Maja Lunde nos apresenta uma incrível história sobre três personagens diferentes em épocas diferentes cujas histórias se cruzam através de um pequeno ser que faz parte de suas vidas: abelhas. No meio desta história, vemos também os sacrifícios que os pais são capazes de fazer por seus filhos!
Sinopse:
Em 1852, William é um deprimido biólogo inglês, que deseja criar um novo tipo de colmeia capaz de trazer reconhecimento para sua família. Em 2007, George é um apicultor americano que luta para manter o negócio produtivo e acredita que seu filho pode ser a salvação de sua fazenda. Em uma China futurista, quando todas as abelhas desapareceram, Tao trabalha com polinização manual. Enquanto passa seus dias pendurada em árvores, deseja para seu filho uma educação e vida melhores do que a sua. Mais do que uma distopia sobre o desaparecimento das abelhas, em que passado, presente e futuro se encontram, Tudo Que Deixamos Para Trás é uma poderosa história sobre o relacionamento entre pais e filhos e o sacrifício que fazemos por nossas famílias.
Muitas pessoas que acabam gostando do gênero fantástico o encaram como uma fuga do cotidiano. Magias, dragões e masmorras servem para nos divertir e nos levar a um outro lugar que não o nosso. Mas, algumas obras tem a capacidade de ecoar, de nos remeter a algum problema ou questão de nosso cotidiano. E é isso o que Maja Lunde faz em Tudo Que Deixamos Para Trás: usar o tema da distopia para tratar de assuntos bem reais.
A escrita da autora é bem dinâmica. Ela é feita em primeira pessoa a partir de diversos pontos de vista. Temos então três protagonistas, cada um representando uma temporalidade da história escrita por ela. William, um naturalista do século XIX tentando realizar um experimento com colmeias; George, um apicultor no ano de 2007 que precisa lidar com um filho que não deseja assumir o negócio; e Tao, uma mãe que vive em Sichuan, no interior da China, no ano de 2098 que possui um apego muito grande a seu filho. São histórias aparentemente distintas, mas que possuem as abelhas como o elemento de ligação entre elas. Damos o nome de escrita em mosaico, em que estas três histórias vão fornecendo elementos que completam cada uma delas. E, se podemos de fato dizer, elas se completam de forma muito orgânica. Não vou comentar muito a respeito, caso contrário daria spoilers, mas as três histórias não são distintas, compondo uma linha temporal única que liga tudo e todos em uma narrativa final. Esse padrão de escrita com várias histórias se cruzam e com uma que se passa no futuro também é empregada por um dos meus autores favoritos, David Mitchell. Em Atlas de Nuvens ele usa o mesmo artifício para compor sua história. Só que as histórias seguem de forma linear sem o emprego dos POVs. Acho que a autora poderia ter usado apenas o estilo em mosaico, mas escolhas são escolhas e esta pode ter sido a identidade dela na história.
A narrativa em primeira pessoa algumas vezes me incomoda, mas este não foi o caso aqui. Maja Lunde me apresenta narradores não confiáveis em seu sentido mais estrito. Alguns autores constroem os seus narradores não confiáveis de maneira caricata o que acaba prejudicando a visão do leitor sobre o personagem. Ou seja, ou o personagem é muito maligno, ou é muito bonzinho. Em Tudo Que Deixamos Para Trás, os personagens são apenas humanos. Tem qualidades e defeitos. Isso torna a narrativa verossímil, pois de um lado temos um homem buscando atenção a todo custo, um caipirão do interior com um jeito rude de ser e uma mãe muito protetora. Entretanto, se a narrativa em primeira pessoa não me incomodou, não posso dizer o mesmo sobre a distribuição dos capítulo. Os achei muito curtos e a autora acabava não conseguindo passar completamente aquilo que ela pretendia fazer naquele capítulo em específico. Alguns deles são até dispensáveis. Entendo que o estilo em POVs exige um certo dinamismo com capítulos curtos, mas alguns deles tinham 3 ou 4 páginas. O leitor mal conseguia entrar na cabeça do personagem naquele momento. Em alguns momentos, a alternância entre POVs me deixava confuso.
Temos dois temas concorrendo aqui: as abelhas e a relação entre pais e filhos. Claro que as abelhas se destacam muito na obra, mas queria antes dirigir minha atenção à relação entre pais e filhos. Adorei a maneira como a autora construiu e vendeu os seus personagens. Todos os três eram muito empáticos e o fato de serem pessoas comuns com suas falhas de caráter os tornou ainda mais carismáticos. Em alguns momentos eu queria dar um tapa no William por ele não enxergar o real caráter de seu filho, ou eu queria ter uma conversa muito séria com George para que ele permitisse o sonho de Tom ou eu apenas queria dar um abraço em Tao por todo o seu sofrimento. As três trajetórias são muito interessantes e Maja Lunde vai construindo o caminho com tanta calma e sutileza que quando eu me dei conta que as histórias realmente se complementavam eu tomei um choque. Garanto a vocês que vocês não saberão de onde virá a relação, mas ela existe e o choque será muito grande.
