O quanto é importante o trabalho de um tradutor? Há quem despreze tal serviço e incentive ler a obra apenas no idioma original, como o filósofo Arthur Schopenhauer. Este artigo discute as abordagens de Arthur no livro A Arte de Escrever com a nova edição de O Corvo pela Companhia das Letras, com duas traduções e a análise destas.
A Companhia das Letras publicou a nova edição de O Corvo, de Edgar Allan Poe. Nele temos o poema original em inglês e as traduções feitas por Machado de Assis e Fernando Pessoa. Três grandes nomes da literatura no mesmo livro, três versões do mesmo trabalho. A original concebida pelo conhecimento poético e linguístico do autor, e as duas traduções planejadas conforme a interpretação e escolhas dos escritores lusófonos em como poderiam aproveitar do poema original e adequar à linguagem portuguesa.
Pessoas incapazes de ler a obra no idioma original terão a oportunidade de conhecê-la pelos tradutores, porém ficam limitadas a seguir a interpretação do profissional responsável por converter o texto ao idioma em questão, além de perder significados e contextos proporcionados somente pela linguagem original. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer elaborou críticas ácidas quanto à tradução em seus ensaios reunidos no livro A Arte de Escrever. Este artigo levanta os argumentos tirados da minha leitura deste livro e depois discute a validade de traduzir os textos em prol de torná-lo mais acessível, bem como o quanto a crítica de Schopenhauer é pertinente.
Elencando argumentos
Schopenhauer é claro ao ser defensor dos trabalhos e linguagens antepassados, fator visível nas críticas à tradução e em qualquer outra situação exposta n’A Arte de Escrever. Preservar a linguagem original da obra é preservar o conhecimento disponível de determinada civilização, seja em contexto local ou da época. Qualquer adequação desses trabalhos ancestrais podem corromper o conteúdo original quanto ao significado, apesar do filósofo ir além nos argumentos e até menosprezar a tradução:
“Já na década de 1830 a 1840, o Corpus juris foi traduzido para o alemão, o que constitui um símbolo inegável da penetração da ignorância na base de toda a erudição, isto é, na língua latina, portanto um símbolo da barbárie."
Toda tradução é imperfeita pela impossibilidade de reescrever a frase ou expressão com o mesmo efeito e significado. Tem toda a questão etimológica fazendo de cada palavra em determinada idioma possuir uma história própria, esta distinta a do correspondente em outro idioma — quando há correspondente. Como a tradução do poema precisa ser fiel ao ritmo, e por isso abrir mão de certos significados do original — o que já prova o ponto do filósofo —, irei exemplificar o argumento de Schopenhauer com uma obra mais adequada a mostrar os sentidos das palavras. Peguei duas frases memoráveis do filme Pulp Fiction: Tempos de Violência:
— A primeira é dita pelo Mr. Wolf: Just because you are acharacter doesn't mean that you have character (Só porque você é um personagem não significa que você tem caráter). A frase brinca com a palavra character e usa dois significados dela na mesma fala. A tradução perde neste jogo, onde a primeira incidência é traduzida como personagem, e a segunda como caráter;
— A segunda reforça o argumento da primeira, dita por Marsellus Wallace: And when you're gone, you stay gone, or you be gone (Saia da cidade esta noite... agora. E quando se for, não volte, ou você morre). Desta vez a palavra foi aproveitada três vezes, todas com significados diferentes, e de novo a tradução teve de adequar com outras palavras para passar a ideia da frase e abrir mão de toda a expressão da fala original.
“É por isso que todas as traduções são necessariamente imperfeitas. Quase nunca é possível traduzir de uma língua para outra qualquer frase ou expressão característica, marcante, significativa de tal maneira que ela produza exata e perfeitamente o mesmo efeito.
Além do significado, a tradução perde na lógica fonética, fator ainda mais prejudicial ao tratar de poemas, como no próprio The Raven. A escolha do pássaro ser capaz de pronunciar apenas a palavranevermore tem motivo, pois faz sentido especular o corvo grasnar tal palavra. Quero dizer, é mais fácil do que imaginar o mesmo animal grasnando nunca mais, pois a pronuncia de duas palavras não se dará num mesmo grasnido. Além de ser necessário forçar mais a imaginação para o corvo alternar a pronúncia de três vogais quando tem apenas duas no inglês, sem falar na predominância da letra r, variando a pronúncia ainda menos. É mais verossímil no inglês — salvo as devidas proporções —, imaginar o corvo falar nevermore por passar a sensação tenebrosa ao poema, impossível passar a mesma na tradução.
“Poemas não podem ser traduzidos, mas apenas recriados poeticamente; e o resultado é sempre duvidoso. Mesmo na prosa as melhores traduções chegam, no máximo, a ter com o original uma relação semelhante à que se estabelece entre uma certa peça musical e sua transposição para outro tom. Aqueles que entendem de música sabem do que se trata.”
Quando fez a tradução, Fernando Pessoa tomou a liberdade de corrigir uma contradição no poema original. O eu lírico afirma de a amada Lenore deixar de ter o nome conhecido entre os vivos, porém o eu lírico está vivo e a chama de Lenore. Já Pessoa opta por retirar o nome na tradução. O que Schopenhauer tem a dizer sobre isso?
