Uma pioneira no campo da ficção científica em uma época em que o gênero era dominado por homens brancos, Alice nos mostra a sua maestria em escrever histórias curtas. Nesta coletânea temos três histórias com destaque para o conto que dá título para a coletânea onde um grupo de náufragas acaba em uma estranha ilha. Fenton, o protagonista, passa a desconfiar das ações das duas mulheres sobreviventes que não se comportam como mulheres. Onde isso vai dar?
Sinopse:
Em três novelas reverenciadas pelos fãs da Ficção Científica, Alice Bradley Sheldon ― a escritora por trás do renomado e misterioso “James Tiptree Jr.” ― inova com abordagem feminista no gênero, em tramas ousadas e instigantes. Neste livro, uma garota transforma-se num anúncio publicitário vivo; mulheres preferem invasores alienígenas a continuar no mundo dos homens e uma epidemia religiosa provoca feminicídios em massa.
Alice Bradley Sheldon, ou James Tiptree Jr como ficou mais conhecida, é uma das grandes autoras de ficção científica das décadas de 60 e 70. Inovadora, provocativa, ela assumiu um pseudônimo masculino para fugir às convenções e conseguir publicar suas histórias provocativas. Abordando temas bem à frente do seu tempo como representatividade e feminicídio, ela tocava nas feridas de uma sociedade conservadora e claramente machista. Mas, as pressões desse mundo tiveram efeito nela e talvez a tenhamos perdido cedo demais. O legado que ela deixou para nós foi uma enorme quantidade de histórias curtas e algumas poucas narrativas mais longas. Infelizmente, no Brasil, pouquíssima coisa escrita por ela chegou até nossas mãos. Através da editora Ímã temos contato com uma coletânea contendo três de seus contos mais celebrados, inclusive A Garota Plugada que se tornou longa metragem posteriormente. Faço um pedido a editoras como a Morro Branco e a Aleph, que possuem histórico de publicações de romances feministas e/ou publicado por mulheres: tragam mais Alice Bradley Sheldon porque suas reflexões são necessárias demais a esse mundo estranho em que vivemos. Já me comprometo desde já a trazer mais uma das coletâneas dela que saiu pela SF Masterworks para discutirmos aqui. Só fazendo uma última observação: uma das introduções é assinada por minha querida companheira de blog, Lady Sybylla, que escreve um texto muito bacana apresentando a autora e sua importância para o cenário de ficção científica como um todo.
Falando sobre a escrita geral dos três contos, Sheldon tem uma cartografia narrativa bastante inusitada. Ela começa antes pelo problema que ela quer abordar do que apresentando os personagens. Em alguns casos, é bastante curioso que ela nos deixa em suspense para saber qual é o gênero do personagem que está sendo tratado. Costumamos assumir na maior parte dos casos que o protagonista é um homem, o que nem sempre acontece em suas histórias. No caso aqui, isto se dá mais na segunda história do que na primeira e na última, mas é uma espécie de teste para o quanto conseguimos manter uma neutralidade acerca de quem é o centro de uma história. Hoje temos livros que possuem uma maior amplitude de gênero, mas na época em que ela escreveu o normal era o homem branco aventureiro e desbravador. Até é legal destacar esse ponto porque o protagonista da primeira história está sempre desconfiado de todas as personagens femininas ao seu redor. O estilo de escrita muda conforme as histórias, mostrando versatilidade na sua habilidade de escrita. A primeira história é uma narrativa padrão em terceira pessoa onisciente; a segunda história é contada em segunda pessoa, como se o protagonista se referisse a mim, leitor, e contasse para mim o que estivesse acontecendo; a terceira história é contada de forma epistolar, com intervalos de tempo entre as cartas.
A primeira história dá título para a coletânea e se trata de um grupo de personagens em uma embarcação até que eles caem em uma ilha deserta. O protagonista Fenton claramente não se dá bem nessa situação extrema e comete inúmeros erros de decisão em tentativas frustradas de manter o grupo vivo em um lugar estranho. As duas mulheres que estavam na embarcação assumem um protagonismo inusitado, fazendo tarefas nitidamente masculinas e mostrando suas capacidades inventivas e de sobrevivência. Fenton fica claramente incomodado com isso e passa a observar o comportamento das mesmas e a segui-las por toda a parte imaginando que elas certamente seriam comunistas ou guerrilheiras disfarçadas. Isso porque mulheres decentes, na visão dele, não teriam capacidade para realizar tais tarefas.
