Pela primeira vez no Brasil, um livro da Silvina Ocampo, uma das mestras contadoras de histórias da América Latina. Nesta coletânea de contos, a autora trabalha temas do estranho, do mágico e do fantástico no nosso cotidiano.
Sinopse:
Finalmente vemos chegar ao Brasil um livro de Silvina Ocampo, que está entre os escritores mais surpreendentes e intensos do continente. Publicado em 1959, A fúria é considerado “o mais ocampiano” dos livros de Silvina, obra em que a autora encontra sua voz única e inaugura seu universo alucinado. “Nos seus contos há algo que não consigo compreender: um estranho amor por certa crueldade inocente e oblíqua”, escreveu o amigo Jorge Luis Borges. Saídas do que Roberto Bolaño chamou de “uma limpa cozinha literária”, suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Há a influência macabra que a antiga dona de uma casa exerce na nova inquilina (“A casa de açúcar”, o conto favorito de Julio Cortázar); adivinhos e premonições (“A sibila” e “Magush”); amores loucos (“A paciente e o médico”); a festa de aniversário de uma jovem paralítica (“As fotografias”); e uma profusão de crianças malignas, como a que incendeia cruelmente uma amiga no conto que dá título ao livro. Revalorizada com entusiasmo nos últimos anos, a literatura de Silvina Ocampo é singular, complexa, envolvente e nos convida, como poucas, à fantasia e à imaginação.
A magia do estranho
Finalmente temos a oportunidade de conhecer a obra de Silvina Ocampo, considerada, ao lado de Adolfo Bioy Casares (seu marido), de Julio Cortazar e de Jorge Luis Borges como os pilares do realismo mágico. Mas, enquanto os outros três já tiveram suas publicações se tornadas famosas por aqui, nunca tínhamos tido a oportunidade de conhecer, em português, um livro somente da autora. A Fúria é uma coletânea de contos, sendo alguns bem curtinhos e outros um pouco mais longos. Ocampo consegue pegar cenários e situações as mais corriqueiras possíveis e transformá-las em algo diferente: uma mulher solitária, uma cabeleireira, um casal insatisfeito no casamento, uma senhora com poderes divinatórios. Mas, diferentemente do maravilhoso de Borges ou da complexidade técnica de Cortázar, Ocampo caminha para uma vertente mais alinhada ao suspense e ao grotesco. Vamos ver em alguns contos que eu vou comentar a seguir que a autora consegue enxergar o que existe de pior nas pessoas. Suas crianças são malévolas e travessas, a ponto de levar pessoas à ruína. Aliás, fica aqui a associação com outro romance que fez bastante sucesso em 2018: As Coisas que Perdemos no Fogo, de Mariana Enriquez (resenha aqui). Para quem curtiu o terror estranho de Enriquez, saibam que ela tem uma clara inspiração nos contos de Ocampo.
Para entendermos um pouco de como funciona a mente de Ocampo, vamos falar sobre Os Sonhos de Leopoldina. Ludovica e Leonor são duas jovens que desejam ascender socialmente. Desde o início vemos o quanto ambas são interesseiras e invejosas, desde a fala à maneira como ela se refere à antiga casa da família. Elas sempre ouviram falar que Leopoldina era uma sábia senhora, apesar dos hábitos simples e que possuía algum tipo de poder sobrenatural. É quando elas descobrem que os sonhos da senhora se materializam no mundo físico. Ambas pensam em como tirar proveito dessa habilidade da senhora. Mas, elas acabam esbarrando na simplicidade dela, incapaz de pensar em riquezas ou bens materiais. É a partir dessa premissa, de o como fazer a senhora realizar aquilo que elas desejavam, é que roda a trama. E a cada parágrafo a narrativa vai obtendo detalhes cada vez mais estranhos. O que realmente fica com o leitor é o quanto as protagonistas são desprezíveis.
