Salman Rushdie e o poder da perseguição na literatura
- Paulo Vinicius
- 16 de mar.
- 8 min de leitura
Refletindo sobre o atentado contra Salman Rushdie, vamos falar sobre o poder da literatura de pensar o mundo em que vivemos. E de o quanto não há mais espaço para esse tipo de perseguições.

No início de agosto, enquanto se preparava para dar uma palestra no município de Chautauqua, NY, o autor Salman Rushdie sofreu um atentado em que foi esfaqueado várias vezes por um militante muçulmano. Ele seguia uma fatwa (uma espécie de emenda à lei corânica, a muito, muito grosso modo) em que a vida do autor havia sido condenada pelo aiatolá Khomeini quando da publicação de seu best-seller, Os Versos Satânicos. Por mais de vinte anos o autor havia ficado recluso, mudando sua identidade, não divulgando endereço, não participando de eventos, com receio de que pudesse sofrer algum atentado. Em 2020, ele voltou a participar de palestras, debates, eventos, imaginando que era seguro estar em público, tendo passado tanto tempo. Infelizmente tal não era o caso. Até a publicação desta matéria, o autor passa bem e salvo alguns ferimentos e a necessidade de cirurgias, sua vida foi salva a tempo. Isso coloca em debate o fundamentalismo na literatura, não só no sentido religioso, como no ideológico.
Mas, afinal, sobre o que é Os Versos Satânicos? Bom, diferentemente do que vocês imaginam, não se trata de nenhuma apologia demoníaca, livro de terror nem nada do gênero. O título do livro tem a ver com um trecho do Corão que menciona três deusas pagãs existentes no período pré-islâmico: Allat, Al-Uzza e Manat. Se trata da história de dois indianos que morrem, mas acabam caindo do céu, um na forma de anjo e outro na de demônio. Rushdie oferece características contrapostas entre um e outro: um é mais bon vivant, o outro é engajado. Um deles possui um espírito livre enquanto o outro deseja lutar por causas sociais. A ideia geral é semelhante ao que Sasha Baron faz em seus filmes: através de uma comédia ácida e irônica, Rushdie levanta questionamentos importantes sobre o mundo que o cerca. Rushdie vivia em um Irã que passava por um momento de transformação. A Revolução Iraniana havia tirado do poder o governo civil e se transformado em uma teocracia sob o comando do aiatolá Khomeini. Este revogou a constituição existente e colocou em vigor um código de leis baseado única e exclusivamente na interpretação corânica. Recomendo vocês darem uma passada na matéria que fizemos sobre Persépolis, de Marjane Satrapi.
A sociedade iraniana da época havia retomado costumes saídos da visão xiita do islamismo: mulheres usando pesadas burkas, o respeito à tradição, a observância de um conjunto rigoroso de regras morais. Até hoje o Irã vive neste estranho mundo tradicional dentro de uma sociedade globalizada. Versos Satânicos causou tanta polêmica por ser baseado na vida do profeta Maomé. Ao observar o lugar em que ele vive sendo tomado por uma visão estreita do mundo, Rushdie passou a refletir o que aconteceria se Maomé caminhasse nos dias de hoje. Ele questiona tudo o que o aiatolá tratava como sagrado dentro da nova interpretação jurídica. Mais do que isso, Rushdie coloca os personagens em situações bizarras e estapafúrdias, de forma a mostrar o quanto a realidade iraniana era (e ainda é) estranha aos olhos de quem enxerga a religião com o devido respeito. Ao final o que percebemos é que ele critica quem interpreta errado as palavras do Profeta, sem imaginar as nuances e as belas metáforas inseridas nas linhas de um livro tão sagrado. Rushdie não desfaz da religião, ele a eleva, condenando aqueles que a usam em seu próprio benefício.

