Fala-se muito dos autores privilegiados por “viver entre nós” através de seus livros publicados mesmo após a morte a ponto de outros muitos autores aspirantes desejam o mesmo, mas sem pensar nas prováveis consequências desagradáveis.
É comum encontrar autores aspirantes com o sonho de publicar a história a ser lembrada mesmo após sua morte. Esta repercutida em novas edições pela posteridade igual o próprio aspirante a autor pôde conferir nos textos de Tolkien, Edgar Allan Poe, Isaac Asimov, Júlio Verne, Machado de Assis e outros tantos jazidos na eternidade dos livros. Já eu considero este sonho ingênuo, por mais belo que seja ― e de fato é ―, tornar-se consagrado na literatura pode trazer problemas ao autor relembrado dos quais ele jaz indisponível a responder. Este pode vir a ser contestado ou defendido pelas gerações posteriores, essas de valores distintos.
Impossível negar a boa repercussão das obras clássicas desses autores defuntos. A editora Antofágica tem a proposta de relançar clássicos da literatura com edições ímpares e ilustradas, entre eles o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. A DarkSide Books também tem o selo Medo Clássico, com trabalhos gráficos inusitados para seduzir novos leitores a conferir textos macabros dos antepassados. Os clássicos de luxo da editora Zahar, as edições de colecionador das obras sci-fi da Aleph, o olho do Grande Irmão disposto no corte do miolo da nova edição de 1984 pela Companhia das Letras... Muitos desses trabalhos garantem retorno às editoras pela aposta certa na venda de livros dos autores mortos.
E com tantas edições de obras antigas sendo lançadas, tem também outros tantos leitores que as aproveitam. O mapa abaixo foi elaborado a partir de uma discussão do fórum Reddit sobre qual livro poderia representar cada país. Os livros foram escolhidos sem muito critério, poucos requisitos para seleção, resumidos a sugestões de usuários interessados em colaborar na elaboração deste mapa. Ao observar esta seleção espontânea, é possível encontrar muitos livros de autores já falecidos; pegando todo o continente americano de amostra, quinze dos trinta e um países dispostos neste mapa foram representados por livros de escritores mortos, contra dezesseis de pessoas vivas.
A dificuldade de ser eternizado
O mapa teve várias críticas depois de ter sido feito. Muitos usuários contestaram de determinado livro não representar seu respectivo país, alguns alegaram do autor nem ser do local, outros acusaram determinada escolha como enviesada. Só que a questão é que a quantidade de autores dignos de representar cada país é muito superior a apenas um, ainda mais pelos usuários considerarem livros de qualquer período histórico.
Tal situação pode induzir que há muitos escritores rememorados após a morte, porém é o contrário. Considere todos os demais escritores existentes no mesmo período ao do “eternizado”, e verá ser apenas a minoria da minoria selecionada a ter novas edições posteriores à morte, e só quando houver tal minoria. Basta olhar as revistas Pulp estadunidenses. Tantos autores tiveram histórias publicadas por lá, e mesmo assim poucos repercutem até hoje, como H.P. Lovecraft, Robert E. Howard e Edgar Rice Burroughs.
Só os autores bem capacitados conseguiram transcender nas próximas gerações ― apesar de ir além da meritocracia (discuto este tema a seguir). O eternizado Arthur Schopenhauer constatou sobre obras eternizadas irem muito além de ter uma qualidade, e sim várias, tantas a ponto de ser improvável apenas uma pessoa assimilá-las. Alguém destacará certa obra por uma qualidade, então o leitor de outro tempo irá idolatrar o mesmo livro por outra qualidade, e assim sucederá, sendo apreciado “ora num sentido, ora em outro, sem nunca se esgotar por completo.”
Eternidade relativa
Aqui contesto sobre a meritocracia, pois a obra selecionada a ser rememorada em nova edição tem motivos além de preto no branco. A colega Amanda já abordou esta discussão no artigo dela, sobre os clássicos da literatura falharem em corresponder as exigências do público leitor mais jovem, exigente com a representatividade das histórias cuja demanda sequer existia no tempo do autor consagrado. Acho difícil esta perspectiva ser capaz de “assassinar” os autores mortos, ela apenas amplia a oportunidade de conceder o espaço a outros escritores antes marginalizados pelas questões da época. É muito difícil tirar o consagrado de sua posição, este apenas dividirá o espaço com outros resgatados.
É o caso da Emilia Freitas, autora cearense de A Rainha do Ignoto ― publicado no fim do século XIX. Ela foi homenageada com uma nova edição pela editora Wish em processo de produção e também já lançado pela Editora 106 neste mesmo ano. Com personagens mulheres desempenhando funções importantes na trama, o romance distópico teve apenas três edições desde a primeira publicação, a anterior sendo há mais de quinze anos e portanto difícil de encontrar pelas livrarias e lojas virtuais até o lançamento por essas duas editoras. Por abordar o feminismo numa obra fantástica escrita em tempo tão remoto, a escolha foi bem sucedida, considerando que a publicação foi garantida ao bater a meta no financiamento coletivo.
