Richard Wright é um homem em uma encruzilhada: sendo filho de um homem branco e uma mulher negra, não sendo nem um e nem outro. Após uma situação trágica, ele foi expulso do FBI e agora tem uma chance de se redimir em uma perigosa operação de infiltração em uma rede de supremacistas brancos.
Sinopse:
Segundas chances não são fáceis. Para Richard Wright, agente do FBI que caiu em desgraça, a redenção está muito perto. tudo que precisa fazer é se infiltrar em um grupo supremacista e sobreviver para testemunhar. De ascendência afro-americano, mas branco o suficiente para enganar quanto a própria origem, Richard aceita o desafio e mergulha nesse submundo sórdido para encontrar o responsável pela morte de outro agente e desbaratar um grupo que usa dinheiro e poder a serviço de ideologias extremamente perigosas. É a chance que ele esperava para encarar os fantasmas do passado e a última oportunidade de colocar a vida em ordem diante de si e aos olhos dos outros. Uma história policial do roteirista Bryan Hill (The Wild Storm: Michael Cray, Detective Comics) e do artista Leandro Fernandez (Vikings, The Old Guard). CARNIFICINA AMERICANA reúne as edições 1 a 9 de American Carnage.
Poucas HQs conseguem dialogar tanto com o Brasil quanto Carnificina Americana. Em vários pontos. Claro que existem alguns temas e situações vividas dentro da HQ que remetem diretamente à conjuntura americana, mas o resto está todo ali: tráfico de influência, preconceito étnico, exploração de vulneráveis, política e religião querendo andar juntas, fundamentalismo religioso. É impressionante o quanto Bryan Hill foi capaz de colocar em nove edições, fazendo um apanhado das piores coisas acontecendo em nossa realidade nos últimos anos. O autor incorporou parte do espírito de Garth Ennis para escrever essa HQ; disse parte, porque Ennis é impossível de ser copiado. Ao terminar essa série limitada a impressão que fiquei é de que ela poderia facilmente ser uma minissérie da HBO ou do Starz. E ela parece ter sido concebida pensando nisso. E não é um problema, se pensarmos que é uma HQ que fala de assuntos tão próximos.
A arte de Fernandez bebe muito da do Frank Miller em obras como Cavaleiro das Trevas ou Sin City. O emprego de um ângulo de câmera cinematográfico, as grades de nove quadros de Watchmen (do Alan Moore). O objetivo é oferecer um tom realista ao quadrinho com personagens vivendo momentos de drama e tensão. Não é uma arte redondinha e chega até a ser meio complicada de admirar em alguns momentos, mas ela se conecta bem ao roteiro. Senti falta de alguns momentos de ação mais explícita para poder aproveitar a habilidade do artista. Podia ser uma perseguição, um tiroteio ou qualquer outra coisa. Não acontece. O roteiro busca empregar a arte para explorar o lado humano dos personagens. Algo legal que Fernandez faz é como ele deixa Wynn Jones quase sempre com o rosto escuro ou suplantado por uma sombra. Somente quando ele revela os seus reais sentimentos é que vemos sua silhueta de homem branco. Um truque de arte para se ligar ao roteiro de um supremacista branco que se pinta como alguém que ajuda as minorias étnicas. Também senti falta do artista explorar mais as expressões faciais ou gestuais dos personagens. Isso colocaria mais um traço de humanidade neles. Mesmo a Jen sendo a filha do grande chefão, ela ainda se importa com sua filha, presa em dois mundos. Mas, isso não transparece em seu rosto, sempre impassível. Passando pelas páginas, as únicas vezes em que os personagens demonstram emoções é quando eles põem ou escondem a mão no rosto. Ou quando eles direcionam seu olhar pelo horizonte. Existem outras formas de fazer isso.
O roteiro é uma maravilhosa crítica social a uma extrema direita conservadora que busca o seu espaço na política de qualquer forma. Na trama temos Wynn Jones, um pregador carismático que usa os seus movimentos sociais para se promover e buscar uma vaga como senador nos EUA. Por trás disso tudo, ele usa uma milícia armada de extremistas para levar a cabo a sua ideologia de destruição de negros. O bom e velho discurso preconceituoso que se adaptou a uma nova realidade no século XXI. Um homem de negócios que não tem escrúpulos de pintar uma máscara de bom samaritano e que por trás disso tudo lidera toda uma ala radical como ele. Seu poder financeiro serve para subornar agentes federais, ter espiões em toda parte e aliciar pessoas em estado de vulnerabilidade. A narrativa se inicia quando um dos seus homens mata um agente do FBI em circunstâncias cruéis. É aí que a agente Sheba entra em contato com Richard para ajudá-la a se infiltrar na organização de Wynn e conseguir provas de seus crimes.
