Manter o corpo saudável é um dos pontos essenciais na vida de todos, embora negligenciado para alguns, parte deles compostas de escritores que passam horas sentados durante a elaboração de suas histórias. Haruki Murakami teve o cuidado de alertar esse problema em seu livro Romancista Como Vocação, e este artigo verificou a importância de cuidar da saúde para trabalhar na escrita.
O ato de escrever é uma atividade sedentária, e com ela não há nenhum tipo de licença que exima a responsabilidade do autor de manter a rotina saudável e fazer exercícios regulares em prol da saúde. Dessa forma, tornando-se menos suscetível a males tão recorrentes na sociedade vigente ― obesidade, pressão alta, tendinite. Com grande variedade de livros sobre a escrita ― maior ainda em inglês ―, boa parte deles negligencia este assunto ao compartilhar dicas a aspirantes a escritor. Apesar de ser algo óbvio e necessário a qualquer estilo de vida, esta falta de aviso acaba falhando com pessoas obsessivas em virar páginas e digitar nelas. Por sorte nem todos negligenciam este cuidado, entre esses o Romancista Como Vocação, de Haruki Murakami.
Cheio de dicas pessoais, Murakami avisa aos leitores o quanto um bom condicionamento físico também faz parte da vida de um escritor. De abordagem autobiográfica, os argumentos do livro deixam a desejar, limitados à experiência dele. Eu coloquei as dicas de Murakami em teste, pesquisei se existem estudos que podem favorecer as dicas dadas por ele e recolhi exemplos de autores com a qualidade da escrita comprometida pela condição de saúde prejudicada.
BNDF: o segredo do bom desenvolvimento neural
A comprovação de os exercícios físicos serem benéficos para a saúde física do indivíduo está mais do que esclarecida, sendo quase improvável encontrar estudos capazes de dizer o contrário salvo em casos específicos. Na verdade só se realizam novas descobertas acerca dos benefícios decorrentes de atividades físicas. Entre essas novas descobertas há análises sobre melhorar e prevenir males da saúde mental, como o estudo feito na Universidade da Califórnia publicado já em 2002.
Este estudo avalia a influência sofrida pela BNDF ao praticar exercícios. BNDF é uma proteína responsável por manter e desenvolver os neurônios que realizam conexões cognitivas, sensoriais e motoras. O estudo consiste em um teste feito com ratos ao impor atividades físicas voluntárias e certas circunstâncias forçadas, e realiza a revisão bibliográfica quanto aos efeitos do BNDF no sistema neural. Ao estimular esta proteína por meio da atividade física, foi constatado melhora nas funções cognitivas e aperfeiçoamento do aprendizado, além de prevenir outros males: aumenta a resistência contra acidente vascular encefálico ― AVE ―, ajuda no combate da depressão em conjunto com os antidepressivos, e pode reduzir a potência do estresse. De certo modo, previne tudo capaz de atrapalhar a rotina de qualquer pessoa, inclusive a de autores, incapazes de produzir algo sob estresse ou depressão. Lembrando: depressão difere de tristeza. Alguém triste ainda seria capaz de escrever e inclusive usaria o sentimento a favor de sua escrita. Desde que não seja recorrente, a tristeza é uma situação natural, faz parte da vida de todos nós, enquanto a depressão atinge determinados indivíduos de forma patológica.
A atividade favorita de Murakami é a corrida, como ele comenta no livro Do que eu Falo quando Falo de Corrida. Afirma correr todo dia no período da tarde e até chegou a disputar triatlo. O motivo de ele escolher esta atividade é por apenas gostar de praticar, mas este estudo reforça a eficiência em estimular o BNDF por meio de atividades aeróbicas ― caminhadas e corridas ―, inclusive atesta a falta do efeito em exercícios anaeróbicos. Ao analisar os efeitos em ratos, apenas a atividade de corrida já foi o suficiente ao aprimorar suas conexões neurais. Murakami acertou em manter a rotina saudável de correr, apesar de desconhecer os detalhes do benefício, e foi excelente em oferecer esta dica no livro sobre escrita, algo incomum de ver nos livros do gênero.
Saúde comprometida = escrita comprometida
Até agora foi dito sobre a disposição de Murakami quanto ao condicionamento físico e à correspondente eficiência em poder trabalhar na escrita quanto a isso, bem como foi levantado o estudo comprovando a relação entre atividade física e melhoria da saúde mental. Por outro lado todos devem conhecer pelo menos algum escritor sem condições plenas de saúde e mesmo assim produziu obras memoráveis. Existem exceções em tudo, inclusive com relação à saúde de autores, no entanto ainda há situações as quais a saúde interferiu na eficiência das escritas, mesmo entre autores consagrados.