Tem também o livro Maurice, escrito por E. M. Forster durante a Primeira Guerra Mundial, mas jamais publicado na época. Tratando da homossexualidade do protagonista, o livro só foi lançado em 1971, um ano após a morte do autor. Critérios editoriais passados impediam a publicação de determinados tipos de livros, além de restringir quais perfis de autores seriam eternizados.
Legado vs Polêmicas
Outro problema do autor lido pelas gerações posteriores é ele estar sujeito a julgamentos morais distintos da sociedade vigente. Esta discussão acalorada tem pensamentos contrários bem delineados, portanto é inegável haver muitos leitores dispostos a abandonar obras de autores racistas, pedófilos ou de outro comportamento condenável. Teve a polêmica trazida pelo Paulo Vinicius neste blog quanto a mudança do nome de prêmios literários pelos organizadores desejando distanciar a imagem da organização com a do autor homônimo ao prêmio pelo comportamento excêntrico.
Apesar da discussão calorosa, esta ainda pode culminar em novas ideias aproveitadas em trabalhos literários. Victor LaValle fez uma adaptação excelente do conto de Lovecraft em A Balada do Black Tom por criticar a visão racista do autor original. O criador do universo de Cthulhu não está mais entre nós, portanto é incapaz de responder às críticas sobre seu racismo nem reagir à criação de LaValle, e mesmo assim o legado dele vive ao inspirar nova obras, seja enaltecido ou criticado pelo novo artista.
Os mortos não possuem privacidade
Quando conhecemos e admiramos muito determinado autor, queremos consumir tudo escrito por ele. Juan Rulfo fez história na literatura mexicana com o livro Pedro Páramo, e ainda assim leitores ousaram aproveitar mais obras dele a ponto de terem publicações póstumas apenas com coleções de textos dele, mesmo sendo cartas ou anotações avulsas, apenas por ser conteúdo deste autor. Ainda na América Latina, o Roberto Bolaño falhou em concluir o romance 2666, pois foi vencido pela morte. O calhamaço com cerca de mil páginas foi publicado após a morte, livre à apreciação do público leitor sem o devido consentimento do autor.
Os dois próximos exemplos foram lançados sem o consentimento e ainda sob a proibição dos respectivos autores antes de eles falecerem. Falo primeiro de Franz Kafka: incapaz de concluir O Processo, pediu ao amigo Max Brod para queimar este e qualquer outro manuscrito inacabado. Max conferiu o trabalho do amigo morto, achou o texto coerente a ponto de publicá-lo, e assim editou e garantiu à humanidade outra oportunidade de conferir o trabalho de Kafka. O segundo é Vladimir Nabokov, o polêmico autor de Lolita. Fez o mesmo pedido de Kafka à família, queimar os trabalhos inacabados. Demorou, mesmo assim O Original de Laura foi publicado mais de trinta anos depois de morto.
Volta e meia há notícias de outros manuscritos achados após a morte do autor sujeitos a mesma situação, desconsiderando qualquer permissão do sujeito, mesmo quando ele enfatizou a proibição da publicação. Seria desnecessário problematizar esta questão? Afinal os leitores no geral receberam essas publicações de bom grado, pelo menos 2666 e O Processo foram. O problema está na falta de liberdade do autor quanto ao próprio trabalho, incapaz de determinar quando o trabalho estaria pronto. Também há a invasão de privacidade do sujeito, assunto delicado debatido com o avanço da interação digital, e os autores já sofriam disso nos tempos analógicos.
A repercussão póstuma de autores constata a competência dos mesmos em levar valores de qualidade mesmo a leitores impossíveis de conhecer por estarem no futuro. Eles conseguiram garantir o nosso aprendizado sobre o tempo deles a partir de suas histórias ― mesmo as ficções científicas futurísticas têm muito a dizer sobre a época em que foram escritas ―, ainda inspiram novos autores a evoluir as qualidades literárias a partir dos seus trabalhos. E embora acrescente inúmeras exaltações ao curriculum aeternum de um escritor, há também desafios e situações negativas que, igual acontece no funeral, nem tudo se resume a flores.
Referências:
10 Authors Whose Best Work Was Published Posthumously
Literary life after death
Publishers find deceased authors draw many readers
“Need help improving my Literature Map of the World”
A Problematização dos Clássicos
Box Literatura Fantástica Rara
O Legado de um Autor: Premiações deveriam ter seus nomes modificados?
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