Mais fácil falar do que fazer. O personagem de Richard é um homem amargurado por um passado de desafios e tristezas. Sendo o produto da miscigenação entre brancos e negros, ele aparenta ser um homem branco. Sendo assim, ele não se sente nem branco e nem negro, não sendo aceito por nenhuma das comunidades. Apesar de que achei um pouco forçada essa ideia. Até entendo toda uma questão de identidade internamente, mas ampliá-la para um escopo social? Posso estar enganado, mas acho pouco verossímil. Enfim, é um homem atormentado por um problema de pertencimento que se torna agente do FBI e atua como alguém capaz de se infiltrar em organizações criminosas. Um trabalho difícil e que exige muito trabalho mental e emocional para isso. É uma vida sob pressão o tempo todo. Durante uma de suas ações, ele acaba sendo obrigado a matar um garoto inocente, algo que o marca para sempre. Tendo caído em depressão, o agente se afoga em bebida e drogas peadas até ser mandado embora do FBI. Sheba entra em contato com ele por Richard ser um dos melhores agentes na arte da infiltração. Mas, claro, toda essa bagagem emocional terá um papel importante na trama.
A narrativa fala muito de EUA, e ela é um produto da era trumpista. Só que ela pode facilmente refletir a realidade brasileira. Movimentos neopentecostais que possuem algum tipo de organização extremista interna, políticos da bancada da bala que defendem a morte de negros ou indígenas. A fala de Wynn Jones para Richard acerca de suas motivações para fazer o que faz é muito próxima da de vários empresários e políticos brasileiros. É a normalização do caos, da morte e de um falso moralismo que prega a morte de inocentes. E, para isso, nenhum deles teme usar os próprios indivíduos que eles aliciam, sejam pessoas em estado de vulnerabilidade ou meros fieis, para cometer os seus crimes. Nenhum destes supremacistas que são líderes de suas organizações sujam suas mãos. Eles mandam matar.. usam seus recursos para comandar. E é como Wynn comenta mais para o final da HQ: por mais que ele seja preso, ele vai achar um jeito de sair; e mesmo que deem um fim nele, outro dois tomarão o seu lugar, como a cabeça de uma hidra.
Jennifer é a filha de Wynn. Uma mãe solteira cuja filha, Amy, tem deficiência auditiva. O que já seria uma vida difícil se complica ainda mais por Jen atua ativamente entre os comandados de seu pai. Em determinados momentos é possível até acreditar que ela é a real força por trás da organização. A HQ nunca deixa muito clara essa posição. Fato é que ela é uma mulher atormentada e que desejaria apenas ser uma mulher normal, precisando superar as dificuldades do cotidiano. Não a percebo como alguém materialista ou apegada a dinheiro ou poder. Ela é um fruto do contexto em que vive e não há saída simples. Tem um ótimo momento lá pela metade do encadernado onde Jen oferece uma saída a Richard: pegue a chave do carro e desapareça. Essa é uma oferta que ele, nitidamente, gostaria de oferecer a si mesma. Não percebo Jen como um par romântico de Richard, mas mais como alguém que se envolve sexualmente com outra pessoa em um mundo de violência. Richard foi aquele que demonstrou carinho e atenção a ela. Observou sua filha com respeito, sem se importar com sua deficiência. Fica claro para o leitor desde o começo que essa relação não teria futuro por tudo o que está em jogo na investigação. Mas, Bryan Hill é habilidoso em nos fazer acreditar que há uma saída. Resta saber se terá e como será.
Hill trabalhou pouco a personagem da Sheba. Ele até nos apresenta uma personagem interessante e que vale a pena ser observada. Uma agente que deseja fazer justiça pelo seu parceiro morto de maneira trágica. Alguém que está disposta a atravessar uma linha fina que separa o trabalho de investigadora e prender um criminoso. Seu instinto de vingança é forte, mas ela ainda assim deseja fazer as coisas dentro das regras da organização. Deseja uma investigação e provas para colocar Wynn na cadeia. Mas, ela sofre com vários obstáculos: ser uma mulher negra em uma organização federal e estar começando a sofrer de uma doença degenerativa. Ela tinha tudo para ser uma grande personagem e até ser um par romântico para Richard formando um triângulo amoroso entre ela, Jen e Richard. Mas, Hill acaba escanteando-a para dar mais espaço para Richard e Jen.
Essa série precisava de mais três volumes para poder dar mais espaço para seus personagens desenvolverem seus arcos. E o final parece um pouco apressado, sim. Faltou uma dosagem no ritmo da trama, que é muito boa. Mas, ela foi vítima de prazos e necessidades, o que a fez perder o prumo. Gostei da narrativa como um todo, só que esses detalhes a fazem perder todo o potencial que tinha. A arte cumpre o seu papel e não passa disso. Esqueci de comentar sobre as cores de Dean White que, para quem conhece o seu trabalho, vão logo se lembrar de Black Science. Ele sabe empregar muito bem cores frias o que combina com o ambiente melancólico dessa HQ. Os poucos momentos em que as cores seguem para o outro espectro é quando acontece algo realmente dramático. No mais, Carnificina Americana foi uma daquelas HQs que li em um momento chave da história do meu país. Parece brincadeira, mas se eu tivesse lido em outro momento, possivelmente não teria curtido tanto assim.
Ficha Técnica:
Nome: Carnificina Americana
Autor: Bryan Hill
Artista: Leandro Fernandez
Colorista: Dean White
Editora: Panini Comics
Gênero: Drama
Tradutor: Érico Assis
Número de Páginas: 218
Ano de Publicação: 2019
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