Em um conjunto residencial construído para destacar a luz do sol para seus moradores, várias histórias se cruzam em um lugar onde sonhos são criados e destruídos. Inio Asano mostra mais uma vez a sua capacidade para nos chocar e nos encantar em uma narrativa repleta de emoções conflitantes.

Sinopse:
INIO ASANO NOS MOSTRA QUE AS HISTÓRIAS MAIS INUSITADAS PODEM ESTAR EM NOSSO COTIDIANO... Uma área residencial é criada nos arredores de Tóquio e chamada de “Cidade da Luz”. Lá, grandes edifícios coexistem com casas antigas e presenciam o cotidiano de seus habitantes. Nesta compilação de histórias ora sombrias, ora felizes, ora trágicas, o aclamado autor Inio Asano entrelaça os destinos de pessoas que nem sempre são tocadas pelos raios de sol que banham a cidade em que vivem.
Esta é uma coletânea de histórias curtas que se passam em um conjunto habitacional de classe média alta construído para ser uma espécie de refúgio com uma vista magnífica para o sol. A luz adentra nos diversos apartamentos, mas as sombras deixadas pelo sol revelam verdades magníficas e terríveis. Asano constrói narrativas comuns com personagens bastante reais, nos emocionando e nos impactando através de sua arte e de seu texto. A Cidade da Luz é uma obra repleta de significados, alguns que talvez não sejam captados em uma primeira leitura, mas que estão ali para serem decifrados. A edição da Panini Comics está bem simples, mas a tradução está adequada e o papel não interfere na arte do autor. Mesmo sendo histórias curtas, o leitor vai ser presenteado com toda a habilidade de Asano para criar histórias que emocionam.
Antes de passar à discussão do mangá em si, quero chamar a atenção da Panini por sequer ter colocado avisos de gatilho aqui. É complicado isso porque o mangá tem diversas temáticas pesadas como suicídio, violência doméstica, stalking. Então farei o que a Panini não fez:
AVISO DE GATILHO: Temas sensíveis como suicídio, violência doméstica, stalking.
Editora, isso é o mínimo. Poderia sair na quarta capa ou até na folha de expediente. Mas, o leitor precisa ser avisado disso. Embora o mangá tenha sido publicado em 2017, já se convencionava alertar quanto a esse tipo de temáticas mais sensíveis. Fiquei em choque quando li o capítulo que trata de um desses temas e fui imediatamente procurar algum tipo de aviso nos textos editoriais e me espantei ao não encontrar nada. Absolutamente nada. Somente um alerta na frente de que o mangá é impróprio para menores de 18 anos.
Em A Cidade da Luz achei a arte de Asano mais contida do que em outros trabalhos. Por exemplo, Solanin tem momentos realmente icônicos, como os momentos doces e gentis de Meiko e Taneda representados com uma arte doce e gentil ou o show de Meiko mais tarde em que os ângulos de câmera visavam demonstrar as emoções que estavam por trás daquela apresentação. Neste mangá, Asano se foca nos diferentes ângulos e perspectivas que a luz do sol tem e que atravessam esse gigante de concreto que são os edifícios. Se posso dizer de algum ponto que tenha me impressionado aqui são as expressões dos personagens que são bastante vivazes e expressivas e os momentos em que o autor usa os quadros pretos ou brancos puros para quebrar o ritmo de uma história. Nesses quadros pretos, Asano coloca pequenas pérolas de poesia que regem a temática daquele conto em particular. Outra curiosidade é que Asano usa sarjetas muito próximas dos quadros. Não sei se isso é uma rediagramação feita aqui pela Panini ou se isso é uma regra geral para o autor. Só sei que isso fornece uma eloquência única para as histórias. Isso é algo que me chamou a atenção a ponto de em alguns momentos quase me esquecer que haviam divisões entre os quadros.
A primeira história se chama "Para onde vai a estrelinha que brilha" e lida com as reflexões de um mangaká chamado Notsu sobre o seu futuro. Diferente de seus colegas que levam a vida na maciota, ele está em uma encruzilhada. A vida adulta aperta suas garras sobre ele e as pressões se empilham uma após a outra. Sua namorada lhe faz uma revelação bombástica que coloca o seu mundo de pernas para o ar. Essa é uma história leve (com uma pequena situação que se interliga com a segunda história) onde Notsu percebe o quanto a vida passa rápido e as coisas que o fazem feliz podem estar ao alcance de suas mãos. Sua carreira parece ser incerta, mas com trabalho e dedicação, as coisas podem acontecer. Asano joga na nossa cara o quanto nossas escolhas moldam os caminhos que seguimos.