A relação entre pais e filhos é muito explorada pela autora. Vemos os sacrifícios que os personagens precisam fazer para poder cuidar deles. E nem sempre estes sacrifícios são recompensados na mesma moeda. Vemos o caso de William, por exemplo. Ele é um homem que acabou por abdicar de sua carreira em prol de sua família. Passou a se dedicar à sua esposa e à criação de seus filhos. Tudo o que ele queria era que seu primogênito lhe desse atenção e carinho. Em alguns trechos da história, essa necessidade incomoda e machuca o leitor. Porque percebemos o quanto o filho tem outros interesses que não a felicidade do pai. E isso é um tema constante para aqueles que são pais: nossos filhos irão nos valorizar quando crescermos? Ou o outro tema, desta vez da linha narrativa de George: nossos filhos seguirão nossos passos e assumirão algo em nosso lugar? Entendo o quanto para o leitor, o desejo de George é egoísta, mas, acreditem, isso é mais comum do que parece. Isso porque desejamos que nossos filhos sejam o nosso espelho, quando tal não é verdade. Nossos filhos e filhas são indivíduos com seus pensamentos e desejos próprios. É essa realização que George só conseguirá fazer no final da história e isso o levará a uma espiral terrível. Já a linha narrativa de Tao trata de uma mãe que deseja proteger seu filho de todos os males. E isso é impossível. Não podemos estar presentes em todos os momentos da vida de nossos filhos. Particularmente eu me apeguei muito à essa personagem. Dos três, ela é aquela que possui a trajetória mais difícil e sofrida de todos. Quando ela descobre o livro O Apicultor Cego, eu fiquei muito emocionado.
E aí eu ligo minha última parte da resenha a essa fala aqui:
"A fim de viver na natureza, com a natureza, precisamos nos distanciar de nossa própria natureza... Educar significa desafiar a nós mesmos, desafiar a natureza, os instintos..." (O Apicultor Cego)
Impossível não comentar sobre o tom de defesa da natureza presente no livro. A premissa de que animais polinizadores estão desaparecendo parece algo absurdo ou fictício, mas é bem real. As informações passadas por Maja Lunde no texto são bem verídicas. Claro que, para compor a linha temporal de Tao, ela precisou especular um pouco e criar algo catastrófico. Mas, o desequilíbrio ambiental está aí, está presente no nosso cotidiano. É difícil para nós realizarmos essa possibilidade porque não conseguimos pensar em escala, holisticamente. Para que algo como o que a autora propõe no texto aconteça, são necessários vários fatores que juntos provocariam algo naquele nível. O que ocorre é que estes fatores estão acontecendo neste momento em maior ou menor grau. A preocupação com o nosso futuro não pode ser deixada para amanhã. Porque o amanhã não perdoa o homem.
Tem uma fala excelente quando George tenta entender o motivo para sua perda e ele comenta sobre o fato de o homem querer dominar a natureza ao invés de tentar se harmonizar com ela. Estamos sendo predadores de nosso próprio planeta e as futuras gerações poderão pagar enormemente por nossos erros. Talvez vivamos para ver este momento, talvez não. Fato é que algo precisa ser feito. Eu achei que a história fosse terminar com um gosto azedo na boca, mas a autora dá uma boa mensagem de esperança. Gostei da maneira como ela conduziu a história e até como ela finalizou as três linhas temporais. Não estou dizendo que todos viveram felizes para sempre, até porque nenhum dos três terminou como gostaria. Mas, ela deixa boas mensagens a partir das três histórias.
Tudo Que Deixamos Para Trás não é uma história excepcional, mas, para mim, é um livro essencial para qualquer leitor. Não importa se estamos falando de um leitor que gosta de romance, de fantasia, de terror ou de ficção científica, mas de alguém que gosta de boas histórias. Para quem é pai ou mãe, certamente vai entender os dilemas vividos pelos personagens. E vai se emocionar com as histórias. Para o leitor em geral, vale a pena a belíssima mensagem de nos harmonizarmos com a natureza e entendermos suas necessidades. Maja Lunde é uma autora que me chamou a atenção e eu certamente lerei mais coisas dela.
Ficha Técnica:
Nome: Tudo que Deixamos para Trás
Autora: Maja Lunde
Editora: Morro Branco
Gênero: Ficção Científica
Tradutora: Kristin Lie Garrubo
Número de Páginas: 480
Ano de Publicação: 2018
Link de compra:
*Livro enviado em parceria com a editora Morro Branco
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