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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "A Longa Marcha" de Stephen King (escrevendo como Richard Bachman)

Uma cruel competição onde cem garotos realizam um teste de resistência caminhando pelas estradas do Maine. Somente um pode se sagrar campeão. Ao vencedor, qualquer coisa que ele quiser na vida. Aos perdedores, um bilhete de despedida dada por uma bala na cabeça.


Sinopse:


Um livro impossível de largar, A Longa Marcha é uma narrativa distópica sobre uma competição em que os participantes não têm mais nada a perder, além da própria vida. O romance inaugura a nova coleção da Suma que reúne os livros de Richard Bachman, pseudônimo que Stephen King usou para assinar histórias angustiantes e surpreendentes.


Contrariando a vontade da mãe, o jovem Ray Garraty está prestes a participar da famosa prova de resistência conhecida como A Longa Marcha, que presenteia o vencedor com “O Prêmio” ― qualquer coisa que ele desejar, pelo resto da vida.

No percurso anual que reúne milhares de espectadores, cem garotos devem caminhar por rodovias e estradas dos Estados Unidos acima de uma velocidade mínima estabelecida. Para se manter na disputa, eles não podem diminuir o ritmo nem parar. Cada infração às regras do jogo lhes confere uma advertência. Ao acumular mais de três penalidades, o competidor é eliminado ― de forma “permanente”. E não há linha de chegada: o último a continuar de pé vence.





Esse não é um livro de Stephen King. É um livro de Richard Bachman. Vocês vão me perguntar como assim, se Bachman é apenas um pseudônimo do Mestre? Pois é, isso é verdade. Mas, autores quando escolhem usar pseudônimos significam duas coisas: escrever de forma anônima e aproveitar esse anonimato para revelar outras facetas de si mesmo através da escrita. É isso o que acontece nesse romance. Em A Longa Marcha, temos um King bem mais agressivo, cruel até. Essa não é uma história com final feliz. Além de possuir muita, mas muita crítica social implícita em suas linhas. Nesses romances conhecidos como Os Livros de Bachman, muitos fãs do autor acabam estranhando a fúria presente nas linhas, a forma diferente de apresentar seus personagens e até o processo de condução da história. A edição brasileira foi traduzida pela nossa especialista contemporânea em Stephen King, Regiane Winarski e a tradução consegue nos manter bem presos na narrativa. Não senti qualquer dificuldade na leitura e gostei bastante da diagramação do livro. No mais, é uma edição com uma capa bem melancólica e quem for refletir sobre a imagem de capa após a leitura vai entender direitinho o significado dela.


Estamos em um Estados Unidos diferente, que não é muito bem explicado para nós, mas que parece ter sofrido algum tipo de mudança social onde muitos perderam seus recursos. Todos os anos uma competição é realizada: a Longa Marcha. Cem jovens se inscrevem na competição e precisam caminhar indefinidamente pelas estradas americanas começando no estado do Maine e indo até somente um restar. Aqueles que fraquejarem podem receber até três advertências quando então recebem o bilhete, um tiro de fuzil vindo de soldados que seguem o comboio de competidores. Espectadores de todo o país vão até a beira das estradas para assistir a essa terrível competição e, quem sabe, ver alguns miolos voando. As apostas são feitas nos competidores favoritos que recebem o apoio de suas cidades natais. O vencedor da competição tem direito a um desejo que pode ser qualquer coisa que lhe será fornecido por toda a vida. Nesse ano, seguimos Ray Garraty, um cara que é da casa, do Maine, e deixou sua mãe e sua namorada Jan de coração partido, sabendo que pode ser a última vez que irão vê-lo em vida. Garraty não sabe por que está competindo, mas deseja de todo o coração ver sua mãe e sua namorada uma última vez. Mas, serão centenas de milhas até lá. Poderá ele realizar o que deseja?


Para aqueles que reclamavam que o George R.R. Martin matava nossos personagens queridos na série Game of Thrones, isso aqui é uma carnificina. Poucas vezes vi o King tão mortífero em um romance. Essa é uma escrita bem diferente do que estamos acostumados e hoje nós sabemos que se trata de um romance dele sob um pseudônimo. Na época em que foi publicado, em 1979, acharia bem complicado identificar o dedo dele. A gente pode dizer que a história se passa no Maine, e que passa por algumas cidades familiares como Bangor, mas só por isso não dá para dizer que é do King. Essa é uma narrativa em terceira pessoa, concentrada no personagem do Garraty ao qual seguimos pelas estradas. O narrador é onisciente no sentido de que percebemos o que o protagonista percebe com alguns detalhes extras. É uma escrita em estilo cinematográfico com uma introdução bem rápida, um desenvolvimento mais longo e uma conclusão que funciona como clímax e epílogo na mesma medida. Os capítulos são muito velozes e salvo por alguns capítulos mais longos no meio, geralmente eles tem entre 12 a 18 páginas. Vocês não fazem ideia de como esse livro funciona em altíssima velocidade. Devorei esse livro em dois dias e estamos falando de quase trezentas páginas. E eu parecia um animal faminto por mais. Normalmente os livros do King são mais metódicos e até descritivos, o que não é o caso aqui. Ele apresenta bem por alto o contexto do seu mundo e também as regras do jogo. E só. O resto é personagens, desenvolvimento e acontecimentos.


