Uma série de histórias curtas cujo tema central é a separação. Sejam por sentimentos que divergem, interesses desencontrados e a quebra entre os casais. Tudo regado a uma arte maravilhosa de um dos maiores artistas espanhóis em atividade.
Sinopse:
Em Tangências, Miguelanxo Prado deixa seu lado sarcástico de lado por um momento para nos oferecer uma visão cúmplice, madura e profunda de relações sentimentais que, por algum motivo, só se concretizam de forma tangencial, imperfeita e limitada. O que faz com que duas vidas, que em um momento se juntaram com grande intensidade, voltem a separar seus caminhos? O resultado final, seja paradoxal, vingativo, dramático ou mesmo trágico, é carregado com um realismo e intensidade emocional que nos lembra a obra mais premiada do autor, Traço de Giz. A edição da Conrad ainda conta com um EXTRA exclusivo: uma nova entrevista com Miguelanxo Prado feita pelo jornalista e editor Sidney Gusman.
Tangências é uma HQ muito sensível que fala de relacionamentos. Em diversas histórias curtas, Miguelanxo Prado nos mostra casais que se encontram pela última vez em uma explosão de calor sexual para em seguida se separarem por algum motivo. E estes são diversos: interesses divergentes, pontos da vida em que eles não mais se encontram, sentimentos que não se complementam. Em pinceladas poderosas, o autor nos presenteia com momentos íntimos e que se passam em uma questão de horas, mas que determinam caminhos diferentes para cada um dos personagens envolvidos. Essa é daquelas HQs para se ler várias vezes e em momentos diferentes de nossas vidas. Tangências ganha novos significados dependendo de aonde nosso coração se encontra no momento da leitura.
O autor é considerado um dos maiores artistas espanhóis da atualidade ao lado de Paco Roca e em poucas páginas conseguimos perceber o motivo. Ele emprega uma arte aquarelada com tons escuros e terrosos, denotando melancolia e tristeza que transbordam pelos seus quadros. Um ponto curioso em seus quadros é a ausência do ápice, ou seja, daquelas flechinhas que apontam para quem está dialogando. O autor prefere só puxar uma linha simples em direção ao evocador da fala. Segundo ele, é para evitar poluir ao máximo a arte presente nos quadros. E funciona bem porque os quadros que ele pinta por toda a HQ são belíssimos. Não apenas esse que usei para chamar a matéria, mas tem outro na história Tangências em que o casal está em um prado regado por um sol do meio da tarde. Dignos de um quadro. Se eu pudesse pregava um original do Miguelanxo na parede do meu quarto. Outro ponto bacana é que o autor economiza nos diálogos e deixa os gestos e as tomadas de cena falarem mais. Em alguns momentos fica um pouco confuso, mas na maior parte das vezes funciona com primor.
Falando da edição da Conrad, com tradução de Claudio Martini, a HQ é em capa dura e tamanho grande. Totalmente necessário o tamanho da HQ para que a arte de Miguelanxo possa respirar. Por mim, poderia ser até maior porque são artes que vale a pena a gente observar com calma e estudar como Miguelanxo pensou seus quadros. Um artista que deseja estudar sobre arte em aquarela vai se beneficiar demais de uma observação dos quadros, da escolha de cores, da angulação das cenas, do posicionamento dos personagens, do emprego ou não de sombras, da quadrinização (mais quadros por página ou menos?). A edição da Conrad está em papel couché bem brilhoso o que ajuda a dar mais realce para a tinta de Miguelanxo. O prefácio é do Cassius Medauar onde ele conta a sua paixão por Miguelanxo e o quanto ele desejava publicar Tangências no Brasil. É legal de ver que ele menciona que Traço de Giz, outra obra famosa do autor, fora publicada pouco tempo antes pelo Pipoca & Nanquim e não há qualquer traço de rancor ou rivalidade boba, como costuma haver entre outras editoras. O importante é publicar o Miguelanxo por aqui, fazê-lo chegar ao maior número de leitores. Se vai ser publicado por A ou B, não importa, desde que feito com respeito ao material. No final da edição temos um posfácio contendo uma entrevista feita por Sidney Guzman (que faz parte da Maurício de Souza Produções e do site Universo HQ) com o Miguelanxo. Gosto demais de como o Sidão toca a entrevista, como se fosse uma conversa informal, e o autor revela sua escolha de temas, seu processo criativo e até que tipo de arte usar em uma HQ específica. Vale a pena ler a entrevista, mas DEPOIS de terminada a leitura. Primeiro, curtam as histórias e depois leiam a entrevista.