H. P. Lovecraft é um ótimo exemplo. Reconhecido pela criação de monstros abomináveis e por fomentar o gênero do horror cósmico, inspirou novos autores e teve adaptações em filmes, músicas e games! Um dos defeitos inegáveis do autor é sua abordagem racista, sempre referenciando negros com adjetivos ruins, apontando-os como sinal de decadência. Faz o mesmo com imigrantes por também ser xenofóbico. Entretanto o defeito a destacar é outro. Com problemas de saúde desde a infância, Lovecraft estudou em casa, sofreu colapso nervoso na adolescência e foi incapaz de concluir o colegial. Em suma, o autor vivia recluso desde criança por condições de saúde, e a falta de interação com outras pessoas refletiu na escrita, de diálogos raros e, quando existem, deixam a desejar, segundo o próprio Stephen King afirma em seu livro Sobre a Escrita:
“É difícil dizer exatamente o que há de errado com o diálogo de Lovecraft, além do óbvio: é artificial e sem vida, afundado em linguajar caipira.”
Falando em Stephen King, é a vez dele. Tal qual Murakami, Stephen escreveu seu livro de escrita com partes autobiográficas, uma delas trata por volta da criação do romance O Iluminado, cujo protagonista era um escritor com problemas na família, que estava alucinado e abusava de bebida alcoólica. Embora tenha demorado a compreender, Stephen assumiu ele mesmo ser viciado. Além de bebida, abusava do cigarro e cocaína também.
Segundo o próprio, a situação serviu de inspiração no romance Misery, sobre uma enfermeira fanática ― a metáfora do vício ― a sequestrar seu autor favorito, e Os Estranhos, ficção científica de dominação alienígena onde a relação com os humanos foi tão limitada quanto a capacidade de desenvolvê-la com a mente sobrecarregada de vícios. Mesmo que justifiquemos que a situação vivida por King possa tê-lo ajudado a escrever novas histórias, melhor atentar na parte da autobiografia quanto a ele ser pressionado pela família por medo de perdê-lo caso continuasse com o vício. Após décadas e publicações posteriores, entre elas o desfecho de A Torre Negra e Outsider, parece valer a pena optar por atitudes mais saudáveis.
King ainda lembra de Ernest Hemingway e Fitzgerald, escritores consagrados e viciados em álcool, exemplos ― dos maus ― sobre conseguir escrever bem sob o efeito da bebida. Sem romantizar, ele foi realista ao falar deles em Sobre a Escrita: podem ser grandes escritores, e ainda assim ficavam bêbados do mesmo jeito, e no fim vomitavam como qualquer pessoa. Sem as crises na saúde, Stephen mantém uma rotina de produzir dez páginas todos os dias, mesmo nos feriados. E quando recebe a pergunta de como garante essa produção, ele diz existir duas razões: manter o casamento sustentável e cuidar da saúde física. Só não dedicou boa parte do livro igual Murakami, apesar de certa forma concordar com ele.
Além deste livro abordado, Murakami escreveu outro na íntegra ao falar dos benefícios da corrida durante a vida e do quanto influenciou na escrita, mesmo assim o pouco retratado do assunto em Romancista Como Vocação foi o bastante para instigar a produção desta matéria com estudo aplicado em vez de apenas a declaração pessoal do autor, além de trazer dois exemplos de autores comprometidos quando as condições de saúde estavam péssimas. A atividade física falha em agradar todas as pessoas ― por exemplo, a mim ― e ainda deve ser encarado com seriedade, mesmo o considerando “mal necessário”, pois é essencial ter vida saudável, e assim manter escrevendo sem prejuízo na qualidade de vida e profissional.
“Se você quer escrever, deve entender que é necessário um condicionamento físico extraordinário para ficar sentado à mesa.”
Referências:
Ficha Técnica:
Nome: Romancista como Vocação
Autor: Haruki Murakami
Editora: Alfaguara
Gênero: Não-Ficção
Tradutora: Eunice Suenaga
Número de Páginas: 168
Ano de Publicação: 2017
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Ficha Técnica:
Nome: Sobre a Escrita
Autor: Stephen King
Editora: Suma
Gênero: Não-Ficção
Tradutor: Michel Teixeira
Número de Páginas: 256
Ano de Publicação: 2015
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Artigos:
Exercise Enhances and Protects Brain Function
H. P. Lovecraft Biography (http://www.hplovecraft.com/life/biograph.aspx)
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