A segunda história dessa coletânea toma um rumo bastante sombrio. Seu título é "Ponto de Ônibus" e ela é a mais extensa. Somos apresentados a Tasuku e Haruko, que possuem backgrounds bastante pesados. Tasuku tem um "passatempo" sombrio: para ganhar dinheiro, ele se tornou um ajudante de suicidas. Ele faz o possível para deixar o caminho livre ou fornecer os lugares ideais para que estas pessoas possam realizar seus suicídios sem serem incomodados. Na visão de Tasuku, ele está libertando o mundo de pessoas desprezíveis e sem esperança. Seu pai é um ex-inspetor de polícia que perdeu a esposa em um acidente. Desde então sua vida parou e ele não dedica mais nenhuma atenção a Tasuku. Por essa razão, o menino acabou envolvido em um submundo estranho e bizarro. Já Haruko é uma menina que passou por vários traumas nos últimos anos. Quando mais jovem, ela foi vítima de um stalker que tentou estuprá-la. Ao tentar fugir de seu agressor, este a esfaqueou inúmeras vezes, deixando marcas em seu corpo e em seu coração. Sua mãe é uma pessoa que não tem nenhum apreço por sua filha. Tasuku e Haruko desenvolveram uma forte afeição um pelo outro que será testada após uma terrível tragédia que se abate sobre ambos.
Essa história e a última desta coletânea são as mais pesadas desse mangá, mas pelo volume de coisas que acontecem aos dois personagens, essa é disparada a mais impactante. E aquele meu aviso de gatilho já tinha me impressionado na primeira história onde acontece uma situação semelhante, mas aqui Asano é mais gráfico nas imagens. Logo nas primeiras páginas aparece uma jovem colegial se jogando do prédio onde Tasuku vive e ela passa a centímetros dele. O personagem não esboça qualquer reação emocional mais forte e é nesse momento inicial (por isso, não é spoiler) é que percebemos que algo está muito errado com o protagonista. Tanto um como outro personagem são vítimas do abandono, são indivíduos que gritam por uma ajuda que nunca vem. Seus familiares são pessoas agressoras ou marcadas por uma violência e não são mais capazes de gerar uma afetividade por eles. O olhar dos dois personagens é marcado por um profundo vazio emocional ao qual eles não conseguem explicar. É curioso que Tasuku tem uma visão sobre Haruko e o quanto ela representa para ele, apenas para que esta visão seja quebrada mais tarde na narrativa. Toda a imagem idealizada que ele tinha sobre ela se despedaça como cacos de vidro. É uma narrativa bastante pesada que nos chama a atenção sobre o quanto a solidão e a falta de apoio podem destruir pessoas que necessitam dessa afetividade.
Asano também fala sobre duas pessoas bastante diferentes conseguindo se comunicar uma com a outra. Algo que o autor já fez com sucesso em outros mangás. Na singela história chamada "hPa" temos duas garotas que estão fazendo uma recuperação de estudos no mesmo dia. Mas, elas não poderiam ser mais diferentes. Nishimura é uma garota que tem dificuldades para estudar e tem aqueles instintos básicos de toda adolescente que não quer nada com a vida: curtir com as amigas, arrumar um namorado. Suas notas foram tão ruins que ela está precisando fazer uma prova para tentar recuperá-las e ela se depara com Higashi, aquela que teoricamente é a melhor aluna da sala. No meio dessa estranha situação para Nishimura, Higashi puxa assunto com ela e começa a dizer que fala com alienígenas. Esse vai ser um dia bem estranho para estas duas garotas que vão perceber que o que elas tem de diferente, pode ser entendido como complementar. Quem sabe não nasce uma inesperada amizade nesse dia estranho? A menos que Higashi esteja certa e ambas sejam abduzidas.

