India Morgan Phelps tenta contar os eventos que aconteceram em sua vida e que envolvem um estranho quadro chamado A Menina Submersa e uma mulher misteriosa chamada Eva Canning. Mas, no meio disso tudo, ela se dá conta de que ela não sabe mais separar o que é real do que é sua imaginação.
Sinopse:
India Morgan Phelps - Imp para seus amigos - é esquizofrênica. Ela não pode mais confiar em sua própria mente, convencida de que suas memórias tem alguma coisa que a trai, forçando-a a se questionar sobre sua própria identidade.
Lutando com suas percepções de realidade, Imp deve descobrir a verdade sobre um encontro com uma terrível sereia, ou um lobo inofensivo que veio até como uma garota selvagem, ou alguma coisa que não era nada dessas coisas, mas algo muito, mas muito mais estranho...
A estranha e esquizofrênica mente de Imp
Esse livro é uma pílula bem difícil de engolir. Digo isso porque ele depende muito da forma como você o coloca em sua meta de leituras. Ele não é feito para ser lido rapidamente por conta de seu grau de dificuldade elevado. Admito que eu peguei para ler em um momento errado com o propósito errado e paguei o preço por isso. No entanto, preciso ressaltar a extrema habilidade da autora de empregar ferramentas avançadas de escrita criativa e conseguir o seu propósito final: confundir a cabeça do leitor combinando precisamente com a mente da protagonista da história.
"Nenhuma história tem começo e nenhuma história tem fim. Começos e fins podem ser entendidos como algo que serve a um propósito, a uma intenção momentânea e provisória, mas são, em sua natureza fundamental, arbitrários e existem apenas uma ideia conveniente na mente humana. As vidas são confusas e, quando começamos a relacioná-las, ou relacionar parte delas, não podemos mais discernir os momentos precisos e objetivos de quando certo evento começou. Todos os começos são arbitrários."
Vou tentar resumir em poucas frases e depois desenvolver as ideias básicas sobre a escrita da Kiernan: imaginem uma personagem esquizofrênica com dissociação lógico-temporal. Ah, e estamos diante de uma metanarrativa. Sim, essa é só a ponta do iceberg que é A Menina Submersa. A narrativa é escrita do ponto de vista da Imp, o que é péssimo para a cabeça do leitor. Ela sofre de esquizofrenia e precisa tomar vários remédios controlados. Por conta disso, Imp tem muita dificuldade de se relacionar com outras pessoas. Sua doença é hereditária e ela conta como foi sua relação com sua mãe e sua avó que fazem parte de sua formação. Ela perdeu sua mãe ainda jovem, vítima de sua condição. A partir daí, nossa personagem tenta narrar a história de sua fixação com o quadro A Menina Submersa e um estranho encontro que ela teve com uma mulher chamada Eva Canning, que ela encontrou em um lago nua, parecendo ter saído de um lago. Só que Imp já era seguida por situações bem estranhas as quais ela não consegue exatamente explicar.
Uma das grandes dificuldades na leitura de A Menina Submersa é que Imp não é uma narradora confiável. Ela conta histórias que aconteceram, que ela acha que aconteceram e que nunca podem ter acontecido. O uso de remédios fez com que a sua memória não tivesse uma linearidade cronológica clara. Pior: frequentemente ela se lembra de coisas que nunca aconteceram. Então é bem comum na narrativa ela se contradizer em vários momentos. Ou ela tentar criar referências a coisas que nunca aconteceram ou pelo menos não na ordem em que ela se lembra. Isso dá um nó na cabeça do leitor que faz uma leitura desatenta. Estamos programados para confiar naquilo que a narradora escreve. Ou pelo menos a desconfiar de gestos ou posturas. Não a desconfiar o tempo inteiro.
"Lamento que você tenha cometido um erro tolo e terrível, India Morgan Phelps, decidindo contar esta história de fantasmas tal como você a lembra, como duas narrativas separadas, como uma partícula e uma onda, o diabo e o mar azul mais profundo em vez de limitar-se a uma única narrativa isenta de paradoxo e contradição."
O segundo problema vem do fato de termos três vozes narrativas. India, Imp e a Imp-escritora. É frequente India conversar com Imp e vice-versa. É uma demonstração dos caminhos tortuosos que a mente dela percorre para dar uma lógica ao mundo que a cerca. Frequentemente ela busca trazer India de volta à narrativa quando ela divaga demais sobre um determinado tema. Fora que a psicóloga de Imp recomenda que ela coloque suas memórias conflitantes em contos. E vemos dois desses contos espalhados pelo livro, configurando uma metanarrativa. Isso significa que temos a voz da India, a menina que sofre de esquizofrenia e quer uma normalidade em sua vida; a voz de Imp, e sua obsessão com o quadro e com Eva Canning; e a escritora que deseja pôr no papel as suas angústias. Não há uma separação clara entre estas três vozes e só nos damos conta disso quando ela se autorreferencia.
