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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "A Loteria e outros contos" de Shirley Jackson

Uma das coletâneas de histórias curtas mais famosas do século XX retorna às prateleiras brasileiras em uma edição bem acabada pela Editora Alfaguara. Nela, vocês irão descobrir por que Shirley Jackson tem uma das mentes mais perturbadoras da literatura mundial.


Sinopse:


Com uma habilidade ímpar, Shirley Jackson vai do hilário ao horripilante para demonstrar seu poder de contar histórias.


Única coletânea publicada enquanto Shirley Jackson ainda era viva, A loteria e outros contos traz histórias que incorporam tanto as características marcantes da escritora quanto seu poder de navegar pelos diversos aspectos da ficção.

Publicado pela primeira vez em 1948 na revista The New Yorker, o conto “A loteria” é considerado um dos mais importantes da literatura americana ― seu impacto foi tão profundo que, logo após sua publicação, a revista recebeu diversas cartas reclamando da “imoralidade” da narrativa. Esta e outras 24 histórias curtas formam uma coletânea brutal que analisa com maestria os meandros da sociedade norte-americana, a opressão velada, o lugar a que as mulheres são relegadas, o peso do matrimônio e dezenas de outros temas que ainda fazem parte da sociedade atual.

Seja esmiuçando a vida nos subúrbios dos Estados Unidos, como em “Estátua de sal”, ou retratando a influência da bebida e da juventude na vida de um homem, como em “O embriagado”, Jackson constrói histórias com personagens vivazes e impressionantes que acompanharão o leitor mesmo depois de fechar o livro.






Essa não é a primeira vez que leio A Loteria, considerado um dos contos mais influentes do século XX. Perturbador, misterioso, assim como Assombração na Casa da Colina, elevou o nome da autora ao patamar daquele grupo seleto de autores norte-americanos imortais. Mas, a autora não tem apenas estas duas histórias. Shirley Jackson é considerado por muitos críticos e autores como a Rainha do Mistério. Com um texto envolvente, ela tece críticas sociais em suas histórias ao mesmo tempo em que cria personagens desconcertantes em atmosferas que nos deixam incomodados. A Loteria e outros contos é uma das coletâneas de histórias curtas mais importantes do século XX. E é nessas histórias que vamos ver o talento da autora em criar personagens e situações bastante inusitadas. Não se tratam necessariamente de histórias de terror, até porque ela não é adepta desse tipo de história. Mas, são histórias que incomoda, que nos causam claustrofobia e nos levam a questionar aqueles que vivem ao nosso redor e a realidade que nos cerca. A tradução é da competente Débora Landsberg que consegue transmitir bem essa atmosfera de estranhamento da autora. Sobre a edição da Alfaguara, ela está com uma capa bem legal que tenta passar para o leitor esse jogo de melancolia (tem um corvo no canto direito... alguma coisa a ver com Edgar Allan Poe?). O formato editorial segue o modelo da Alfaguara que quem está acostumado a ler conhece, com margens altas, uma fonte bem bacana em uma edição sóbria. Não sei se outros leitores que pegarem este livro vão ter essa mesma impressão, mas me senti pegando um livro do Murakami. Sobre os aspectos internos, alguns errinhos de revisão acabaram passando em uma quantidade razoável (são mais typos do que qualquer coisa), mas só chamo a atenção mesmo pela quantidade. Uma segunda edição precisa de um último tapa de revisão para corrigir esses probleminhas.


Tenho duas sugestões a dar, mas não sei se elas são possíveis devido ao contrato de publicação. Algumas alterações podem não ser possíveis. Uma delas é que os contos deveriam vir com a sua data de publicação original. Isso ajuda bastante a traçar um contexto histórico de publicação, as possíveis preocupações que a autora tinha quando escreveu. Parece bobagem, mas para quem estuda literatura é uma informação importante. Se possível até com a revista ou coletânea onde foi publicada pela primeira vez. Não ter essa informação é uma lacuna sensível, ainda mais em uma obra tão importante como essa. Minha segunda sugestão, e essa eu sei que é complicada mesmo, é um texto de prefácio ou um posfácio falando sobre Shirley Jackson, a conjuntura de escrita de A Loteria e o que ela representou no mundo da literatura. Poderia ser com um especialista da área ou até pedir à tradutora, Débora Landsberg, que escrevesse suas impressões sobre essa história. Sempre sou favorável a que determinadas obras mais importantes recebam esse tipo de tratamento. Mas, sei também o quanto pedir isso pode ser complicado devido aos herdeiros da autora ou aos licenciantes.


