Em uma universidade que procura lidar com aqueles afetados por uma fenda dimensional, diversas histórias se desenrolam. Vários autores se debruçaram nessa temática e exploraram os vários aspectos deste incrível lugar.
Nesta primeira parte estão os seguintes contos:
1 - "O Último Ponto", de Camila Loricchio
2 - "É semideus, é seminu", de Ana Victória Costa
3 - "Arquipélago e outros anteparos", de Auryo Jotha
4 - "A Fenda está fechando", de Mary C. Muller
5- "A versão perfeita de mim mesmo", de Denys Schmitt
6 - "Predador", de Isa Prospero
7 - "Monocromático", de Victor Nassar
1 - "O Último Ponto"
Ficha Técnica:
Autora: Camila Loricchio Avaliação:
Ótima carta de apresentação para a coletânea de contos. Camila Loricchio arrasa com essa narrativa. Ela nos coloca na pele de uma motorista de ônibus da UniFenda que leva os alunos para o campi. Contando o cotidiano de suas aventuras comuns, a autora consegue criar rapidamente a empatia pela personagem. O conto é contado em primeira pessoa, mas o leitor é um passageiro do ônibus. É como se a Boiuna estivesse nos contando sua história. Seu poder especial é sua falta de necessidade de dormir, o que a torna a motorista ideal.
A narrativa é repleta de calor humano. Camila consegue nos deixar encantados com uma personagem que vai ficar marcada para mim. Em alguns momentos, Boiuna revela uma certa melancolia ao revelar que a Fenda está fechando e talvez a universidade precise fechar daqui a algum tempo. Então ao mesmo tempo em que a narradora pode ser divertida e despojada em alguns momentos, em outros, revela certa melancolia e incerteza por aquilo que pode vir em um futuro próximo. Achei a história super bem encaixada, na medida certa e ela termina no ponto final do ônibus. A autora teve também uma boa noção de ritmo e de tom dado para a história, mostrando a informalidade da narradora.
2 - "É semideus, é seminu"
Ficha Técnica:
Autora: Ana Victória Costa Avaliação:
Mara é uma das integrantes do Conselho Estudantil. Muito competitiva, ela está organizando o arraiá do campus e quer que tudo corra bem. Mas, os problemas sempre surgem e ela precisa estar preparada para resolvê-los. Ao mesmo tempo seu crush Matheus está na área e ela se preparou especialmente para esse dia. Isso seria uma história normal, se não estivéssemos falando de adolescentes com poderes especiais. Então tudo pode dar errado. Desde garotas usando poderes ilusórios em meninos chatos até grupos de "fendistas" revolucionários pregando a superioridade.
A narrativa de Ana Victória é leve e espontânea com um dinamismo rico e personagens que vão agradar ao público. Ela usa uma narrativa em primeira pessoa que serve como uma forma de criar empatia com o leitor. A escrita é corretinha, não tenho nada a criticar a respeito. Só achei a narrativa mediana se comparada ao conto que veio antes. Coletâneas de contos tem desses problemas. Às vezes um conto levanta tanto a barra de expectativa que se você não mantiver o pique, perde todo o momentum. Para mim este foi o caso. Uma narrativa normal que não me chamou tanto a atenção. Mesmo assim, a autora tem vários méritos em criar uma história que consiga criar essa conexão.
3 - "Arquipélago e outros anteparos"
Ficha Técnica:
Autor: Auryo Jotha Avaliação:
Ceci é uma garota espontânea e que ama a sua liberdade. Ao lado de Kamila e Fred eles são um grupo inseparável. Fred tem uma habilidade única que o permite teleportar as pessoas para qualquer lugar que ele se lembre menos ele mesmo. Ceci é uma copiadora de poderes e Kamila tem habilidades de respirar embaixo da água. Com a Fenda se fechando, a UniFenda está sob a administração de um reitor declinista que vê os fendistas como pessoas que precisam esconder seus poderes. O motivo das pessoas sentirem medo deles é o uso indiscriminado de seus poderes. Ceci não gosta dessa postura. Seu espírito livre a leva a ir aonde seu coração manda. E a narrativa se passa em um desses dias quando elas decidem ir a uma linda praia.
