Em um clássico de ficção científica, vemos um náufrago chamado Prendick que conhece Montgomery, alguém que está levando animais para uma estranha ilha. Ao chegar nesse lugar, Prendick irá presenciar acontecimentos que o levarão ao limite da sanidade.
Sinopse:
À deriva, sem esperanças de sobreviver em alto mar, Charles Prendick é resgatado por um navio em missão das mais incomuns: levar a uma pequena ilha no Pacífico algumas espécies de animais selvagens. Ainda debilitado, Prendick é obrigado a desembarcar na ilha junto com o carregamento. Lá, ele conhece a figura do dr. Moureau, um cientista que, exilado por suas pesquisas polêmicas na Inglaterra, realiza experimentos macabros com seus animais. Uma parábola sobre a teoria da evolução, além de uma mordaz sátira social, A ilha do dr. Moreau é um romance que, mais de cem anos após sua publicação original, permanece com a mesma força da surpresa e do horror.
Ciência sem ética
Este é um dos romances menos badalados de H.G. Wells, apesar de sempre ser colocado ao lado de preciosidades com A Máquina do Tempo, O Homem Invisível, a Guerra dos Mundos. Apesar de ser uma história relativamente curta comparada a outras, ela chama a atenção de vários temas: ética científica, o debate civilização x barbárie, o colonialismo selvagem, o que é um ser humano... São tantas ideias que daria para fazer um debate extenso sobre o livro. Infelizmente ele não caiu tanto assim nas graças do público além de não ter tido nenhuma boa adaptação para o cinema. Uma narrativa interessante, dinâmica e que, na edição da Bandeirola, conta com um ótimo prefácio escrito pelo Bráulio Tavares que enriquece bastante nossa leitura da narrativa.
Charles Prendick é resgatado por um navio após passar por uma situação de naufrágio. Ele é levado pela tripulação e acaba fazendo amizade com Montgomery, que pagou para colocar sua carga de animais no navio, causando bastante transtorno por lá. Depois de algumas divergências com o capitão do navio, um bebum inveterado, Prendick acaba sendo obrigado a descer junto de Montgomery em uma ilha afastada do continente. Isso para consternação do cuidador de animais que não esperava ter que contar com um visitante. Prendick é então colocado em um quarto onde ele poderia permanecer até a chegada de outro navio na costa, mas ele desconfia de alguma coisa quando seu anfitrião tranca o quarto por fora. Ao sair para explorar a ilha, ele acaba encontrando alguns estranhos vultos que vivem em uma floresta próxima. Mais para a frente, Prendick vai ter contato com o chefe de Montgomery, o exótico doutor Moreau.
"Por cinco vezes avistei velas, e por três vezes vi fumaça, mas nunca alguém se aproximou da ilha. Eu tinha sempre uma fogueira pronta, que era acessa nessas ocasiões, mas sem dúvida a reputação vulcânica da ilha serviria como explicação para quem avistasse a coluna de fumo."
A narrativa é contada em primeira pessoa pela visão do Prendick. Aliás, muito cuidado na leitura porque o narrador é extremamente não confiável. Ele descreve para nós aquilo que ele está vendo, ou seja, alguns fatos são deixados em segundo plano a serem interpretados pelo leitor. O livro foi publicado inicialmente no formato de folhetins, com cada capítulo saindo uma semana no jornal. Mais tarde é que foi compilado no formato de livro. Por isso os capítulos são rápidos e dinâmicos. Dá para ler o livro rapidamente, a tradução está fantástica. Recomendo muito ler o prefácio do Bráulio Tavares, que nos fala sobre o próprio Moreau e sua identidade como uma mente livre. Ele traça paralelos entre Moreau e até Thomas More. É um belo material a se refletir acerca da importância do romance para a formação do próprio gênero da ficção científica.