Outro bom exemplo dessa vertente da autora está no conto As Fotografias. Tudo começa com a festa de aniversário de Adriana. Se tornou uma tradição de família tirar fotos dos membros da família após chegar a uma certa idade. Para Adriana, este era o momento dela. Sua hora de brilhar e ter os holofotes para si. Mas, Humberta, acabou roubando as atenções da família com um jeito mais extrovertido de ser. Isso causou a ira de Adriana que acaba por discutir com ela. O que vamos ver a seguir é um momento bem estranho. O narrador é um dos convidados da festa que está ao lado de Adriana. Humberta sempre é referida como "a infeliz". Mais uma vez estamos diante de uma personagem que nos é apresentada como invejosa e interesseira. Cuja maneira de tratar seus familiares é ruim. E a autora explora cada ângulo dessa forma de ser.
O terror também está presente em suas histórias. A Casa de Açúcar é um bom exemplo desse lado. Um casal se muda para uma linda cara cuja cor branca é tão branca que parece açúcar. Só que a esposa tem várias superstições estranhas. Algo que é bem comum em vários países da América Latina. Ocampo explora esse lado supersticioso e religioso em sua personagem. Uma dessas superstições da esposa é não morar em algum lugar em que outras famílias tenham tido uma história trágica. Segundo o raciocínio dela, esses acontecimentos tendem a passar para os novos moradores. O marido decide não contar sobre o histórico daqueles que viveram antes da chegada do casal. Pessoas estranhas começam a bater na porta de sua casa identificando a esposa com o nome da mulher que viveu antes. Progressivamente Ocampo vai nos fazendo aceitar que o estranho pode se tornar possível até ela realizar a virada narrativa que leva ao fim da história.
Mencionei a religiosidade presente nas histórias, então não tenho como não mencionar A Oração. Lavinia é uma mulher insatisfeita no casamento e acaba tentando descobrir uma razão para sua vida no convívio social e na igreja. Percebemos sua infelicidade na prosa poética de Ocampo que nos descreve suas passadas com toda a melancolia. Lavinia acaba adotando um menino de rua o qual ela salva de alguns agressores e o leva para casa. A partir daí a narrativa começa a tomar tons bem estranhos. O quarto do menino fica no porão e por uma razão explícita na história ele não pode sair de casa. Isso acaba por satisfazer o sentimento de necessidade da personagem. Mas, Lavinia acaba insistindo na premissa de que o menino é um ser puro, mas ela não consegue tirar da cabeça que ele pode cometer algum ato de violência a qualquer momento. São essas pequenas sugestões que Ocampo vai apresentando ao longo da narrativa que constroem a noção de que o impossível se torna possível, mesmo que esse impossível seja algo fantástico.
O conto que eu mais gostei da coletânea foi A Paciente e o Médico. É uma amostra de como Ocampo consegue construir personagens perturbados e bizarros. A narrativa se dá em duas partes: do ponto de vista da paciente e do ponto de vista do médico. A paciente é uma mulher sem propósito que acaba se apaixonando pelo médico que a atende. A partir de então entramos em uma jornada romântica em que ela fala o quanto o médico é importante em sua vida. Ela alimenta sua paixão, tentando entrar em contato com o objeto de sua admiração e até lhe dando presentes. Aos poucos vamos vendo quais os limites de sua paixão: ela chega a se prostituir para conseguir comprar presentes cada vez mais caros para seu amado. No final de sua parte, somos colocados diante do clímax que envolve um encontro tão esperado por ela... Até o momento em que vemos a mesma história sob o ponto de vista do médico. O que era bonito (apesar de extremo) antes, se torna bizarro.
Fico feliz de finalmente ter conseguido ler algo de uma autora que eu passei a admirar por conta de pequenos contos espalhados em diversas coletâneas. Agora pude ler com mais atenção o seu trabalho e tirar minhas próprias conclusões a respeito. Só posso recomendar a vocês a leitura desse clássico. Ela dá uma aula sobre narrativa curta e como empregar a fantasia para propósitos bizarros. Vale a pena até para podermos diferenciar de uma prosa mais maravilhosa e fabulística como a de Borges ou de Cortázar. É realmente uma experiência bem diferente.
Ficha Técnica:
Nome: A Fúria
Autora: Silvina Ocampo
Editora: Companhia das Letras
Tradutora: Livia Deorsola
Número de Páginas: 224
Ano de Publicação: 2019
Avaliação:
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*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
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