Se pensam que já acabou, estão muito enganados. Na parte final desta resenha temos o incrível A Loteria, um conto muito aclamado de Shirley Jackson, além de um conto de Stephen King que foi deixado para o final.
Última parte dessa megaresenha sobre essa incrível coletânea. Os links para as partes anteriores estão na Ficha Técnica acima. Os contos presentes nesta terceira parte são:
14 - "O Tarn" (de Hugh Walpole) - 1928
15 - "Na Cripta" (de H.P. Lovecraft) - 1925
16 - "Os Olhos que Comiam Carne" (de Humberto de Campos) - 1932
17 - "A Loteria" (de Shirley Jackson) - 1948
18 - "Venha ver o Pôr-do-Sol" (de Lygia Fagundes Telles) - 1988
19 - "Vovó" (de Stephen King) - 1984
Vamos às resenhas:
14 - "O Tarn"
Autor: Hugh Walpole Avaliação:
Publicado originalmente em 1928
Uma boa história sobre a inveja humana. Walpole consegue navegar bem por esse tema e nos apresentar uma história bem corrosiva sobre um escritor que tem o seu sucesso prejudicado pelo seu amigo que publica outro material semelhante quase ao mesmo tempo. A gente consegue visualizar toda a inveja que corrói a alma do personagem e Walpole é muito feliz ao nos transmitir esse sentimento negativo vindo do personagem. Entretanto, eu não gostei tanto do final.
Fenwick é um escritor prejudicado por seu amigo Foster que sempre publica algo próximo a ele. Todas as vezes os livros de Fenwick acabam prejudicados pelos lançamentos de seu amigo/rival. Em uma visita de Foster à sua casa, Fenwick alimenta sentimentos de ódio em relação a ele apesar de tentar apresentar uma cordialidade hesitante. Em um passeio rumo ao tarn (um pequeno lago escondido na propriedade de Fenwick), ele alimenta pensamentos de se livrar de Foster de uma vez por todas. Terá ele coragem de atirar Foster em seu tarn?
O tarn é um ótimo exemplo de uma narrativa em primeira pessoa com um narrador completamente não confiável. Aqui vemos a história sendo contada pelo narrador... é o seu ponto de vista que está sendo apresentado. Por essa razão não dá para saber o quanto dessa rivalidade é verídica ou é apenas uma inveja de Fenwick quanto ao sucesso de Foster. É complicado dimensionar isso. A escrita é carregada e a gente tem aquela sensação de hostilidade que paira no ar durante a leitura. As descrições de Fenwick de como ele efetuaria o assassinato de seu colega se tornam cada vez mais frequentes.
Quando acontece a virada narrativa vemos que Fenwick é um belo de um covarde. Sua vontade de assassinar Foster não é nada além disso: vontade. Claro que existe uma vontade sobrenatural presente ali que parece empurrar o protagonista a fazer algo. Mas, vemos que depois da virada, o protagonista acaba ficando assombrado pela escolha tomada. Não é arrependimento, mas uma espécie de remorso; quando você não quer dizer que fez algo horrível. A história tem um tom assustador no sentido de explorar uma psiquê tortuosa.
15 - "Na Cripta"
Autor: H.P. Lovecraft Avaliação:
Publicado originalmente em 1925
Quem acompanha o meu trabalho sabe o quanto eu não gosto dos contos de Lovecraft. Tem ver com a escrita e o ritmo de leitura que não me agradam. Mas, me vi em um conto que eu até achei legal e consegui curtir. Lovecraft é um amante de histórias curtas e talvez seja nelas que ele consegue brilhar melhor do que em romances mais longos.
George Birch é um homem mesquinho que trabalha como coveiro na cidade de Peck Valley. Ele é um homem que faz várias pequenas maldades às pessoas mortas. Por exemplo, cortar as pernas de um morto para ele poder caber em um caixão mais barato enquanto cobras mais caro dos familiares. Essa entre outras. Um dia ele acaba preso dentro de um mausoléu quando fazia a transferência de mortos recentes para suas respectivas tumbas. Birch vai descobrir que a vingança é uma vadia maldita e que nem sempre fazer o mal contra pessoas já falecidas permanece impune.
Eu adorei o humor negro por trás desse conto. Finalmente alguma história do Lovecraft que eu realmente gostei. Lovecraft não é verborrágico e muito menos pomposo aqui. Ele tem uma ideia simples e cumpre ela do início ao fim. O protagonista é um canalha que precisa ser punido de alguma maneira. O leitor sabe que ele será punido de algum jeito. Resta saber como e quando. Quando a punição vem, ela acontece da maneira mais gore e cruel possível. Ou seja, o autor entrega uma história muito satisfatória para o leitor. Gostei do tamanho da história, do desenvolvimento da mesma e até do desfecho. Ou seja: recomendo. E nem dá para comentar mais muita coisa sem entregar os pontos maiores do conto.
