Esta é a história de Haru, uma jovem menina que foi abandonada na porta de um tocador de shamisen em um dia frio de inverno. Ela tenta ganhar a vida tocando o seu shamisen até que conhece um kappa e passa a enxergar os deuses.
Sinopse:
A editora Pipoca & Nanquim orgulhosamente apresenta aos seus leitores mais uma publicação nacional de seu selo de obras originais, o novo trabalho do aclamado Guilherme Petreca, desenhista de Ogiva. Desta vez, o artista se uniu ao diretor e roteirista cinematográfico Tiago Minamisawa para narrar o fabuloso conto Shamisen: Canções do Mundo Flutuante, inspirado na cultura japonesa. Traçando paralelos com a realidade e inserindo elementos do folclore e da mitologia nipônica, a HQ narra a história de Haru, uma musicista cega que sobrevive por meio de suas canções e talento para tocar o shamisen, um instrumento de corda com uma história tão peculiar quanto sua melodia. A protagonista foi inspirada na artista Haru Kobayashi (1900-2005), consagrada como uma das mais influentes gozes, mulheres cegas que ganhavam a vida com apresentações musicais. Com páginas ilustradas em um estilo influenciado pelo ukiyo-e e seu maior expoente, Katsushika Hokusai, a obra tem como objetivo ser uma leitura leve, prazerosa e reflexiva em tempos conturbados, e também apresentar ao público brasileiro aspectos históricos pouco comentados, mas que exercem forte influência na cultura oriental até os dias de hoje, como a tradicional música Min'yō. A edição tem 164 páginas em papel pólen de alta gramatura, capa dura de papel linho com verniz localizado e lombada redonda. Conta ainda com uma galeria de extras com textos complementares de Vinicius Sadao, Gabriela Itocazo e Ed Canto, que aprofundam os principais temas apresentados no quadrinho.
Confesso que adoro obras que transcendem o aspecto simples do quadrinho na página. Que invadem sensações, que tocam nossos sentidos. E Shamisen é uma dessas obras. Seja pelas páginas que despertam milhares de mundos em nossa imaginação, ou o vento cortante que sopra em nossos rostos ou a doce canção de um shamisen. O que Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa conseguiram entregar nesse quadrinho é anos-luz maior do que o que pode ser contido nas páginas. Com isso a leitura se transforma em uma experiência sensorial além de ser uma história repleta de poesia e vários elementos da cultura japonesa. Acho que não vou conseguir impor nessas linhas o quanto eu gostei dessa HQ. Ao mesmo tempo sei que não é uma história que vai agradar a todos por causa de sua proposta bastante ligada à forma de escrita japonesa, com uma narrativa que beira o etéreo e o fabuloso. Quase como um conto de fadas que nos traz a importância da vida e o que fazemos de nossos destinos.
A história de Haru começa de maneira trágica. Ainda criança, ela foi abandonada por sua mãe durante um forte inverno na casa de um senhor que aparentemente trabalhava como tocador de shamisen. Logo pequena descobrimos que a pequena Haru é cega e acaba se tornando uma goze, uma tocadora de shamisen itinerante. O homem que a acolhe a ensina o necessário para que ela consiga tocar, mas ele morre antes da menina alcançar a maturidade. A vida é difícil para Haru, mas ela consegue manter a doçura em seu coração. De cidade em cidade, ela vai tocando seu instrumento e encantando as pessoas. Sua música é tão doce que encanta um pequeno kappa que tinha como moradia uma ponte na cidade onde ela se encontrava naquele momento. Encantado pelo som do shamisen, o kappa segue Haru até a floresta até que ela percebe que está sendo seguida. O kappa faz o possível para afastar a jovem, mas ela, diferentemente de outros seres humanos, não se importa com a aparência dele. Sua gentileza é recompensada com uma benção: Haru agora é capaz de enxergar os deuses. É então que se inicia uma jornada na qual música, deuses e a própria vida da protagonista estarão entrelaçados.
Preciso elogiar a bela edição do Pipoca e Nanquim. Já me contentaria só com a história do Guilherme Petreca e do Tiago Minamisawa, mas a HQ em si tem um projeto editorial elegante. Uma capa com uma textura que se assemelha a um papiro, O emprego de um papel bastante gostoso de manusear e que favorece a arte de Petreca. É fácil a gente colocar um papel elegante para uma HQ; mas é preciso sempre pensar se o tipo de papel vai ou não favorecer a arte. E é isso o que acontece aqui porque as cores fortes e pastéis empregadas por ele são potencializadas pela coloração mais amarelada do papel. A experiência também se aprimora com um QR Code que é fornecido lá nas páginas finais da HQ. Ela te leva a uma página do Youtube com as músicas tocadas no shamisen. Recomendo ler a história com fones de ouvido para te fornecer uma trilha sonora. Te garanto que vai ser algo bem diferente. E tem também um vídeo bem bacana explicando o que é o ukiyo-e e sua influência na cultura japonesa. Isso sem falar nos textos de apoio no final falando sobre quem eram as goze, os diversos tipos de instrumentos musicais (além do shamisen, há um comentário sobre a biwa) e até sobre a noção do mundo flutuante. Sem dúvida nenhuma todos esses fatores aumentam a experiência de leitura.