Falando sobre os contos em si (e deixando para falar de A Loteria mais para o final desta resenha), Shirley Jackson tem o dom de criar situações que são tão estranhas que nos incomodam. Por exemplo, em O Amante Diabo, somos colocados diante do dia especial de uma mulher que está para se casar. Ela tem suas dúvidas sobre qual vestido usar e está entretida com todo aquele ritual prévio. As horas passam e seu noivo não chega e ela decide procurar Jamie. Ela vai até o local onde ele mora e não o encontra lá. Só que uma informação desconcertante lhe é dada: ninguém conhece Jamie. O porteiro lembra de alguém que pode ter vivido em um apartamento no terceiro andar e os proprietários se lembram vagamente de alguém que pode ou não ser Jamie (eles nem sabem se o nome era esse mesmo). É então que começa uma busca desesperada da noiva por seu amor. O que é perturbador é essa dúvida que gira ao longo do conto inteiro e de o quanto as pessoas vão tirando uma com ela. As pessoas fazem troça da situação pela qual ela está passando e isso a faz se desesperar cada vez mais. Mesmo aquele que se mostra gentil, logo se irrita com ela. Há um desamparo perceptível na situação vivida por ela e ao chegarmos ao final, teremos a mesma impressão.


A narrativa de Jackson também pode ter algum tipo de crítica social, algo que nem sempre é comentado sobre sua obra. Um exemplo desses é Minha Vida com R.H. Macy que mostra a protagonista sendo admitida na Macy's, uma tradicional loja de departamentos americana. A partir daí, a protagonista começa a falar sobre a sua rotina diária na loja. Mas, ela se incomoda porque rapidamente se transforma em apenas um número. Ela perde sua identidade e ela é referida por seu número. E fala o quanto sua vida passa a ser regida por números: o número de seu cofre, o número de seu registro, o número de seu setor. Isso passa a incomodá-la a cada novo dia até que ela se torna apenas mais um número entre tantos funcionários. Estamos falando de uma autora escrevendo na metade do século XX e o quanto essa história curta foi premonitória. Hoje questionamos um capitalismo que retira nossa identidade e nos transforma em engrenagens em uma imensa máquina. O quanto isso pode esconder uma retirada da identidade e da individualidade de uma pessoa. Jackson escreve isso de uma forma que vai nos incomodando mais e mais.


Já no conto seguinte, A Bruxa, Jackson revela sua habilidade de criar personagens bizarros. E bizarros de uma maneira normal, ao mesmo tempo em que deixa determinadas situações em suspenso. Na história uma família formada por uma mãe, um menino e uma menina estão em um vagão de trem ansiosos por chegar em seu destino. O menino é aquele típico pirralho de cinco anos: a toda hora quer saber quando vão chegar, gosta de implicar com a irmã e de coisas nojentas. Até que ele cisma que viu uma bruxa na estrada. Sua mãe o faz esquecer dessas ideias ridículas até que chega um cavalheiro que se senta ao lado do menino e começa a tentar distraí-lo contando histórias e se interessando pelo seu papo maluco. Só que o homem começa a contar a história de como ele matou a sua irmã e a cortou em pedacinhos. Ele vai descrevendo a mutilação da irmã em detalhes desconcertantes que deixam a mãe do menino apavorada. Isso mesmo com o garoto, em sua inocência infantil, achando tudo divertido, embora apavorante. É interessante como a princípio o cavalheiro parecia ser bastante normal e amigável. Ele tinha retirado as barreiras da mãe, sendo uma pessoa meramente educada e tolerando as maluquices infantis de seu filho. Mas, a estranheza vai chegando de uma forma alucinante e quando a mãe se revolta com a conduta do homem já é tarde demais.


Outro conto que merece destaque é A Renegada e mostra como Jackson gosta de fazer um crescendo nas suas situações. Ela apresenta um problema simples e vai fazendo com que ele tome proporções devastadoras. O leitor vai sendo enredado nessa narrativa e tentando entender como os personagens vão conseguir dar um jeito nesse problema. Spoiler: eles quase nunca conseguem. Nesse conto, a sra. Walpole está em uma manhã normal com seu marido que vai trabalhar e seus filhos que dão os bons e velhos problemas de crianças birrentas. Só que seu dia muda drasticamente quando ela recebe uma ligação de sua vizinha acusando Lady, a cadelinha da sra Walpole de ter matado todas as suas galinhas. A vizinha exige que a dona de Lady tome providências para que isso nunca mais aconteça. Ou seja: que a sra Walpole sacrifique sua cadela. Mas, a protagonista ama sua cachorrinha e fica em um dilema de como lidar com essa situação. Ela tenta consultar várias pessoas sobre como acabar com esse problema e fazer Lady nunca mais ir atrás das galinhas da vizinha. Só que a cada nova pessoa que ela encontra, a morte de Lady se torna cada vez mais iminente. O leitor vai acompanhando a tristeza da protagonista e vê a foice da morte se aproximando mais e mais de uma pessoa querida sem que ela consiga fazer nada para impedir isso. A virada narrativa se encontra lá no final e é desconcertante quando a sra Walpole finalmente encontra Lady e seus filhos voltam da escola.