Só que tem um pequeno problema. O Islã condena qualquer retratação de Maomé. Se trata de uma religião iconoclasta, que não acredita na veneração de ídolos. Mais do que isso: é estritamente proibido desenhar o Profeta, representar cenas do Corão. A própria escrita corânica é sagrada, portanto são as letras que devem ser veneradas e não os ídolos. Por isso, existe uma arte toda voltada para a representação caligráfica, para o simbolismo dos trechos do Corão. Reparem que nos monumentos islâmicos, as letras são gravadas em trípticos, valorizando a sacralidade de sua escrita. Quando Os Versos Satânicos foi lançado em 1988, pouco tempo depois o aiatolá Khomeini baixou uma fatwa condenando-o a morte. Ela é uma espécie de pronunciamento de um especialista no Corão ou alguém ligado à autoridade religiosa. Este é feito em nome de um fiel ou uma autoridade jurídica e tem a finalidade de deixar claro algum ponto da fiqh, a interpretação jurídica do livro sagrado. Por se tratar de uma fatwa expedida a mando do próprio aiatolá, ela possui um alcance global e tem o poder quase de uma ordem sagrada a mando do próprio Profeta. Por essa razão, no momento em que a fatwa foi expedida, é como se o Irã inteiro tivesse se voltado contra o autor. Ele precisou deixar o país porque sua vida estava em risco assim como a de seus familiares. Mas, para piorar, qualquer iraniano poderia atuar a mando da fatwa em qualquer parte do mundo a qualquer momento. Por essa razão, mesmo morando fora do Irã, o autor ainda não estava seguro.
O fato de ele ter sido vítima de um atentado vinte e quatro anos depois que a fatwa foi redigida, demonstra o poder exercido pela religião no país. E a gente precisa ter muito cuidado ao entrar nesse tema porque mexe com a fé e com nossas opiniões pessoais. Na época da publicação, cópias do livro foram queimadas em praça pública. A ideia de ter uma representação gráfica ou escrita do Profeta já causou incidentes internacionais como o ocorrido com as famosas charges no Charlie Hebdo. A publicação de charges cômicas condenando as ações terroristas de grupos extremistas ocasionou a morte de doze pessoas na redação do jornal francês. Não é uma questão a ser tratada de forma leviana. Antes de mais nada, preciso expressar o meu profundo respeito pela cultura muçulmana, a qual pesquisei por quase doze anos durante a minha vida acadêmica. Tive a oportunidade de ler obras de autores como Ibn Battuta, al-Tabari, al-Ghazzali. Na graduação estudei a fundo a Muqqadimah para buscar compreender a sociedade de al-Andaluz durante a Idade Média. Durante a pesquisa, visitei mesquitas e tive o contato com pessoas maravilhosas que me ensinaram pérolas de sabedoria que até hoje guiam minha vida. Me casei em uma igreja mourisca, aquela que melhor resumia o meu pensamento de que as religiões do Livro podem viver em harmonia. Portanto, não sou nenhum leigo no assunto (eu linkaria a minha tese de mestrado se eu soubesse aonde ela está... pesquisei sobre o conceito de guerra santa e o fundamentalismo nas três religiões).
Para quem está de fora, nem sempre é possível compreender o Islã. Talvez muito por causa do enorme preconceito existente em cima da religião. Para não complicar demais, basta sabermos que existem interpretações distintas do Corão, e escolas religiosas que nem sempre concordam entre elas. As duas principais são o xiismo e o sunismo, mas existe também o ibadismo e o sufismo, sendo este último uma espécie de visão monástica do Islã. Por compreenderem a necessidade de lerem os hádices, os livros de costumes deixados por Maomé, eles são mais flexíveis, acreditando na justeza e na bondade dos indivíduos. Já os xiitas, enxergam apenas no Corão como um livro viável, já que ele representa a visão sagrada de Alá. Livros de pessoas próximas ou que testemunharam apenas o trabalho dele não possuem validade frente a escrita sagrada. É uma visão mais precisa e estreita, porém fiel aos ditames originais. De um lado temos algo mais interpretativo e de outro mais concentrado no que foi escrito. Visões distintas de mundo que são inconciliáveis já que ambos possuem argumentos plausíveis em relação a como enxergam o tema.

E é aí que chegamos no tema do debate. Para uma religião radicalmente iconoclasta, representar Maomé, ou fazer uma sátira do mesmo é um assunto delicado. Mesmo os sunitas manifestaram incômodo na época, apesar das críticas serem todas voltadas à sociedade iraniana. Enxergando a partir do ponto de vista deles, de fato, é um pecado mortal. Porém, é aqui que precisamos traçar uma linha do certo e errado. Nenhuma vida pode ser tomada dessa forma. Como se estivéssemos no Velho Oeste e o assassino ganhasse uma recompensa pelo ato. Nos dias de hoje, parece que se tornou comum condenarmos autores à morte. Quando as críticas deixam de ser opiniões e se transformam em ações. Salman Rushdie talvez seja o primeiro indivíduo a ser alvo de perseguições de seus detratores, algo que hoje se tornou comum. Autores e outras personalidades da cultura pop reclamam de perseguições. Quando suas vidas pessoais se tornam alvo favorito de perseguidores ou pessoas que lhes desejam mal.