Esse romance aqui é um tapa na cara a uma sociedade do espetáculo. Poderia trazer aqui o Guy Debord e seu livro clássico, mas acho que vale a pena apresentar algo mais pungente. Vale trazermos outro autor clássico da Sociologia porque a espetacularização aqui acontece de um ponto de vista midiático. Há programas de televisão entrevistando os participantes in loco, espectadores fazendo propaganda de suas lojas ou produtos. E no meio de tudo, tem jovens caminhando como zumbis por centenas de quilômetros. Há uma indústria cultural construída a parte da morte e do definhamento. Theodor Adorno se encaixa muito mais nessa representação ao criticar as novas formas de exploração do trágico e do cruel. O quanto o capitalismo vai abraçar aquilo que choca para criar algum tipo de lucro em cima. Se a gente fosse traçar uma relação com o mundo real é quase como os programas diários que espetacularizam a atuação da polícia e mostram a tragédia da vida real. Tem alguns momentos dessa indústria cultural que são patentes disso como o italiano fazendo propaganda da sua loja de melancias, os prefeitos de cidadezinhas menores dando as boas vindas aos competidores. Tem um momento fenomenal (de cruel) quando aparece uma placa quase no final do romance dizendo aos competidores quantos quilômetros faltavam para Boston.


Há também um segundo significado que vem de um lado mais primitivo da humanidade. A observação da tragédia e da violência causa uma produção de euforia nesse público. Uma liberação de endorfina que causa um prazer bizarro. Quem já assistiu o filme Crash - Sem Limites sabe do que estou falando. É o prazer sexual vindo do absurdo. Pessoas estão morrendo uma a uma após caminharem por várias horas e as pessoas do lado dos espectadores estão vibrando descontrolados. Mesmo para os competidores existem momentos de fúria e liberação primal. Logo no começo, Garraty segue em direção a uma menina que estava torcendo por ele e a abraça de forma selvagem e sexual por poucos segundos. O que poderia parecer algo invasivo e violento para a garota, se revela algo esperado e emocionante para ela. Isso acontece em outros momentos da história. Pode ser por essa via sexual, mas há momentos de violência também com os espectadores desejando ter um pedaço daquela experiência. Até restos deixados pelos competidores são colecionados como souvenirs. São momentos chocantes de verdade.


Os personagens são muito bem construídos. E isso é uma característica do próprio autor. Ele consegue tornar mesmo aqueles que ficam no fundo diferentes dos demais. Individualizá-los através de características bem comuns, seja um apelido, uma piada sem graça que se torna chavão, uma característica peculiar, um trauma qualquer. O grupo que acompanha Garraty é delineado bem. O que é mais cruel nessa narrativa é que King vai dando um rosto para esses personagens de fundo e a gente fica torcendo para que tudo acabe bem de algum jeito. Mas à medida em que a narrativa vai passando, vamos nos conscientizando da finalidade desse trajeto. Não há saída possível. E esses personagens a quem nos apegando vai sendo eliminados da competição um a um. Não há um antagonista ou um inimigo a ser derrotado. Mesmo Barkovitch que é um troll na competição, no fundo acaba se revelando ser uma pessoa humana e que deseja apenas ter pessoas ao seu lado quando o momento derradeiro acontecer. É uma aula de criação de personagens e olha que não é fácil assim criar dezenas de personagens tão normais. Tem um momento lá na frente em que ele dá contornos para dois personagens que nunca tinham aparecido antes. Em dois capítulos a gente já se importava com eles. Sempre recomendo a quem deseja escrever e quer saber mais sobre o processo de criação de personagens para ler algo do King. É uma masterclass no assunto.


Garraty é um personagem bastante curioso. King conseguiu criar um personagem repleto de pudores e até meio conservador. Em alguns momentos quando alguns dos competidores fazem algum comentário mordaz, ele se encolhe e seus pensamentos não são nada bonitos. Mas, aos poucos vamos nos dando conta de como o personagem funciona. Alguns traumas como um acidente infeliz com um amigo a partir de uma experiência sexual que ele procura esconder. E algo que volta para atormentá-lo quase no final da marcha. É engraçado porque ele é um personagem que a gente não diria que chegaria longe nessa prova e mesmo sendo o protagonista da narrativa, ele só consegue com a ajuda de alguns companheiros ou de um pouco de sorte ou força mental de sua parte. Enquanto os demais competidores confessam entre eles os motivos que os levaram a embarcar em um empreendimento tão suicida (e alguns motivos são bastante bobos), Garraty não sabe o motivo de estar ali. E ele vai tentar entender isso enquanto reflete sobre si mesmo e seus objetivos na vida ao longo da prova.


Existem vários momentos filosóficos no livro. Os personagens são levados ao seu limite extremo e com isso vão pensando em situações corriqueiras da vida como a escolha de uma namorada, a primeira vez, a importância da família ou até coisas bobas como curtir um cinema. O que os leva adiante é o apoio um do outro, quando cara a cara com a morte, eles só podem olhar para o lado e saber que não estão sozinhos. É tocante ver o laço de amizade que surge entre eles, mesmo levando em conta que se trata de uma competição onde apenas um se sairia vencedor. Mesmo os comentários irônicos de alguns deles possui um certo grau de bondade em meio ao caos que é aquilo tudo. Só podemos acompanhar junto deles nessa travessia mortal, compartilhando momentos e destinos. A Longa Marcha é uma baita história e um autor que está em uma forma bastante diferente da que muitos estão acostumados.











Ficha Técnica:


Nome: A Longa Marcha

Autor: Stephen King (sob o pseudônimo de Richard Bachman)

Editora: Suma

Tradutora: Regiane Winarski

Número de Páginas: 288

Ano de Publicação: 2023


Link de compra:


*Matertial recebido em parceria com a Editora Suma











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