Os deuses são parte fundamental dessa narrativa. Eles estão presentes no mundo, para o bem ou para o mal. Admito que conheço pouco de como os deuses são entendidos no xintoísmo, mas o que deu para compreender através da história é que eles se assemelham aos deuses gregos no que diz respeito à sua "humanidade". Isso porque eles podem se apresentar como gentis, ciumentos, vaidosos ou vingativos. Haru tem todas essas experiências. Outro ponto curioso é de como os deuses acabam por aprender com os seres humanos por conta de sua resiliência e capacidade de os surpreender. Alguns dos momentos mais bacanas estão quando Haru encontra Benzaiten (a deusa em cima de um dragão oriental manipulando uma biwa que aparece em várias propagandas dessa HQ) e o momento embaixo da lua sob a proteção de Tsukuyomi. Só que os deuses também representam as forças da natureza e, como ela, podem ser intempestivos. Quando Haru se recusa a realizar o pedido de um deus, ela sofre severas consequências.
O poder da música está em quase todos os momentos da narrativa. Seja uma música capaz de encantar as pessoas e levar alegria a seus rostos. Ou de fazer carregar mensagens do coração aos quatro cantos do mundo. Tem um momento bem legal em que Haru é chamada para ir até a casa de um senhor que está morrendo. Sua acompanhante pede a ela que toque uma música no shamisen para que o senhor que está doente possa voltar a ter tranquilidade, já que ele estava tendo muitos espasmos por causa da dor e até delírios. Bem, Petreca foi bastante inteligente ao fazer a referência a essa situação porque esse senhor é alguém muito especial para a cultura japonesa. Voltando a falar de música, é interessante a filosofia por trás do próprio shamisen. O tutor de Haru conta que como o shamisen era construído a partir de partes de diversos animais, ela deveria tocar muito bem o instrumento como uma forma de honrar aqueles que perderam a vida para formar sua estrutura. E até a música deve ser usada também para encantar os deuses. Esse último ponto, Haru só vai entender mais tarde na história.
Vou tentar não entregar muito, mas queria trazer também a filosofia por trás de nosso próprio papel na Terra que é explorado mais ao final da história. Em vários momentos de nossas vidas nos perguntamos o que fazemos aqui ou por que estamos vivos. Esses questionamentos vem a nós principalmente em momentos de maior necessidade ou quando estamos em uma situação difícil. A cultura oriental tem uma resposta curiosa nesse sentido. Não devemos pensar no que devemos fazer no futuro. Ou se os projetos que estamos nos engajando terão alguma recompensa ou devolutiva. O que importa não é o destino, mas a jornada realizada. Basta fazermos o melhor de nós mesmos de uma forma que nos satisfaça como pessoas. Nossas vidas serão marcadas por experiências felizes, outras tristes, outras dramáticas, outras divertidas. E a cada nova experiência, tiramos alguma coisa dela. Seja uma lição pequena ou uma grande; ou até algo que só iremos nos dar conta no futuro. Viver é aprender, é nunca desistir. É perseverar mesmo quando tudo parece contra nós.
Shamisen - Canções do Mundo Flutuante certamente estará na minha lista de melhores do ano, uma lista que está ficando cada vez mais difícil de fazer com tantas coisas maravilhosas a serem acrescidas a ela. Mas, a HQ me tocou com a sua eterealidade, com as suas belas mensagens inseridas no texto e com a sua musicalidade. Tenho certeza que na próxima vez que eu for ler essa HQ, porque eu irei relê-la muitas e muitas vezes, tirarei outros significados de suas páginas. Recomendo a todos ler esta HQ. Certamente vai ser uma experiência única em suas vidas.
O Quadrinho em 1 Quadro:
Queria tentar destacar alguma coisa da arte do Petreca sem parecer que estou aqui tecendo elogios sem fim. E o meu destaque fica para o detalhamento e as linhas de expressão dos personagens. Falar no detalhamento é citar o quanto os quadros são bem preenchidos, o quanto Petreca se preocupa com cada aspecto do que está sendo apresentado, seja na frente ou no fundo. As cores se combinam com o cenário formando um todo harmônico. As cenas parecem que vão saltar da HQ em nossa direção. Por exemplo, esse dragão que está no quadro que eu destaquei parece que se move para mim. É uma sensação estranha potencializada pelas linhas de movimento dos personagens. Mesmo em quadros estáticos, os personagens parecem sempre estar fazendo algo. Seja a capa que parece que Haru está calmamente tocando o seu instrumento ou os pássaros pintados em alguns momentos de transição entre cenas que parecem realmente estar voando. Outro ponto curioso é que em algumas páginas, mesmo as laterais das folhas são usadas para fornecer alguma sensação diferente, como um trecho em que pétalas de sakura caem por toda a parte. O efeito produzido é bem legal.
Ficha Técnica:
Nome: Shamisen - Canções do Mundo Flutuante
Autores: Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa
Artista: Guilherme Petreca
Editora: Pipoca e Nanquim
Número de Páginas: 164
Ano de Publicação: 2021
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