Essa é uma daquelas histórias que precisa compreender além do que é dito na história. Por exemplo, a gente tem uma forte discussão sobre darwinismo social, algo que começava a entrar nas discussões de intelectuais do período. Através das formulações de Charles Darwin sobre a origem e a evolução das espécies, criou-se uma outra vertente que visava pensar a evolução das etnias partindo de um princípio de mais evoluído para menos evoluído. Era mais uma maneira de justificar o preconceito. Isso entrou nas pesquisas de inúmeros sociólogos do período. Em A Ilha das Almas Selvagens vemos uma crítica de Wells a essas formulações e ao mesmo tempo uma citação. Os homens-animais vivendo na ilha tinham formado um tipo de sociedade primitiva que possuía suas leis. Mas, pouco a pouco, vemos essas leis não conseguindo sustentar a sociedade que regride até um estado de selvageria quando tudo vai pelo ar na ilha. Até se formos parar para pensar é um reforço nas formulações de Thomas Hobbes, em A Utopia, quando ele diz que sem a presença das instituições as sociedades voltariam a seu estado de natureza. Se for isso o que Wells depreendeu de estado de natureza, é algo realmente horripilante. Mas, voltando à questão do darwinismo social, mais tarde Prendick vai ter dificuldades até para poder voltar a se relacionar em sociedade porque ele já não saberia diferenciar as pessoas com quem ele convive com os homens-animais.
“Uma mente verdadeiramente aberta ao que a ciência tem a ensinar deve reconhecer que é uma coisa pequena. Pode ser que, exceto neste pequeno planeta, esta pitada de poeira cósmica, invisível muito antes que se possa alcançar a estrela mais próxima… pode ser, repito, que em nenhum outro lugar exista essa coisa chamada dor.”
Uma outra interpretação possível tem a ver com o neocolonialismo europeu que se estendia já há algumas décadas quando o livro fora publicado. Durante a Conferência de Berlim, o continente africano e parte do asiático foram divididos entre as nações europeias que passaram a ter o monopólio de sua exploração. A partir de então inicia-se um processo civilizatório que vai destruir uma série de culturas antigas em prol de um ímpeto de levar o desenvolvimento a culturas entendidas como bárbaras. É possível entender A Ilha das Almas Selvagens como uma metáfora disso. Do ataque do homem branco às culturas antigas, impondo a sua visão do que deveria ser a perfeição e um contra-ataque dessas culturas a essa invasão. Prendick funcionaria como o europeu arrependido ao perceber a riqueza daquilo que estava sendo construído ali, longe da influência de Moreau. A percepção de Prendick fica embaçada no final da história porque ele já não sabe diferenciar o que é civilização do que é barbárie.
Confesso que a primeira vez que eu li A Ilha das Almas Selvagens eu não gostei. Tinha lido em uma edição mais antiga, da Francisco Alves, e a história não tinha descido na época. Dessa vez li na edição da Bandeirola e a leitura fluiu muito bem. Mas, estou tendo dificuldades com a leitura de A Guerra dos Mundos e penso se não é o fato de Wells ser mais palatável em uma segunda leitura do que em uma primeira. Os personagens são bem básicos e representam estereótipos: Prendick representa o leitor, uma pessoa normal que não conhece onde está e descreve aquilo que está sentindo e vivenciando; Montgomery é uma espécie de capataz/criador de animais e que acaba se abalando à medida em que a loucura na ilha vai se expandindo; Moreau é o típico cientista louco que não mede as consequências para atingir uma revolução científica. Não há muita evolução nos personagens sendo que na primeira metade, o autor brinca com a tensão ao colocar o estranhamento na pele de Prendick enquanto que a segunda parte é uma grande narrativa de fuga.
A Ilha das Almas Selvagens é uma história que precisa ser lida principalmente no que diz respeito à ética na ciência. Não se trata de um espaço cinza na capacidade de fazer incríveis descobertas à custa da moralidade. O que Moreau faz na ilha é inominável. Mesmo em se tratando de animais... são seres vivos assim como nós. A justificativa da descoberta do tratamento do câncer e diversas cirurgias mais agressivas foram usadas para o Holocausto e as câmaras de gás. A ciência precisa seguir determinados procedimentos éticos, caso contrário acabamos perdendo o que temos de humanidade e retraindo para hábitos selvagens, se pudermos usar o trocadilho empregado por Wells. Responsabilidade acima de tudo. Sei que muitos entendem isso como uma barreira para descobertas mais radicais, mas não podemos empregar o "os fins justificam os meios". Pessoas malignas usaram isso no passado.
Ficha Técnica:
Nome: A Ilha das Almas Selvagens
Autor: H.G. Wells
Editora: Bandeirola
Tradutor: Monteiro Lobato
Número de Páginas: 129
Ano de Lançamento: 2020
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