Kiernan emprega também fluxo de pensamento. É comum a narradora começar um parágrafo, por exemplo, falando de cenouras e terminando o mesmo parágrafo falando sobre ciência espacial. Seguir a linha de raciocínio da protagonista é bem complicado e exige o máximo de atenção. Fiz diversas anotações para poder me recordar depois do que ela havia comentado capítulos antes. Mesmo assim, é preciso destacar que o livro é repleto do emprego de símbolos. Cada um deles representando uma sensação, uma emoção ou uma esperança da protagonista. Por exemplo, o fato de ela imaginar estar sendo encantada por uma sereia envolve sua incapacidade de lidar com o mundo real e se afogar em um mundo fantástico que não é o dela. Ou ela receber a visita de um lobo indefeso, envolvendo a necessidade de Imp de ser útil para alguém. Ou do sexo latento entre ela e Eva, que envolve uma fragilidade dela e uma necessidade também de ser amada. É uma personagem com várias camadas.
Não posso me esquecer de Abalyn e o quanto ela faz a história ser mais interessante. Os dilemas de Abalyn por ser uma transsexual e como ela e Imp se envolveram. Abalyn é uma mulher decidida, quase um complemento para a fragilidade inerente de Imp. A relação entre as duas funciona bem e elas tem uma química muito forte. Quando Eva Canning chega e abala o que as duas tem, o leitor sente o impacto junto de Imp. Aliás, em vários momentos eu cheguei a achar que a invenção do sobrenatural por parte da protagonista se tratava de uma justificativa para ela ter traído Abalyn. Mas, a gente vai se convencendo que não se trata exatamente disso, e mais da mente fragmentada de Imp. A autora usa algumas boas páginas para nos mostrar o dilema de Abalyn, sua relação com seus pais e por que ela decidiu fazer a cirurgia de mudança de sexo. É tocante no sentido de que provavelmente já ouvimos falar de casos como o dela. Nesse sentido, Imp é bem decidida acerca de sua homossexualidade. Ela não tem dúvidas de que gosta de mulheres. Claro, direto e preciso, sem a necessidade de problematizar.
"Dualidade. A mutabilidade da carne. Transição. Ter de esconder o seu eu verdadeiro. Máscaras. Segredos. Sereias, lobisomens, gênero. As reações que podemos ter diante da verdade das coisas, diante da expressão mais sincera de alguém, diante de fatos que ocorrem contra as nossas expectativas e os nossos preconceitos. Confissões. Metáforas. Transformação. Por isso, é muito relevante."
O elemento fantástico está nas afirmações de Imp sobre o que ela presencia em sua realidade. O grande problema está em acreditar ou não no que a protagonista está colocando para os leitores. Mesmo tendo terminado o livro, não sei me decidir o quanto todo o envolvimento de Imp com sereias, lobos e A Menina Submersa são fatos ou produtos da imaginação esquizofrênica da protagonista. Cabe aqui dizer que a gente pode seguir as duas linhas de raciocínio. A autora apenas oferece pistas levando aos dois lados. Se optarmos pelo lado fantástico, temos uma outra personagem para analisar: Eva Canning. Uma mulher misteriosa e manipuladora que se aproxima da vida de Imp e consegue fasciná-la com seus encantos. Sua mera presença consegue distorcer a forma como a protagonista enxerga aquilo que a cerca. Mesmo as descrições sexuais envolvem vários elementos lisérgicos onde o que dá prazer a Imp é a irrealidade de tudo. Desde o primeiro parágrafo do livro que não temos dúvidas de que ela ama Abalyn. Mas, sua relação com Eva leva a um outro nível de estranhamento.
Se formos para o lado real, como definir as ilusões de Imp? Abalyn funciona como o apoio da protagonista. Mesmo sacrificando parte de seu sossego, ela entende o quanto é importante para sua parceira. Além disso, ela mesma admite para si que precisa também de Imp, que a aceita sem restrições. São duas pessoas destruídas pela vida que encontram uma na outra uma razão de viver. Sendo contraditórias, são complementares. E só se complementam por serem contraditórias. Imp é uma reclusa, que não tem contato com a sociedade lá fora. Sua fixação por suas obsessões a levam a criar um mundo fantasioso que existe em sua mente. Um mundo que ela busca representar em seus quadros. Já Abalyn é uma mulher que sofreu e sofre diariamente com o preconceito e a incompreensão.
A Menina Submersa é uma leitura difícil, porém recompensadora. Vai te levar aos limites da compreensão e exigir atenção e capacidade de interpretar cada linha colocada. Temos uma protagonista repleta de camadas e que nos conta uma narrativa de aceitação, confusão e a necessidade de ser amada. Ao final, talvez sejamos capazes de entender como Imp pensa. Ou não. Mas, certamente a personagem vai ter deixado parte de si entre nós.
Ficha Técnica:
Nome: A Menina Submersa
Autora: Caitlin R. Kiernan
Editora: DarkSide Books
Tradutoras: Carolina Caires Coelho e Ana Resende
Número de Páginas: 320
Ano de Publicação: 2015
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Ganhei o livro, mas só li as primeiras páginas. Sua resenha foi bem completa e facilitará a minha leitura. Obrigada.
Gostei da sua resenha. para mim, tanto eva quanto abalyn eram alucinações de imp. Eva representa a parte da imp que quwr vivenciar os delírios e loucura consequente de sua doenca. Abalyn significa a parte da imp que quer se mante sã e saudável. ambas não podem conviver, por isso que quando eva entra em cena abalyn vai embora, quando eva some, abalyn volta. É o movimento da doença, a pessoa vive na intermitência, em momentos de saúde, que está vivendo a realidade, e então o surto vem e a pessoa fica vivendo na fantasia alucinações e delírios.