Hoichi, um personagem importante para a narrativa do segundo conto, retorna em "Lar", a quarta história. Nela, vemos a vida improvável de um trio também improvável: Satoshi, um garoto que está confortável com uma vida simples e com privações, porém feliz; Hoichi, um homem ligado a um grupo criminoso que realiza golpes e sequestros; e Momoko, uma criança que é abandonada por uma garota com quem Hoichi se envolveu no passado. Esse é um conto que tem ligações bem sutis com o condomínio que é o cenário onde as histórias se passam. O leitor descobre que uma empresa farmacêutica está despejando resíduos industriais nas imediações do condomínio, algo que poderia ser configurado como crime ambiental. O grupo de Hoichi planeja dar um golpe. Só que a vida do personagem pode ir para o espaço caso ele leve adiante essa ideia.
A história é contada pelo ponto de vista de Satoshi que é um garoto completamente sem ambições. Apesar de ser uma vida dura e complicada, ele gosta das interações com Hoichi e Momoko e considera que aquele ambiente de uma casa abandonada no qual eles precisam pagar um aluguel, mesmo não tendo dinheiro, é um lar para ele. É aqui que Asano pega uma marreta e derruba tudo aquilo que achamos saber sobre a diferença entre o bem e o mal. Na vida real, esse maniqueísmo bobo não existe. Aquele cara maligno que aparece lá no segundo conto se revela ser uma pessoa repleta de nuances. Sim, ele é uma pessoa com tendências malignas, mas dentro de sua mentalidade simplória existe alguém que se importa com aqueles que vivem a seu lado. Satoshi se pergunta por que Hoichi é tão obcecado em conseguir dinheiro. E a gente também porque esse é um dos motivos pelos quais colocamos o rótulo de pessoa malvada nele. Quando descobrimos o motivo real, é como se levássemos um tapa na cara vinda do autor. Mas, talvez a grande questão aqui é o que configura um lar? É uma casa confortável? Ter dinheiro para suprir suas necessidades? Viver dignamente? Para Satoshi, lar é estar com aquelas pessoas ao seu lado. E não é uma definição tão ruim assim. Lar pode ser algo que vem do coração e não um construto físico.
A última história dessa coletânea chama-se "Rebirthday Song" e é uma história que parece bem maluca no começo, mas é de uma extrema sensibilidade. Taiki é um garotinho que tem uma estranha inteligência fora da sua idade aparente de quem está na pré-escola. Ele chama a atenção da amiguinha que destrói a casinha que ele construiu com bloquinhos de madeira e eles levaram tanto tempo para isso. Taiki pergunta à menininha qual é o sentido de construir a casinha se ela vai destruir logo em seguida. A partir daí já imaginamos o nível de estranhamento da coisa. Não quero contar muito por que a história é bem mais curtinha do que parece. Basta sabermos que se trata de uma história de amor que tentou vencer a morte. Uma pessoa que faz de todo o possível e imaginável para estar ao lado da pessoa amada, não importa se o seu corpo deixou esse mundo. Apenas para ver essa pessoa sendo feliz mais uma vez. Mesmo que essa felicidade não venha consigo. Se eu não tinha me emocionado antes nesse mangá, a cena do garotinho olhando para as estrelas no céu e o ônibus singrando o espaço me quebrou. Daqueles momentos em que o leitor quer acreditar que o amor não é definido por conceitos tolos como vida, morte, tempo, espaço. Amar é. Único e simples.
Uma bela coletânea de histórias e acho que muitos leitores subestimam o poder desses materiais menos conhecidos de Asano em prol de títulos mais badalados como Boa Noite, Punpun e Solanin. São títulos lindos sim, mas é nesse formato de histórias curtas que Asano consegue mostrar seu talento inegável como contador de histórias. Posso não ter curtido totalmente a arte desse mangá, mas como essas histórias são poderosas.
Ah, sim... vou tirar uma estrela em personagens porque me irritou enormemente o fato de a Panini não ter se dignado a colocar um aviso de gatilho. Sei que a história ou o autor nada tem a ver com isso, mas não posso deixar passar em branco.


Ficha Técnica:
Nome: A Cidade da Luz
Autor: Inio Asano
Editora: Panini
Gênero: Ficção/Drama
Tradutora: Lídia Ivasa
Número de Páginas: 216
Ano de Publicação: 2017
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