Jackson gosta de desconstruir a ideia que temos da ingenuidade infantil. Seus personagens são malandros, meio nojentos até. Como qualquer criança. E Jackson não enxerga a infantilidade com ingenuidade; ela tende a relativizar isso, pois as crianças tem seus interesses. Na narrativa, o jovem Laurie está tentando se acostumar a sua nova escola. Como uma criança levada, seus pais querem que ele aprenda a ter educação ao mesmo tempo em que recebe conhecimentos para se tornar um homem de bem. A cada dia que Laurie chega da escola, ele começa a relatar o surgimento de um personagem perturbador: Charlie (que é o nome do conto). Charlie é um garoto levado que bate nas professoras, persegue seus colegas e não obedece ao que lhe é pedido. Seus pais ficam preocupados com os acontecimentos e querem saber como esse Charles pode influenciar seu filho também. Mas, em todas as ocasiões em que eles se prontificam a ir para a escola, algum compromisso mais urgente aparece e eles ficam impossibilitados de ir. No dia em que eles finalmente conseguem ir, fazem uma constatação terrível.


Falando no conto principal, A Loteria, ele impressiona pela habilidade de escrita da autora. Somos transportados para uma cidadezinha onde as pessoas começam a se reunir em uma praça central. Entre cumprimentos amistosos e as fofocas do cotidiano todos se preparam para o grande evento. Tudo acontece com muita naturalidade. Jackson vai deixando o leitor curioso sobre o que pode estar acontecendo. Nenhuma informação é dada além dessa premissa básica. Os personagens agem como se fosse mais um acontecimento comum. Daí aos poucos é como se uma muralha começasse a se fechar ao nosso redor e as expressões vão se transformando pouco a pouco. Não há uma tensão explícita, mas os sentimentos são palpáveis. Nomes são sorteados um por um e as conversas retornam aos pouquinhos., Mas, o leitor percebe um certo tom maléfico nas falas, um quê de observar aqueles que estão ao redor. Quando descobrimos o que é a loteria, já estamos no final do conto e a autora nos passa uma bela rasteira. Lembro que a primeira vez que li esse conto, reli duas vezes as páginas finais porque o soco no estômago foi óbvio. Existem tantas coisas que podem ser retiradas desta história que seria possível passar horas a fio. Sem dar spoilers, o que posso comentar é o quanto a sociedade pode naturalizar a barbárie se ela se tornar parte de um cotidiano. O que antes era repreensível, se torna um espetáculo. O autor Guy Debord tem um ótimo estudo acerca desse conceito chamado A Sociedade do Espetáculo onde ele analisa como situações extremas podem se transformar em uma forma da sociedade espantar seus espíritos mais primitivos. Um dos exemplos que ele usa foram as execuções via guilhotina durante a Revolução Francesa. A sociedade estava tão cansada e irritada diante da exploração causada pelos nobres e pela Igreja que as execuções eram assistidas com entusiasmo por várias pessoas. Estas se juntavam e suas expressões eram descritas por fontes de época como semelhantes aos de animais selvagens. Após o acontecimento, todos voltavam para suas casas e tocavam suas vidas com educação e naturalidade. O espetáculo da morte reduzia as tensões e era usado pelos dirigentes revolucionários como uma forma de reduzir estragos maiores. Basta pensar no que foi o período do Terror. O que Jackson nos traz é um pouco disso. O leitor se choca não necessariamente com o resultado da loteria, mas com o clima ameno que se instaura antes e durante a loteria. E a súbita transformação daquelas pessoas.


Essa é uma coletânea sensacional que serve para mostrar um pouco mais das habilidades de Shirley Jackson. Sua habilidade de construir enredos tensos que exploram lados obscuros do ser humano. Algumas de suas histórias são perturbadoras no sentido de que existe uma naturalização do desinteresse, da exploração, do preconceito. Seus personagens nem sempre são bondosos, podendo ser impiedosos. Podem participar até daquilo que Jackson pretende trazer para suas histórias como a mulher de classe que passa a fazer piadas e a ignorar aquela que outrora era sua amiga por causa de como o resto da sociedade encara o seu acompanhante em Jardim Florido. A destruição do jardim que antes representava a beleza e a harmonia por sentimentos de inveja e incompreensão é a metáfora perfeita que representa como a autora desconstrói os grupos de "homens de bem". É uma coletânea que merece sua atenção e cujas histórias podem ser lidas em qualquer ordem a qualquer momento. Recomendo até que se leiam várias vezes porque novas camadas surgem a partir de releituras.


Ficha Técnica:


Nome: A Loteria e outros contos

Autora: Shirley Jackson

Editora: Alfaguara

Gênero: Romance/Mistério

Tradutora: Debora Landsberg

Número de Páginas: 264

Ano de Publicação: 2022


Avaliação:


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*Material recebido em parceria com a Editora Alfaguara



















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