16 - "Os Olhos que Comiam Carne"
Autor: Humberto de Campos Avaliação:
Publicado originalmente em 1932
Essa é uma daquelas belas surpresas que acontecem durante a leitura de uma coletânea. Eu definitivamente não conhecia esse autor e fiquei sinceramente impressionado com a habilidade dele de construir uma história repugnante. Faz dele um autor à frente de seu tempo. Esse é mais um conto que vai preparando o leitor até entregar o impacto desejado pelo autor. Quando ele entrega, somos surpreendidos com uma das melhores cenas que eu pude ler nessa coletânea.
Paulo Fernando é um escritor que acabou de fazer um grande lançamento. Mas, ele acorda pela manhã cego, o que o deixa desesperado. Vemos o mundo do escritor cair de ponta a cabeça. Ele tenta se conformar com a nova situação, mas tudo leva a crer que sua vida acabou. Até que ele conhece uma técnica de cura de um médico estrangeiro que pode ser sua única esperança. Paulo faz de tudo para entrar em contato com este médico durante uma visita dele à América do Sul. A cirurgia parece ter saído muito, mas será que o resultado irá agradar ao protagonista?
Uma bela escrita a de Humberto de Campos. Ele consegue nos apresentar uma situação comum e a partir dela ele especula o que vai se tornar o elemento do medo. Primeiro temos o protagonista precisando atravessar todo o medo de se ver sem visão. Nos parágrafos que se seguem somos capazes de sentir todo o desespero transbordando do personagem. As descrições de Humberto de Campos são muito vívidas o que torna tudo ainda mais assustador. Quando o raio de esperança surge, é lógico que o protagonista corre atrás. Quando aparece o médico e a cirurgia acontece, achamos que nada mais pode sair dali. Mas é na página final que o verdadeiro desespero acontece. Que cena perturbadora! E novamente o autor consegue entregar as emoções sentidas por Paulo. Quando ele vê sua nova situação, ele não consegue suportar. E deixarei o resto por conta dos leitores. Belo exemplo de conto escrito por um autor nacional. Só tenho elogios.
17 - "A Loteria"
Autora: Shirley Jackson Avaliação:
Publicado originalmente em 1948
Uma das maiores virtudes de Shirley Jackson é a capacidade de manter o suspense do leitor. A incrível capacidade de não entregar de imediato o que ela quer dizer com a história. Aos poucos ela vai nos enredando, construindo uma naturalidade no estranho para que ao final ela possa nos derrubar de uma só vez. A Loteria é, de fato, um conto memorável da autora. Algo que figura entre os clássicos do terror no século XX.
Somos transportados para uma pequena aldeia onde em um determinado dia acontece uma loteria. Todos estão animados para este dia e se reúnem na praça central. Famílias se cumprimentam, brincadeiras entre companheiros são feitas. Tem todo um clima festivo rolando no ar. A velha caixa da loteria está gasta e precisa ser trocada por uma nova. Cada família escolhe o seu representante para tirar um pequeno papel. Tudo é cercado de um sentimento de companheirismo e solidariedade, dando um ar leve à trama. Porém, uma pergunta paira no ar: o que está sendo sorteado nesta loteria?
O que eu mais gostei em A Loteria é o suspense. Shirley não entrega nada antes do final. Absolutamente nada. Você apenas está ali curtindo um dia a mais nas pessoas daquela pequena comunidade. Detalhes mundanos são compartilhados entre os convivas de uma aparente festa. O clima do conto é tão leve que quando chega a página final você toma um susto. A gente começa a ver que algo está errado quando termina a primeira etapa do sorteio. Aí é que a coisa toda degringola. Méritos totais para a mestra do suspense em conseguir imprimir um ritmo tão estranho a uma narrativa violenta como essa. Uma boa escrita e com diálogos tão comuns que você acreditaria se o seu vizinho estivesse os fazendo. Essa naturalidade, algo já visto em Assombração na Casa da Colina, é uma marca registrada dela. E mais: como ela não dá informações antes do final, ela deixa o leitor tentando descobrir o que diabos está acontecendo. Eu imaginei que seria algo terrível, mas nada me preparou para aquilo.
Aqui também tem uma discussão sobre velhos e novos hábitos. Alguns dos membros da comunidade estão criticando vilas próximas que passaram a não mais adotar a loteria. Claro que até aquele momento apenas desconfiamos do que se trata todo aquele ritual. Não dá para saber exatamente o motivo pelo qual ele acontece, mas só podemos desconfiar: controle populacional, manutenção da ética, sentimento de solidariedade, libertação de uma violência contida. Dá para arriscar muita coisa.
18 - "Venha Ver o Pôr-do-Sol"
Autora: Lygia Fagundes Telles Avaliação:
Publicado originalmente em 1988
Se podemos dizer que A Loteria tem um ritmo natural imposto pela autora, este conto segue pelo mesmo caminho. O que sentimos pelos nossos amores passados? Inveja? Raiva? Remorso? Lygia Fagundes Telles vai procurar explorar um pouco dessa relação em sua narrativa. O que vai se suceder no final te deixará boquiaberto com o cinismo do ser humano.