Os poderes do Fred são muito legais. Para realizar o teletransporte, ele precisa bater um tambor. E são suas batidas que determinam lugar e coesão corpórea das pessoas. Por essa razão, a narrativa do Auryo transborda sonoridade. Juro que eu conseguia ouvir os sons do curimbó ressonando ao longe. Nessa sonoridade, as palavras vão se ligando e se encaixando para formar os parágrafos e as páginas. Gosto quando os autores testam coisas diferentes na forma como uma narrativa pode ser apresentada. Embora eu tenha achado a história um pouquinho longa demais que o necessário (teria cortado umas duas ou três páginas), eu gostei dessa combinação som e palavra.
Não posso comentar muito sobre o simbolismo do final porque seria entregar spoiler, mas o autor também me impressionou e me pegou de surpresa porque eu já não esperava mais revelações no final.
4 - "A Fenda tá fechando"
Ficha Técnica:
Autora: Mary C. Muller Avaliação:
Essa é uma daquelas avaliações safadas de 4 estrelas que eu merecia ser xingado por isso. Mas, vou pelo meu instinto. Explico mais embaixo. Esta é uma narrativa em primeira pessoa de uma personagem que se coloca em uma posição neutra em relação a seus poderes. Ela quer apenas viver uma vida normal. Não é nem contra, nem a favor. Ela só quer ser deixada em paz. Não quer saber de UniFenda. Ela expõe claramente seus argumentos e fala o quanto ela não gosta de exposição ou sobre os acidentes causados por fendistas que não sabiam controlar seus poderes. Se pararmos para pensar um pouco, 90% da narrativa é um tratado da personagem justificando sua escolha de não usar seus poderes ou até fugindo deles. Claro que, como já dizia o velho tio daquele personagem lá da Marvel, com grandes poderes vem grandes responsabilidades.
A Mary foi muito habilidosa ao nos mostrar uma personagem que está em um claro processo de negação para si mesma. A sua postura é a de fuga, não a de alguém que não está aceitando seus poderes. Não é uma neutralidade. Aliás, a gente pode até avançar mais no pensamento da autora: não existe neutralidade neste mundo. A gente pode dialogar, mas sempre vamos defender algum ponto de vista. É como alguém que se diz ser apolítico. Não existe apolítica... O ato de ser apolítico é um ato político. É o mesmo aqui. A personagem cai em contradição em diversos momentos. Tanto é que no final, sua falta de escolha vem cobrar o seu preço.
Faltou para mim um algo mais. Vai parecer preciosismo da minha parte, mas esta é a minha única razão para não dar nota máxima. Eu senti que a narrativa percorreu um caminho seguro demais, manteve-se constante o tempo todo. A autora não correu riscos aqui. A escrita está corretinha, não há problemas técnicos, a descrição está precisa. Por exemplo, no conto anterior, o Auryo correu riscos ao usar uma técnica diferente. A Camila chutou o balde no primeiro conto quebrando a quarta parede. São esses riscos que eu senti falta. Por isso minha avaliação ficou no boa.
5 - "A versão perfeita de mim mesmo"
Ficha Técnica:
Autor: Denys Schmitt Avaliação:
Julio é um garoto capaz de moldar água. Só tem um problema: ele te medo de água desde pequeno. Seus pais o pressionam desde cedo a engolir seus problemas e se virar. Mas, isto acaba fazendo dele uma pessoa introvertida e que possui muitas dificuldades na UniFenda. Ele não consegue controlar adequadamente seus poderes. O fechamento da Fenda tem provocado discussões acaloradas entre os alunos e Iana surge para liderar um grupo que deseja ir até lá, descobrir o que aconteceu e buscar uma forma de corrigir o problema. Julio acaba sentindo uma certa empatia pela causa de Iana, mas sua amiga se coloca contra. E os problemas só estão começando.
A ideia de inversão de ideias com um personagem que sente medo de seus próprios poderes foi uma boa sacada. Até porque no fundo se trata de uma história de auto-aceitação e amadurecimento. E isso é refletido em como Julio se conecta com seus poderes. Sua criação exigente com pais cobrando uma postura dele se tornou um trauma com o qual ele precisa conviver. Aliás, ele precisa encontrar forças para sair de sua casca e amadurecer como pessoa. Somente assim ele vai conseguir resolver seus problemas. É uma situação parecida com a vivida no conto anterior. Trata-se de uma fuga. Quando o personagem não mais fugir, ele vai encontrar suas próprias respostas.
