale a pena demais entender o processo de quadrinização e balonamento feito pelo Pope, como ele pensa o posicionamento dos quadros na página, de que maneira ele enxerga os trechos de ação e como ele incorporou elementos do quadrinho japonês à sua própria forma artística. É genial, de verdade.

A história acabou não me pegando. Ela acontece em um ritmo bem rápido, então é possível terminar a leitura em uma tarde (o que eu não recomendo). Os acontecimentos se sucedem em um frenesi total, com poucos espaços para o leitor respirar. Mesmo assim, Pope consegue dar personalidade a S, mostrar sua visão de mundo. Pope poderia ter dado algum tipo de separação entre os trechos de sua história, isso permitiria ao leitor assentar aquilo que lhe foi passado nas páginas anteriores. Me peguei várias vezes precisando voltar porque alguma coisa não ficou clara para mim e lá na frente tinha uma consequência disso. Em vários momentos senti que a história não sabia para onde ia e isso limava o meu grau de atenção. Tudo gira demais em torno do protagonista e o elenco de apoio é bem secundário mesmo na história. Isso faz com que o protagonista parece um alienígena no meio dos núcleos de personagem. Esse ponto acredito que tenha sido feito por vontade mesmo do autor. Gosto demais do final da história, embora ele deixe o final bem em aberto. No final é que ele faz uma recuperação de tudo o que S viveu, questionando suas escolhas.
O que acaba me ganhando nesse quadrinho é a arte do Paul Pope. Ela é muito diferente de qualquer coisa que você vá procurar por aí. Transborda personalidade pelos poros. Seu design de personagens ora é minimalista para caramba, ora é bem detalhado. Os cenários são futuristas porque a história se passa em um mundo meio distópico, mas alguns cenários urbanos poderiam se passar em qualquer grande cidade da atualidade. Pope aproveita ao máximo os quadros, portanto vamos ver pouquíssimas splash pages. Como a narrativa é bem veloz, é preciso passar o máximo de informações para que o leitor não se perca. A influência oriental está nas tomadas mais amplas, que me fazem pensar em Akira imediatamente e no emprego das linhas cinéticas. Os momentos de perseguição ou que possuem mais ação são incríveis. Pope tem um ótimo senso de posicionamento dos personagens e as cenas parecem fluir com bastante naturalidade. O emprego das cores também serve a um propósito e elas funcionam sempre em palhetas com duas cores de cada vez. Branco e vermelho ou branco e azul, sempre com o preto dando os contornos dos personagens. Hoje a gente se impressiona com artistas que usam essa mecânica, mas Pope já usava isso há muito tempo.
O protagonista é alguém que parece estar buscando o seu lugar no mundo. É um eterno inquieto e a estabilidade o incomoda. Ele precisa estar eternamente em movimento, buscando os máximos prazeres da vida. A empolgação que o líquido pesado fornece a ele é uma maneira de ele abafar a chatice e a caretice de uma sociedade que não o compreende. É através desse contato com as "portas da percepção" que ele alcança uma espécie de instinto mais elevado que o faz tornar o chato em algo interessante. É como se as drogas funcionassem como uma lente, um filtro para melhor entender o mundo. Só que o uso excessivo está criando nele um tipo de dissociação da realidade. É como se surgisse um novo "eu" que seria o habitante dessa outra realidade. Não há mais espaço para o S que habita o mundo normal. Quando ele se dá conta disso, de que está perdendo a necessidade de existir, isso o assusta e coloca muitas coisas em perspectiva.

No fundo, a busca por Rodan é uma busca por si mesmo. O que ele espera criar para si? Nessa missão maluca que lhe foi dada por um homem riquíssimo, ele se depara com todo tipo de situações complicadas como precisar fugir de seus antigos fornecedores, lidar com um grupo de mulheres que extorquem seus clientes em sessões de bondage e rever o seu amor do passado, alguém que já o superou e tenta viver a vida longe das drogas. Ao mesmo tempo, S tenta entender arte através de outro viés. O que torna algo uma obra-prima? É estar sob o escrutínio do público e da crítica ou fazer parte da coleção particular de algum homem rico e ambicioso? Quais elementos tornam uma peça memorável? Nesse mundo imaginado por Pope as peças possuem uma tridimensionalidade própria, algo que pode ser difícil de ser compreendido para aqueles que apenas definem a arte tradicional como arte.
Concluindo, Heavy Liquid é uma narrativa repleta de camadas, com uma pegada até meio beatnik, de questionamento de status quo ao mesmo tempo em que coloca um homem em uma jornada atrás de si mesmo. Não é algo que tenha necessariamente me agradado, mas a arte do Pope é magnífica. Várias tomadas de ângulo diferentes, o emprego de elementos do quadrinho japonês, a preocupação com o detalhamento entre tantas outras coisas. A narrativa não me fisgou, talvez porque eu não estivesse no momento certo para ela ou só não me agradou mesmo. Por outro lado, os extras são fascinantes e vão agradar a qualquer artista que queria aprender mais com um mestre como Pope.


Ficha Técnica:
Nome: Heavy Liquid
Autor: Paul Pope
Editora: Mino
Tradutora: Dandara Palankof
Número de Páginas: 272
Ano de Publicação: 2021
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