Continuamos no campus da UniFenda onde histórias se desenrolam todos os dias. Vários autores se debruçaram sobre o tema e expuseram suas visões sobre uma infinidade de assuntos.
A segunda parte desta resenha contém os seguintes contos:
8 - "O nosso tempo é feito de espera", de Roberta Spindler
9 - "Uma noite no elevador", de Camila Costa
10 - "O ciclo da vida", de Tau Nagy
11 - "Quantas novalginas você já tomou hoje?", de Pedro Poeira
12 - "Dissonâncias", de Eric Novello
13 - "Edição de amanhã", de AJ Oliveira
14 - "Tipos de pessoa", de Jana Bianchi
8 - "O nosso tempo é feito de espera"
Ficha Técnica:
Autora: Roberta Spindler Avaliação:
Sabemos que a Fenda está se fechando e isso está sendo entendido como uma possível ameaça aos alunos da UniFenda. Todos vivem sob a incerteza de terem seus poderes desativados ou se virem como a última geração de fendistas. Enquanto isso, Luna precisa conviver com o seu poder: o da insônia. Ela não consegue dormir. Essa habilidade lhe dá a possibilidade de estudar por horas a fio, o que a tornou uma das melhores alunas teóricas do campus. Só que seu poder é inútil. Luna sente que está tirando o lugar de outros alunos mais capazes. E em uma noite de insônia, ela decide caminhar até a boca da fenda para espairecer suas ideias e refletir sobre os rumos a seguir. E é lá que um encontro com uma senhora irá mudar sua vida.
Não é spoiler porque não vou dizer como, mas a ideia da autora de explorar o folclore brasileiro é fantástico. Vivemos em um mundo tão cercado pelo super e pelo inovador, que nos esquecemos de que havia algo antes. Se formos pensar mais a fundo, Spindler faz uma clara associação com a nossa relação com a cultura que vem de fora. Pouco conhecemos sobre nossas tradições. Aqueles que realmente conhecem lendas brasileiras é porque se interessou pelo tema e saiu atrás dele. Não é algo que povoa o nosso dia. Por exemplo, no dia em que estou escrevendo essa resenha, vai passar um filme do Thor na televisão. Eu sei quem é o Thor e o que ele faz, mas não sei quem é a Matinta Perera. Isso é só para citar um exemplo. Já vai de algumas décadas o conceito de que os deuses existem enquanto nos lembramos deles. Seu poder vem da crença. De certa forma, podemos dizer que é isso. Quando nos esquecemos, ele deixa de existir.
Mas, para mim, faltou um algo mais na narrativa. Eu adorei a ideia, principalmente porque eu sou um historiador, mas não gostei da personagem. Achei a Luna uma personagem muito apagada. Talvez porque ela funcione mais como uma personagem orelha. O dilema dela acaba se perdendo diante do plot maior. Faltou um pouco mais de personalidade a ela. Nesse sentido, acho que a história carecia de mais algumas páginas justamente para trabalhar este aspecto.
9 - "Uma noite no elevador"
Ficha Técnica:
Autora: Camila Costa Avaliação:
Nat e Duda tem poderes bem diferentes. Uma é um detector ambulante de mentiras. A outra é alguém que possui a incrível habilidade de mentir. Para Nat, a vida se tornou enfadonha. Ter a capacidade de sempre saber a verdade por trás do que as pessoas falam a tornou triste. Ela não consegue confiar em ninguém já que as pessoas terão suas mentiras descobertas pelo seu poder. Num desses estranhos acasos da vida, Nat e Duda acabam ficando presas em um elevador. E esse estranho encontro mudará para sempre a vida das duas.
Essa é mais uma história que precisa trabalhar com a empatia do leitor assim como Monocromático, do autor Victor Nassar (presente na primeira parte desta resenha). Só que esse conto em particular acabou não funcionando muito por conta da estrutura peculiar que a autora usou para entregar sua história. Ela acabou dividindo a narrativa em várias pequenas subseções contando a história pelo ponto de vista das duas personagens. Então nós podíamos entender os pensamentos de ambas. Para mim isso tirou um pouco da força da narrativa e prejudicou o equilíbrio do desenvolvimento de personagens. Enquanto Nat se tornou uma personagem complexa e repleta de nuances, Duda me pareceu uma personagem mais bidimensional. Acho que a autora poderia ou ter empregado a narrativa onisciente em terceira pessoa e aí ela poderia flutuar pelas duas personagens ou ela deveria ter escolhido a Nat como a sua protagonista e a Duda como coadjuvante. Porque foi o que aconteceu.
10 - "O ciclo da vida"
Ficha Técnica:
Autora: Tau Nagy Avaliação:
Este é um conto que dá uma quebrada no ritmo da coletânea muito por ser diferente dos demais. Jussara é uma aluna da UniFenda, mas sua família mora na ilha de Marajó há várias gerações. Ela tem uma relação diferente com sua avó e começa a desconfiar que alguma coisa está errada quando ela começa a sumir algumas noites. Em uma das escapadas de sua avó, Jussara a segue e acaba fazendo uma descoberta incrível. Esta descoberta vai fazer com que a personagem precise fazer uma escolha séria para sua vida.