"Eu me limito a olhar para a cara dela. Que nova forma de loucura atacou a Mamãe Galinha? Será que ela imagina que Estebám está avariado demais para poder ser funcional? Enquanto fico ali atônito, meus olhos constatam o fato de que a sra. Parsons está com os joelhos bem rosados, soltou o cabelo e o nariz já está um pouco avermelhado pelo sol. Uma quarentona em bom estado; na verdade, bastante apetecível."
Não quero entrar em grandes detalhes sobre a trama porque Sheldon faz várias viradas narrativas ao longo das páginas e a graça é ter o queixo caído enquanto ela toma vários caminhos diferentes na histórias. Essa história é uma espécie de grito de guerra feminino diante de tamanha opressão masculina. O senso comum de Fenton é agressivo e ele passa a desconfiar a partir das mais mínimas coisas. Como o protagonista representa o modelo padrão de "macho alfa", ele se sente emasculado ao ver tarefas como fazer rastreamento, buscar um abrigo, preparar a fogueira, caçar animais, sendo feito pelas mulheres. Fenton se sente agredido em sua essência. E isso faz sua desconfiança aumentar. Possivelmente, emasculação seja o tema central desse conto até pela escolha que as duas personagens fazem mais à frente. A narrativa incomoda a quem tem um mínimo de sensibilidade. Porque a forma como o protagonista ataca as duas personagens e as diminui é algo que ainda vemos acontecer nos dias de hoje. São homens inseguros acerca de si mesmos que querem ter o protagonismo a todo custo. Caso fiquem em segundo plano por causa de uma mulher talentosa, isso só pode ser estranho; algo está errado. A dita mulher não está conforme os "padrões sociais", logo é uma desvirtuada. Quando li a palavra "histérica" no conto, isso me fez remeter imediatamente às velhas discussões de Michel Foucault sobre quem deveria ir para o manicômio e como as instituições encarceravam mulheres que sequer tinham algum problema. Apenas não se conformavam com o seu papel em uma sociedade retrógrada. Os momentos finais da narrativa representam, talvez parte do que a autora sentia. Diante de tanto preconceito e diminuição, vale a pena ainda permanecer em um planeta que tolhe e que violenta? E se não houvessem mais mulheres na Terra, o que seria da população masculina? A cena definidora desse conto é a expressão de absoluto terror de Fenton percebendo a decisão de suas companheiras. Último detalhe: Fenton só pergunta o nome de Ruth na metade da história. Antes disso, ele a trata de forma impessoal, demonstrando desinteresse até pela identidade dela.
O segundo conto chama-se Garota Plugada e é uma espécie de conto cyberpunk que mostra a prisão que é a beleza feminina e o quanto ela pode ser opressiva. Na história, P. Burke, uma mulher que passou por todo tipo de situações difíceis em sua vida, recebe uma proposta que pode mudar sua vida. Dona de um corpo abusado pela sociedade, e que não se encaixa em seus padrões de estética (a todo momento o texto busca dizer que ela é feia, gorda e suja, fazendo um descompasso com o seu avatar, que se enquadra nos desejos de uma sociedade que enxerga o superficial), Burke se submete a um procedimento onde sua mente passa a habitar o corpo de uma idol maravilhosa, que representa uma espécie de outdoor ambulante. Não se pode mais fazer propagandas diretas neste mundo, então a criação de uma idol artificial serve para fazer propagandas sutis e provocas uma febre de consumo em homens seduzidos por ela ou mulheres que a enxergam como algo a ser alcançado. O que no começo é maravilhoso, logo toma rumos sombrios para Burke quando ela se apaixona pelo filho de uma grande empresa. Só tem um detalhe: Paul se apaixonou por Delphi, o avatar, e não por Burke, a hospedeira. Como terminará esta história de amor?
"Lá na multidão, a que está de boca aberta olhando para os seus deuses. Uma garota fodidona, numa cidade do futuro. (Sim, foi isso que eu disse.) Preste atenção."