O autor introduz mais um elemento no cânone da história geral da UniFenda com a polícia repressora e perseguindo aqueles que usam seus poderes. E a confusão que acontece, levando à entrada dos policiais no campus acelerou a narrativa, mas acho que acabou prejudicando o todo. Entendi o que o autor quis fazer e o ocorrido foi um catalisador para o personagem. Mas, ao introduzir outro elemento narrativo, é como se ele estivesse equilibrando várias bolas ao mesmo tempo. Para mim, faltou foco em um só elemento e deixado as ocorrências como um pano de fundo secundário. O acidente no final poderia ter sido um efeito colateral explorado pelo autor como uma falha no personagem que ele tinha que ter superado.
6 - "Predador"
Ficha Técnica:
Autora: Isa Prospero Avaliação:
Atenção: história com gatilhos ligados a abuso sexual
Explorar a maneira como pessoas com poderes podem abusar deles já foi feita de várias maneiras diferentes. A Isa conseguiu criar uma história impactante com uma forma bem inovadora de explorar o assunto. Estamos diante de Laura, uma personagem que começa a história em um quarto, seminua, sem se lembrar do que ocorreu na noite anterior. Ela sabe que alguma coisa está errada. Só não sabe o que é.
A escrita da Isa é tensa e claustrofóbica o tempo inteiro. Ela quebra completamente o ritmo das narrativas anteriores. O que ela traz é de uma força e intensidade incríveis. A dor que a personagem sente de ter sido violada, de ter tido sua confiança abalada por um predador é sólida para o leitor. A gente sente o mesmo que a personagem. E ela só usou uma narrativa em terceira pessoa (nem em primeira foi). A personagem revela gestos e olhares que revelam os seus sentimentos em um dado momento. E é esse poder de contar uma história através de impressões e colocando o leitor em um quarto escuro ao lado da protagonista que torna a narrativa tão boa.
Outra coisa que é para se chamar a atenção de outros escritores é que em nenhum momento a Isa precisou descrever uma cena de abuso sexual para o leitor entender o que aconteceu. Basta a insinuação da cena. Por isso ele tem gatilhos. E essa é a marca de uma autora madura e experiente que sabe tratar o tema com habilidade, sem a necessidade de explicitar nada.
7 - "Monocromático"
Ficha Técnica:
Autor: Victor Nassar Avaliação:
Esse é um conto tão doce e gentil que eu não tive como não dar cinco estrelas para ele. Tentei encontrar alguma coisa, até dei uma de duro na queda, mas fui conquistado pela história do menino cujo poder era fazer o mundo ficar monocromático para as outras pessoas. É uma narrativa simples, contada em primeira pessoa com um personagem absolutamente empático. Vamos caminhando ao lado do personagem em sua trajetória pela descoberta do amor e da felicidade. Ele precisa lidar com seus poderes que, em teoria, tornam o mundo triste para as pessoas. Ao conhecer uma pessoa que o aceita como ele é, seu coração finalmente descobre algo diferente: o calor de um sentimento.
A conexão que liga o personagem à sua namorada é bem construída. É uma temática de aceitação. A gente poderia facilmente substituir a situação do personagem por um cadeirante ou alguém com algum outro tipo de limitação. Adorável a sintonia entre os dois personagens e a maneira como esta conexão se associa aos seus poderes. O autor trabalha no conto as adaptações que a pessoa faz para poder conviver com outra com limitações. É também colocada o preconceito e a raiva das pessoas diante de alguém que pode ser um estorvo à vida social das mesmas.
Nassar emprega diálogos bem encaixados, uma escrita precisa e sutil. Não utiliza nenhuma técnica mirabolante de escrita, preferindo caminhos mais seguros, mas ao atacar na empatia do leitor em relação aos seus personagens ele consegue ser bem sucedido. Eu coloquei em outro conto que um caminho seguro leva a algo normal e sem grande destaque; mas, o básico pode ser bem feito quando associado a uma narrativa mais sentimental. O final é de uma beleza que eu vi poucas vezes esse ano. Não vou falar mais porque posso estragar a história para alguém.
Ficha Técnica:
Nome: As Crônicas da UniFenda
Organizado por André Caniato, Jana Bianchi e AJ Oliveira
Editora: Plutão Livros
Número de Páginas: não informado
Ano de Publicação: 2020
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