Entendi esse conto como o formato de um manifesto. Se a gente fosse entender os fendistas como uma classe social perseguida e havendo algum tipo de preconceito social inerente a eles. Manifesto no sentido de que é um chamado às armas para que os jovens se levantem e decidam ir em busca de seus direitos. Tematicamente vale destacar o espelho que Tau faz entre a luta marajoana por reconhecimento de sua cultura como patrimônio e o declínio da Fenda e a possibilidade de esta ser a última geração de pessoas com poderes extras. A troca de experiências entre os dois lados produz um bom aprendizado entre as partes e a autora trabalha bem esse detalhe.
Só que o conto é expositivo demais. Como uma espécie de manifesto ficcional, dá para entender o propósito. Mas, encaixado em uma coletânea de contos de fantasia e ficção científica ele desponta como um elemento estranho. É diferente, por exemplo, da maneira como a Roberta Spindler trabalha o conceito de memória no primeiro conto desta segunda parte. Achei interessante a ideia por trás da narrativa, mas a execução não ficou boa.
11 - "Quantas novalginas você já tomou hoje?"
Ficha Técnica:
Autor: Pedro Poeira Avaliação:
Teo está indo para um momento importante de sua vida: a apresentação de seu TCC ao lado de seu grupo de trabalho. Várias semanas de sangue, suor e lágrimas para esse momento. Nada pode dar errado. Todos os olhares estão voltados para ele. Ele prepara as piadas perfeitas, as observações ideais, o powerpoint está bem alinhado. Mas, tudo parece dar um jeito de acabar dando errado. Seu poder de fazer curtas viagens no tempo se torna uma maneira de consertar as coisas. Só que as coisas parecem sempre fugir ao seu controle. E tudo o que ele deseja é uma nota perfeita.
Mais um bom exemplo de um conto quebrando o ritmo. Uma narrativa leve e divertida usando o tema da viagem no tempo, mas de uma forma diferente. Nada de Máquina do Tempo, de H.G. Wells, e mais O Feitiço do Tempo, sim, aquele clássico filme natalino com o protagonista mais mala e adorável do mundo. Pedro Poeira traça um objetivo simples a ser cumprido e o faz muito bem. Adorei a maneira como ele tornou a narrativa dinâmica com a química entre os personagens. Ele não precisa fornecer aos leitores muita informação. Em duas páginas, temos tudo o que precisamos saber. A partir daí, o que se seguem são esquetes onde ele vai repassando as cenas. Além disso, temos a temática em si que nos remete à falta de controle. É impossível mantermos um controle absoluto sobre todas as situações. São muitas variáveis a serem analisadas. Por mais pragmáticos, controladores e organizados que sejamos, sempre vai ter algo que vai fugir ao nosso controle. É a nossa habilidade de superar as adversidades que nos torna grandes. Ou seja, nosso autor além de usar O Feitiço do Tempo me remeteu também à teoria do caos de Jurassic Park.
Para quem acha que somente a temática é o destaque desse conto, é porque não percebeu outro pequeno detalhe: a estrutura narrativa. Ele empregou um esquema de idas e vindas para o personagem que na história parece suave e sutil, mas faço ideia de como isso deve ter sido no papel. Para fazer o que ele fez é preciso um domínio de temporalidades (flashforward e flashback) e montar toda a sua estrutura narrativa do começo ao fim para saber quais partes você pode mover e para onde você pode mover. São como peças em um jogo de montar imagens. É algo que exige um controle refinado de narrativa e essa pode ser uma ferramenta bem útil para o autor empregar em futuras histórias.
12 - "Dissonâncias"
Ficha Técnica:
Autor: Eric Novello Avaliação:
Mais um conto tenso nessa coletânea. Daqueles que a gente fica vidrado do início ao fim. A narrativa é estruturada em gravações de sessões de terapia do dr. Wilson Tavares, um psicólogo que atende fendistas com transtornos mentais. Não vou entrar em mais detalhes além disso, apenas que se trata de um belo estudo sobre a psiquê dos personagens.
Novello emprega uma escrita que vai te cercando como uma sombra escura que paira no ar. No início você acha que é apenas uma nuvem no céu, mas quando vê, toda a luz ao seu redor foi sugada pelas trevas. Ou seja, uma escrita claustrofóbica e tensa que vai até o final. Cada um dos pacientes parece normal em um primeiro momento até ele revelar os seus verdadeiros sentimentos. Parece algo chocante. Algumas vezes as mudanças são tão súbitas que chegam a ser assustadoras. Se eu pudesse dizer, esse conto do Novello é o mais próximo do terror dentre todos os que eu li até o momento. E ele faz isso sem usar nenhum elemento gore impactante.
Se pessoas com transtornos mentais podem se revelar desafiadoras mesmo no mundo real, imaginem quando se tratam de pessoas com poderes especiais. Ao lidar com elas, não sabemos exatamente qual o nível de criatividade que eles irão empregar suas habilidades. Cada um dos pacientes se revela ser um verdadeiro desafio. E é dessa maneira experimental que Novello vai levando sua narrativa do início ao fim. Gostei muito principalmente pelo fato de que cada personagem é diferente em sua individualidade. O plot twist no final é aterrador e a maneira como a pergunta fica no ar foi uma sacada de mestre do autor.