Como as histórias são curtinhas, não tem como não dar spoiler. Mas vou falar só de duas para não destruir a experiência dos leitores. Até para que vocês possam ter uma mostra do que é a HQ. Começando pelo segundo conto que dá título à coletânea, Tangências, e vemos um casal que se encontra em uma bela planície ensolarada à tarde. O amor dos dois explode em uma relação sexual apaixonada onde o passado de ambos colide com tudo. Corpos nus se encontram e ambos buscam a presença do outro, negada por um tempo cruel. Há anos atrás os dois estiveram neste mesmo lugar onde decidiram seguir caminhos diferentes, buscando ter uma vida melhor, seguir uma carreira lucrativa. Só que isso não aconteceu para nenhum dos dois. Um se tornou um negociador de contratos enquanto que sua parceira apenas se tornou uma sombra do que poderia ser. Nessa tarde ensolarada eles imaginavam que poderiam recuperar a paixão de outrora, mas tal não será o caso. O tempo do amor e do romance já passou; a vida aguarda responsabilidades que eles precisam cumprir. Toda a HQ é perpassada por esse tema do encontro, da paixão e do desencontro. É o que liga estes diversos contos. Não esperem finais felizes até porque a vida não nos produz um "felizes para sempre".
Fica aqui o alerta de que a HQ transborda sexualidade e Miguelanxo não se arroga de nos mostrar relações explícitas. Não é uma HQ erótica, mas um HQ com sexo. Aliás, o sexo costuma ser o pavio para o clímax da trama onde a relação se tangencia de alguma forma. Algo que chama atenção e é bem pontuado pelo Sidão em sua entrevista é como Miguelanxo desenha mulheres reais. Não esperem mulheres idealizadas, com corpos esculturais, parecendo deusas gregas. Nada disso... temos mulheres jovens, mulheres com mais idade, corpos nem sempre perfeitos. Não só para as mulheres como para os homens. Isso oferece muitas doses de verossimilhança às tramas o que assusta à primeira vista. Fiquei pensando por diversas vezes se o próprio Miguelanxo já ouviu falar desses casos ou já passou por um deles. Na entrevista, ele afirma que algumas histórias são baseadas em situações vividas por pessoas próximas a ele.
A outra história que queria destacar é Divindades Ociosas. Nele vemos um casal formado por uma mulher rica que gosta de ostentar seu poder e sexualidade e um homem que acreditamos ser um jornalista ou um âncora de telejornal que alcança muitas pessoas. Após uma tórrida sessão de sexo selvagem, a mulher olha pela janela de onde enxerga as outras pessoas como pequenas formigas diante do poder de seu dinheiro. Em seu diálogo, ela se compara a verdadeiros deuses gregos capazes de alterar a vida das pessoas em um piscar de olhos. Algumas das tramas dessa HQ envolvem políticos e profissionais liberais. A mostra de que mesmo pessoas com muito dinheiro e poder podem não ser realmente capazes de serem felizes ou terem vidas com realizações satisfatórias como muitas vezes acontece com pessoas com muito menos poder aquisitivo, mas que conseguem ter felicidade nas pequenas realizações. Na história, a mulher convida o homem com poder de mover as massas a terem uma relação tórrida, a se reunirem e se transformarem em uma dupla capaz de mudar o mundo e gozar das coisas finas da vida. O homem apenas retruca alegando que já esteve naquele mesmo lugar com outras mulheres tendo um sexo talvez mais prazeroso do que o que ele teve com ela. E que ela seria apenas mais uma, ninguém mais nem ninguém menos. Nada de deuses gregos. Ao final eles ainda marcam mais uma sessão de sexo quente para uma outra oportunidade. O olhar da mulher fica perdido por alguns segundos antes de ela retomar a arrogância costumeira.
São histórias como essas que fazem de Tangências uma HQ tão especial. Ela fala de vida, de sentimentos. Talvez não seja uma HQ para todos porque ela exige do leitor um certo grau de maturidade. Para analisar a vida a partir de uma outra ótica. Eu mesmo já me peguei pensando o que faria se tivesse que lidar com sentimentos tangenciais como esse. Me renderia a um último momento tórrido para depois apenas tocar a vida como se nada tivesse acontecido? As relações do passado tendem a nos assombrar quando menos esperamos. Quanto mais velhos e experientes ficamos, mais nos questionamos se teríamos feito algo diferente no passado. E é normal pensar isso; ruim é remoer isso. Aí sim é um sinal de que algo não está indo bem em seu relacionamento. A arte de Miguelanxo é maravilhosa e digna de quadros e homenagens. Não dá para mostrar muita coisa porque há vários quadros bastante explícitos, mas de qualquer forma a história sabe usar esses momentos íntimos para trazer para o primeiro plano o que ela quer realmente dizer.
Ficha Técnica:
Nome: Tangências
Autor: Miguelanxo Prado
Editora: Conrad
Gênero: Romance
Tradutor: Claudio Martini
Número de Páginas: 64
Ano de Publicação: 2021
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