“O mesmo vale para os tradutores que pretendem, ao mesmo tempo, corrigir e reelaborar seus autores, o que sempre me parece uma impertinência. Escreva seus próprios livros dignos de serem traduzidos e deixe outras obras como elas são.”
Devido a esses argumentos do filósofo alemão e de muitos outros em A Arte de Escrever, ele a toma toda obra traduzida como morta desde o começo. A tentativa de adequar o significado força o estilo impróprio ao idioma, ou quando o faz sem pensar no estilo, já nasce como falsa.
“Por isso, toda tradução é uma obra morta, e seu estilo é forçado, rígido, sem naturalidade; ou então se trata de uma tradução livre, isto é, que se contenta com um à peu près, sendo portanto falsa. Uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte que só expõe cópias. E, quanto às traduções dos escritores da Antigüidade, elas são um sucedâneo de suas obras assim como o café de chicória é um sucedâneo do verdadeiro café.”
Discussão
É preciso concordar com os primeiros pontos do filósofo, pois é importante proteger o legado da obra ou a própria linguagem e mantê-la o mais fiel possível; mesmo a tornando menos acessível à maioria da população. Uma vez perdidas tais fontes, jamais serão recuperadas, como a queima de um museu com peças originais — exemplo metafórico bastante aleatório, certo? — Por outro lado, feita a devida manutenção do original, qual o problema de criar outra versão, mais compreensível a todos? Assim poderá atrair o interesse de mais pessoas, e algumas dessas conhecerão o original graças ao incentivo da tradução. Há o perigo de simplificar tanto a ponto de perder o significado ou mudá-lo. Nesses casos, os críticos devem diminuir a relevância daquele trabalho e incentivar a escolha de adaptações melhores.
Não vejo o que discutir em relação à fidelidade no conceito e sonoridade na tradução. Dou total razão a Schopenhauer e os exemplos feitos há pouco demonstram isso. O poema de fato tem tradução inviável, tanto que os tradutores de O Corvo a fizeram a partir de escolhas, de como interpretar o poema na versão escrita por eles. Pessoa foi capaz de assimilar o estilo de Poe e trabalhar no ritmo com a língua portuguesa. Mesmo assim, nenhum dos dois conseguiu trazer o significado e o ritmo exatos do original. De fato é impossível, e eles o fizeram cientes disso. Quanto à sugestão do tradutor escrever as próprias obras dignas de tradução em vez de teimar em reelaborar a versão original, Pessoa com certeza foi lembrado pelos próprios escritos, e outros tradutores também escreveram ótimas obras originais. Aliás, o trabalho de tradução também é artístico e criativo, pois a apreciação do leitor daquele idioma depende de como foi feita a adequação. Reelaborar a obra e deixar o público estrangeiro conhecer e admirar a obra só fará aumentar o legado do autor original, e enquanto preservar a versão de onde surgiu, não vejo problema nenhum.
Devo discordar sobre a tradução já nascer morta depois de conhecer as feitas de The Raven, permanentes mesmo depois do óbito dos tradutores há quase um século. Schopenhauer tem razão de opinar da tradução como algo falso ao estilo e significado, e conseguir assimilar o original com certeza trará mais conhecimento da obra de quem é limitado à tradução, pois lê através da interpretação do tradutor. Melhor ainda se dominar ambos os idiomas, pois tem o privilégio da visão ampla com o original e as interpretações das traduções memoráveis, como é o caso de Paulo Henriques Britto na edição de O Corvo pela Cia das Letras.
Preservar a originalidade é importante, bem como democratizar o acesso a obras consagradas. Schopenhauer defende apenas o primeiro ponto, ignorante aos benefícios do segundo; mesmo assim não devemos menosprezá-lo por conta disso. É preciso levar em conta o contexto vivido pelo filósofo para compreender suas afirmações. Conhecer a obra original mais as traduções transcende a compreensão em ambas as linguagens, pois vê as possibilidades de interpretação num mesmo texto, sem o corromper, mas ampliando seu valor. Até quem desconhece o idioma da obra de origem é beneficiado pela tradução, como eu. Mesmo sem saber alemão, pude elaborar esta discussão com os argumentos de Schopenhauer graças à tradução feita por Pedro Süssekind. Se é tão importante contemplar o trabalho de alguém no texto original, sinto muito por conhecê-lo em português e contribuir com a difusão do seu trabalho neste artigo, outros ainda o lerão em alemão e serão beneficiados por interpretar na versão pura.
Livros usados:
Ficha Técnica:
Nome: O Corvo
Autor: Edgar Allan Poe
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Terror
Tradutores: Machado de Assis, Fernando Pessoa e Paulo Henriques Britto
Número de Páginas: 200
Ano de Publicação: 2019 (nova edição)
Link de compra:
https://amzn.to/2X5sQFO
*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
Ficha Técnica:
Nome: A Arte de Escrever
Autor: Arthur Schopenhauer
Editora: L&PM Editores
Gênero: Não Ficção
Tradutor: Pedro Sussekind
Número de Páginas: 176
Ano de Publicação: 2005
Link de compra: https://amzn.to/2NfSl2G
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