Suzu é uma menina retraída que passa seus dias na escola tentando viver uma vida normal depois da tragédia que se abateu sobre sua família. Sua mãe faleceu ao tentar salvar uma criança e ela ficou traumatizada por ter sido deixada para trás. Sua relação com o seu pai é indiferente e ela não consegue formar amizades na escola. É aí que sua única amiga lhe apresenta o U, um mundo virtual onde ela pode ter uma segunda vida.

Lidar com situações de perda é uma tarefa bem complicada. Principalmente quando você se sente ter sido deixado para trás por quem foi perdido. Em uma montanha-russa de emoções desejamos saber porque permanecemos. Ou o que fizemos de errado para termos sido abandonados? Nessa releitura de A Bela e Fera, Mamoru Hosoda mescla conto de fadas e uma narrativa com claras inspirações cyberpunk para nos falar sobre aqueles que ficaram para trás, o poder da música sobre nossos corações e o quanto as mídias sociais podem esconder violências tão reais que acontecem diariamente. O resultado é um longa-metragem interessante, com uma belíssima animação que emprega o que há de melhor na computação gráfica, mas que equilibra muitas bolas ao mesmo tempo.
Tendo sido apresentado pela primeira vez em 2021 no Festival de Cannes, Belle é uma animação dirigida por Mamoru Hosoda e produzida pelo Studio Chizu. Estreou em outros países alguns meses depois de sua apresentação inicial e hoje pode ser encontrado no catálogo da Netflix. Vale gastar um parágrafo para falarmos um pouco sobre quem é Mamoru Hosoda já que seu sucesso atual vai colocá-lo na mira nos próximos anos. Talvez os fãs brasileiros o conheçam mais pelo longo tempo em que passou dirigindo as várias séries de Digimon e a série de Gegege no Kitaro quando trabalhava na Toei. Ou seja, ele já começou sua carreira com grande destaque em um estúdio gigante como a Toei. Mas, ele quase esteve à frente de O Castelo Flutuante de Howl, em uma época em que o studio Ghibli buscava novos talentos. Infelizmente, ele acabou saindo do projeto em 2002 quando Hayao Miyazaki assumiu-o. O que era para ser uma co-produção entre Toei e Ghibli acabou sendo apenas uma ilusão. A partir de então, Hosoda não conseguiu emplacar nenhum de seus projetos, participando apenas de animações de pequeno porte. Isso até ele ser convidado por Masao Maruyama, presidente do studio Madhouse, que o convidou para dirigir A Garota que Pulou Através do Tempo, um grande sucesso de longa-metragem do estúdio. Com o sucesso do filme, Hosoda ganhou projeção até que em 2011 fundou o seu próprio estúdio, o Chizu, que se tornou famoso pela produção de longa-metragens como Os Meninos-Lobos e Mirai. Detalhe: a proposta do Chizu é parecida com a do Ghibli, que é a de se concentrar em longa-metragens.
A animação de Belle é sensacional. Desde o minuto inicial que conta com os letreiros de apresentação em uma bela canção da protagonista que já percebemos o mix de computação gráfica com animação tradicional. O filme é dividido em trechos que se passam no mundo real, em uma pequena cidade do interior, e toda a interação na plataforma U com suas paisagens geométricas assimétricas. Tudo acontece de maneira bastante fluida e o espectador não vai se decepcionar com o que passa em tela. Alguns momentos são verdadeiras explosões de cores por toda a parte com várias situações ocorrendo simultaneamente em tela. Por se tratar de uma história que vai se basear muito no poder da música, esta compõe um papel essencial para tudo. E ela não decepciona. A dubladora japonesa arrasa nos vocais. Não curti muito a dublagem americana, então caiam fora disso. E aí vale mencionar que Hosoda inicialmente pensava em Belle como um musical, semelhante ao que foi A Bela e a Fera da Disney (não à toa ele contou com a ajuda de alguém da Disney durante a produção). Mas, ele foi dissuadido da ideia porque o Japão não tem uma cultura de produzir musicais.