Raquel e Ricardo marcam um encontro após muitos anos sem se ver. Um amor passado que aparentemente fez com que cada um tomasse seu próprio rumo na vida. Mas, este encontro vai nos mostrar uma conversa franca entre o antigo casal que se lembrarão dos momentos felizes enquanto discutem um pouco dos seus sentimentos. Ricardo conta a Raquel que conhece um bom lugar para ver o pôr do sol. Quando eles chegam até o local, Raquel estranha o fato de o lugar escolhido ser um cemitério. Ela logo pensa se tratar do lado brincalhão de seu antigo amor. Porém, histórias que se passam em cemitérios nunca dão certo.
Será que nos conformamos mesmo com o fim de um amor? Esta é uma pergunta mágica que sempre volta à nossa mente uma vez ou outra. O que faltou? O que falhou? As pessoas quase sempre são regidas por aquele mosquitinho que diz "e se...". Mesmo as pessoas mais seguras se perguntam vez ou outra sobre amores passados. Lygia nos coloca diante de um casal normal que parece ter seguido em frente. Ele com seus negócios e seus investimentos enquanto ela se casara e até tem medo de seu marido ficar com ciúmes diante deste encontro. O que leva alguém a cometer um ato de violência contra outro? A autora vai trabalhando com os sentimentos de ambos e o leitor é capaz de intuir que alguma coisa está errada com um deles. Essa desconfiança vem de pequenos detalhes ou olhares estranhos dados durante a conversa. Esse é um daqueles contos que o leitor vai precisar ser atento e pescar pequenas pistas que a autora vai deixando ao longo da narrativa. Isso porque o ato final é tão súbito que pega o leitor de surpresa se ele não tiver percebido as migalhas de pão deixadas no caminho.
É um conto surpreendente que, assim como o anterior, é tratado com uma naturalidade assustadora e aos poucos vai se revelando obscuro. Se eu gostei da escrita da Shirley, o que dizer da brasileiríssima Lygia Fagundes Telles? Só tenho a recomendar.
19 - "Vovó"
Autor: Stephen King Avaliação:
Publicado originalmente em 1984
Falar em contos de terror e não incluir algo do King chega a ser uma mácula. Apesar de que eu achei um pouco forçado ter colocado algo dele aqui. A coletânea estava tão boa que o King serviu mais para criar uma sombra sobre os demais contos. De qualquer forma Vovó é um conto que faz parte da coletânea Tripulação de Esqueletos, que alguns consideram a melhor coletânea de contos do mestre (eu prefiro o Sombras da Noite).
Depois que seu irmão Buddy sofre uma contusão no pé, George é enviado para cuidar de sua avó enquanto sua mãe tira uma noite para resolver seus problemas. Mas, o que parece ser algo normal, toma tons do bizarro quando George começa a descrever sua avó. Um ser estranho e abjeto que tem o estranho hábito de abraçar seus parentes. Vamos acompanhar essa noite ao lado de George enquanto ele torce para que sua avó não desperte de seu sono. Porque ele não sabe o que pode acontecer se ela despertar. Outro medo dele é que ela morra dormindo e ele precise tomar alguma providência. Essa noite não poderia ser mais estranha.
É incrível como King consegue tornar uma narrativa simples em algo absurdo. Como uma visita à avó pode ser algo tão macabro. A escrita do autor vai dando personalidade aos personagens e mais uma vez a habilidade que ele tem de criar personagens verossímeis transparece nas páginas. Mesmo sendo um conto relativamente longo, a escrita acaba te prendendo e você deseja saber o que vai se desenrolar a seguir. São contados diversos causos envolvendo a velha e os membros da família. King tem o dom de ampliar narrativas e de repente pôr o pé no acelerador e as coisas acontecerem de uma forma veloz e alucinante.
Temos também uma homenagem a Lovecraft presente na narrativa. Digamos que temos alguém na família que é fã de Nyarlathotep, um dos muitos anciãos criados pelo autor. Os elementos sobrenaturais se espalham brevemente pela narrativa e você até julga ser apenas isso: uma homenagem. Vários momentos a gente pensa que o menino está imaginando coisas e nada daquilo está realmente acontecendo. Afinal, o medo pode criar ilusões para nós. Mas, da metade para o final, a narrativa começa a ganhar contornos assustadores até um final assustador. Vovó é uma daquelas histórias que eu adoraria ver sendo filmadas em uma série de TV ou em um programa a la Amazing Stories.
Ficha Técnica:
Nome: Contos Clássicos de Terror Organizado por Julio Jeha Editora: Companhia das Letras Gênero: Terror Número de Páginas: 408 Ano de Publicação: 2018
Outras Partes:
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
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