Em seu livro Uma História da Leitura, Alberto Manguel classifica a visão negativa dos leitores em três tipos: os autoritários (que impedem outros de aprender a ler), os fanáticos (que decidem o que pode ou não ser lido) e os estoicos (que se recusam a ler por prazer e exigem somente que se recontem fatos que julgam ser verdadeiros). Hoje queria me concentrar nos fanáticos porque a literatura pode mudar o mundo. Já vimos isso acontecer em diversas oportunidades. Oras, a Bíblia mudou o mundo. Podemos argumentar em que nuances isso se deu, mas ela provocou uma mudança em como sociedades inteiras pensavam suas existências. Em diversos momentos da história, a literatura foi empregada como uma maneira de questionar a realidade em que vivemos. Grandes obras surgiram com esse objetivo como Dom Quixote, A Metamorfose, O Deserto dos Tártaros, Madame Bovary, Grandes Esperanças. A literatura nos faz pensar e tenho certeza que todas elas tiveram seu devido impacto no momento de suas publicações. Sou um dos fortes críticos de Neuromancer, mas é inegável que a obra nos ajudou a pensar na exploração das camadas mais baixas da população por grandes empresas. E em como o capitalismo avançava para uma visão de mundo que atravessava meras fronteias. Não chegamos a uma corporocracia porque houve um entendimento de que era precisa combater uma perspectiva monopolizadora das mesmas. É óbvio que nenhum empresário à época gostou disso; nem por isso William Gibson sofreu uma tentativa de assassinato.
Assim como Rushdie, Jose Saramago usa o realismo mágico para criticar o que conhecemos como civilização. Aliás, Rushdie é um mestre na compreensão do ato de contar histórias e de como usar a fantasia para falar de problemas reais. Ele usa o mesmo expediente em A Feiticeira de Florença onde ele usa uma fábula digna das Mil e Uma Noites para questionar a visão preconceituosa que temos sobre o Oriente. De entender a história da humanidade a partir de uma perspectiva eurocêntrica e ele oferece inúmeras sementes para repensarmos nossas certezas. Em Ensaio sobre a Cegueira, Saramago deixa toda a humanidade cega (com exceção da protagonista) para nos mostrar que somos verdadeiramente cegos quanto à condição humana. Ou, se é para falarmos de religião, que tal O Evangelho segundo Jesus Cristo, um livro polêmico e poderoso questionando como o homem Jesus Cristo teria percebido o mundo na época de sua pregação. Não o messias, mas o homem. Ou quem sabe Caim, do mesmo grande Saramago, que tem uma verve irônica ao estilo de Os Versos Satânicos.
Não podemos ser fiadores de quem deve ler o que, nem como ou quando. Proibir é censurar e todo o ato de censura deve ser castigado. Somos seres racionais, capazes de pensarmos por nós mesmos. Chegarmos às nossas próprias reflexões; sermos responsáveis por nossas próprias ações. Se leio o Mein Kampf e desejo maltratar as pessoas, não é o livro (mesmo que tenha uma temática deplorável) que vai me fazer causar o mal, mas o que eu apreendi ou interpretei dele. Se o autor fez uma piada cruel, ele deve ser criticado, não condenado à morte. Se uma temática me agrediu de alguma forma, tenho todo o direito do mundo de pôr o livro de lado e nunca mais voltar a ele. Assim como diz a banda Natiruts, é preciso ter "liberdade para dentro da cabeça". Devemos ser capazes de nos apropriar do conhecimento que nos é passado e utilizá-lo a nosso bel prazer. Críticas, condenações, má versações, exageros... são contas de uma equação que vem com a responsabilidade de nossas ações. Para todo bem, existe o mal. O mundo não é preto e branco. E é isso o que o torna mais rico do que uma visão dicotômica e maniqueísta. Acredito na condição humana e sei que somos melhores do que isso. Melhores do que meros caçadores de recompensas aguardando um pobre homem deixar sua casa para pôr uma bala na cabeça a mando de uma autoridade religiosa. Não creio que divindade alguma desejaria a morte para um de seus filhos. Pelo contrário, ela desejaria a felicidade, a luz, a sabedoria... sejam seus filhos bons ou maus.

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