Falando sobre o enredo em si, a gente pode dividí-lo em três fragmentos principais: a perda vivida por Suzu, o estranho mundo de U e o aparecimento da Fera. A história de Suzu é maravilhosa e espelha bastante uma questão fundamental na relação de filhos e pais que perderam suas mães. A sensação de ter sido deixado para trás, que acaba por causar uma série de traumas na criança. Principalmente quando a mãe representava um núcleo importante para a relação entre todos. Suzu batalha para tentar viver uma vida normal, mas a perda da mãe da forma como se deu se abate sobre ela diariamente. Sua mãe mergulhou em um rio revolto para salvar uma criança que estava para ser levada pela correnteza. Infelizmente a criança se salvou enquanto ela não. Suzu se questiona por que sua mãe salvou uma completa estranha enquanto ela permanecia na margem observando tudo transcorrer. Ela não se conforma com isso. Isso rende uma cena linda perto do final quando Suzu tem um insight da motivação por trás da ação de sua mãe. Na hora ela entende e se vê colocada em uma situação semelhante. Essa perda fez com que Suzu se retraísse e se afastasse das pessoas. Sua única amiga é Hiroka, que funciona quase como uma pessoa com quem Suzu pode conversar. Até porque a relação que ela tinha com o pai nunca mais voltou a ser a mesma. O sentimento de Suzu é de inconformismo e tudo o que ela deseja é gritar para o mundo aquilo que está sentindo. Só que nem isso é permitido a ela. Uma das coisas que ela mais gostava de fazer era cantar junto de sua mãe. Desde que ela faleceu, Suzu não é mais capaz de dizer uma nota musical mais. Na vez em que ela tenta, ela passa muito mal. E é nesse sentido que entra o U.
A ideia por trás do U é ser uma realidade virtual onde a pessoa tem o direito de viver uma segunda vida. O aplicativo do U detecta seus sinais vitais e constrói um avatar do usuário com base em seus dados biológicos. É praticamente a mesma pessoa só que com outra aparência. As pessoas adotam outros nomes e podem fazer o que quiser por lá. Não à toa uma das punições mais severas que tem por lá é um raio de energia que volta o corpo do usuário ao seu corpo de origem, revelando quem ele é para todos no U. Suzu se torna Belle, um avatar que teve como base Ruka, a garota popular da escola, com alguns traços da Suzu. Assim que entra no U, a primeira coisa que Suzu/Belle faz é cantar a música que ela tinha guardado no coração. Toda a angústia, a tristeza e o inconformismo foram vomitados para fora dela em uma melancólica canção. Rapidamente depois que ela cantou sua música, Suzu/Belle deixa o app sem imaginar o impacto que teve. Quando ela volta a logar no U, ela já tinha milhões de seguidores e ela não tinha entendido o motivo. É então que Hiroka ajuda Suzu a capitalizar em sua nova carreira como cantora ajudando na produção de suas faixas, marcando shows.
É em sua apresentação principal que surge a Fera, um ser monstruoso que está fugindo dos Justices, uma espécie de polícia local que combate os transgressores. Aparentemente a Fera estaria perturbando a paz do U. Suzu estabelece uma estranha conexão com a Fera que parece estar sofrendo dores intensas. Buscando saber quem é a Fera, Suzu começa uma busca desenfreada por ele em todas as partes do U. É aí que ficamos conhecendo mais sobre o funcionamento da justiça neste novo mundo e das conexões entre os usuários e o mundo real. A obsessão de Suzu em encontrar a Fera acaba por preocupar as pessoas ao seu redor, principalmente o seu amigo de infância Shinobu. Quando Suzu finalmente consegue uma pista de quem é a Fera, ela precisa colocar essa sua nova existência em risco caso queira realmente ajudar um estranho.

Belle tem um bom roteiro e todo o problema pessoal da Suzu e a maneira como isso é amarrado na história da Fera é bastante interessante. Contudo, o roteiro se espalha demais por toda a parte. Se a ideia é fazer uma releitura cyberpunk de A Bela e a Fera, isso significa que é uma história romântica dos dois com algumas coisas sendo acrescentadas para diferenciar, certo? Não. Tem toda a questão do mundo virtual do U e a exploração nas mídias sociais. Só que o filme deixa o tema completamente para trás e mais para a frente o cenário psicodélico serve apenas para construir um modelo futurista do castelo da Fera. Algumas questões como o que as pessoas fazem no U, a ideia de uma arena de lutas e até mesmo todo o envolvimento com os Justices não tem lá muito sentido. A história é bonita, a música é sensacional e a animação extremamente competente. Mas, a gente fica com uma sensação de incompletude no final que incomoda. Não queria que o roteiro explicasse tudo 100%, mas há muitos furos e inconsistências. Mesmo assim, deixo aqui a minha recomendação para mais uma boa animação.

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