Dá para falar tantas coisas desta história curta. O que mostra a riqueza do que Sheldon nos traz. Temos uma sociedade claramente de aparências, onde as corporações não se importam em tirar vantagem do mundo das aparências. Ao criar um padrão de beleza, o sr. Cantle está dizendo a um mundo como se comportar, como se vestir, o que consumir... como ser. E isso nós vemos em nosso mundo. Todos os anos a indústria da moda define o que entendemos como padrão de beleza. Há décadas atrás era a mulher loira, magra e alta; hoje buscam-se as curvas, que podem ser conquistadas com procedimentos estéticos. Aquelas que não são capazes de se encaixar nestes padrões da moda tem sua auto-estima profundamente afetada. A maneira como o narrador se refere a Burke é um sinal disso. Sempre com adjetivos voltados para o terror: monstro, criatura, resto. Já Delphi representa os sonhos sexuais de toda uma massa masculina: olhos grandes, corpo nem muito jovem, nem muito maduro, fala que parece ser um convite ao sexo. A narrativa vai ficando cada vez mais estranha à medida em que o tempo passa e Burke deixa de se importar consigo mesma e afunda em uma falsa imagem de si que ela passa a acreditar como sendo ela mesma. Uma situação que acontece lá pelo final no laboratório onde ela se encontra durante uma confusão, é de uma tristeza sem tamanho. Sheldon escreve um final irônico que é uma porrada na boca do estômago.
O mais famoso dos três contos é Mulheres que Morrem como Moscas, que se tornou um episódio de uma série chamada Mestres do Terror em 2006. Apesar que a série tomou uma série de liberdades criativas em relação ao texto original. No conto, uma praga que provoca uma ira cega e primitiva nos homens que passam a matar mulheres aos milhares toma conta dos EUA. Alan trabalha em um laboratório e está preso no local em uma pesquisa complexa. Sua esposa Anne se corresponde com ele através de cartas enquanto a praga do ódio se espalha rapidamente por toda a parte. Vemos o desespero de Alan com a segurança de sua esposa e sua filha até o momento em que ele larga tudo o que está fazendo e se dirige para a sua casa a qualquer preço. A narrativa é desesperadora e Sheldon faz isso progressivamente. A cada nova carta escrita por Anne vamos percebendo o crescendo do desespero. Quando aparecem os primeiros sinais de que matar mulheres se tornou uma cruzada religiosa, aí é que tudo fica mais explosivo.
Se você, leitor homem cis e machista, não ficou incomodado com os outros dois contos, é aqui que certamente você vai ficar. Sheldon nos mostra homens se tornando verdadeiros animais sexuais e violentos, violentando mulheres enquanto as matam impiedosamente. Algumas situações são bastante descritivas e é feito para incomodar mesmo. Dos três, esse é o que parece mais uma narrativa de terror mesmo. O homem como um animal sexual é um tema que já foi trazido à tona inúmeras vezes. Seus instintos primitivos de perpetuação da espécie o fazem assim, segundo se diziam em análises científicas do século XIX e início do XX e a mulher era o ser libidinoso, que o atraía quase em uma dança do acasalamento. Esse tema é tratado de uma forma um pouco convoluta por Sheldon, talvez pela escolha de palavras ou de metáforas. A versão audiovisual é mais eficiente para mostrar o que a autora quis dizer ao ilustrar com imagens (como a de um outdoor com uma mulher de bikini em uma pose provocante enquanto homens observavam com desejo). Sheldon também remete à visão católica da mulher como a pecadora, aquela que tirou a maçã e a deu a Adão. Eliminar a mulher do mundo seria fazer justiça aos ditames de Deus. Sheldon é muito feliz ao trazer a sequência de fanáticos religiosos insanos empilhando cadáveres de mulheres em alguma espécie de torre obscena da destruição. Os momentos finais são de partir o coração porque esse é o único conto em que a gente realmente se empatiza com o protagonista masculino que está legitimamente preocupado com a sua esposa e filha.
"Desculpe, amor, acho que estou parecendo uma histérica. George Searles voltou da Georgia falando da Vontade de Deus. Logo o Searles, que foi ateu a vida inteira. Alan, está acontecendo alguma coisa muito louca."
Belíssima coletânea de histórias de uma autora que precisamos conhecer mais. Minhas únicas ressalvas ficaram no primeiro conto onde vi que a história poderia ter sido um pouco menor com algumas cenas que não possuem qualquer relevância para o resultado final. Sheldon já havia alcançado o efeito que ela queria antes e uma narrativa mais estendida só prejudicou o resultado final. No segundo conto, o clímax da história é um pouco confuso e a invasão pareceu mal explicada e estranha. Sheldon visava um momento específico e parece não ter planejado o que acontecia momentos antes. O terceiro conto é impecável. Nada a reclamar. O final tem o impacto desejado. Aliás... a última frase é impactante.
Ficha Técnica:
Nome: Mulheres que os homens não veem
Autora: Alice Bradley Sheldon escrevendo como James Tiptree Jr
Editora: Ímã
Tradutor: Bráulio Tavares
Número de Páginas: 212
Ano de Publicação: 2023
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