Kudos para Novello... desculpa, mas acho que fico com esse conto como o melhor.
13 - "Edição de amanhã"
Ficha Técnica:
Autor: AJ Oliveira Avaliação:
Lucas tem um poder interessante. Ele tem uma espécie de clarividência que eu não vou conseguir explicar, mas eu achei a ideia do AJ genial. Combina bastante com os nossos tempos de redes sociais e substitui de certa forma a velha ideia do caderno onde fazemos anotações sobre o futuro. Felipe e Lucas acabam desenvolvendo uma proximidade, muito por conta de uma certa desconfiança de Felipe sobre o novato. Isso até o dia em que Lucas acorda amarrado em uma cadeira com Felipe exigindo algumas respostas.
Se tem algo que é inegável é a criatividade do AJ. Isso permeia a trama, não só pela escolha do poder do personagem, mas também por como ele escolheu a problemática a ser solucionada. Novamente: muitos autores buscam enredos complexos para serem originais. E isso pode vir de uma solução simples. São dois personagens que se gostam, suas vidas se cruzam e coisas perigosas acabam rondando seus cotidianos. Dessa maneira, um deles tem boas intenções para com o seu par. Só que a maneira como ele acaba querendo proteger o seu amado é um pouco atrapalhada. E essa falta de comunicação entre os dois é que ocasiona a situação no início da narrativa. Isso é explorado bem pelo AJ que mostra que ambos estão corretos na forma como lidam com a situação. Só possuem visões diferentes sobre a maneira como o problema deveria ter sido resolvido. São coisas de casal. Mas, imagine coisas de casal sendo que um deles tem um poder de clarividência.
Achei que a narrativa demora um pouco para engrenar. Senti dificuldade para sentir empatia pelos dois personagens. Isso porque a situação toda é confusa no começo. Eu sei que a ideia era confundir mesmo, mas achei que tudo demorou a se estabilizar. Somente pela metade do conto que eu tive aquele momento de "ah... eu entendi a história". E passei a curtir mais os personagens. O momento final é bem doce e eu não vou contar mais nada.
14 - "Tipos de Pessoa"
Ficha Técnica:
Autora: Jana Bianchi Avaliação:
Cara, o Novello que me perdoe, mas caramba. Esse é o melhor conto da coletânea. Que ideia maravilhosa!! E olha, não é porque eu conheço a Jana há vários anos e ela escreveu algumas matérias para o blog, até porque eu tenho sido bem malvado nas minhas avaliações dos contos dela ultimamente, mas era disso que eu falava. Inovação, criatividade, doçura, representatividade, temáticas complexas. Tudo em um único pacote. Perfeito!
Vamos a uma sinopse simples para não entregar muito. Duas pessoas passam a se comunicar em dois períodos diferentes de tempo através de uma mesa de escola: uma em 1984, outra em 2020. Simples assim. É como se fosse um chat maluco do whatsapp do passado para o presente e vice-versa. E a conversa dessas pessoas vai girar desde discussões sobre as Diretas Já, até discussões sobre angústias, alegrias, esperanças e amor. É muito interessante ver a interconexão entre temas e a maneira como as duas pessoas passam mensagens uma para a outra. A ideia de falar acerca das Diretas Já em um momento tão difícil da república no Brasil é fantástico porque foi um movimento que teve uma forte participação popular, principalmente de estudantes. Precisamos desse movimento hoje para que o Brasil possa mudar desse país que se encontra em uma polarização insana para voltarmos ao "país do futuro".
Temos que falar da técnica. Não existe manual para o que a Jana fez. Isso é algo muito bacana. Já vi alguns autores testarem técnicas parecidas e é bem complicado de se fazer. Mesmo para formatar isso dá uma bela de uma dor de cabeça. No entanto, o resultado final é bem diferente. Não estou dizendo que todos devem fazer algo igual, mas inovar, ser criativo envolve criar coisas diferentes como essa. Na coletânea toda os contos da Jana, do Novello e do Pedro Poeira são os que envolvem técnicas mais apuradas de escrita. Isso é como você brinca com a forma de escrita. Pense no seguinte: a literatura já existe há milênios. Milhares de autores já escreveram obras de todo o tipo de forma diferente possível e imaginável. É possível ser criativo; basta desconstruir alguma das técnicas de escrita. A Jana desconstruiu o parágrafo, o Pedro desconstruiu a temporalidade, e o Novello desconstruiu o discurso narrativo. É possível se aproximar das mesmas três engrenagens a partir de alguma outra abordagem. Qual? Aí vai ser a sua mente quem vai definir.
Jana fechou essa coletânea com chave de ouro. Amei esse conto e aprendi mais um pouquinho com ela.
Ficha Técnica:
Nome: As Crônicas da UniFenda
Organizado por André Caniato, Jana Bianchi e AJ Oliveira
Editora: Plutão Livros
Número de Páginas: não informado
Ano de Publicação: 2020
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