Em um mundo abalado por uma catástrofe ambiental, as pessoas passaram a precisar se preocupar com a conservação da natureza; afinal, isto é sobrevivência. A detetive Zuhri se depara com o assassinato de um médico que pesquisava um filtro para usinas poluentes. Isso vai se mesclar com a busca de sua ancestralidade.
Sinopse:
Nesta novela cyberfunk, acompanhamos Zuhri, detetive do Núcleo de Combate a Crimes de Ordem Ambiental-Humana, em sua investigação a respeito do assassinato do Dr. Diop, chefe de pesquisas de biolimpeza industrial da Alphabio Tech, em meio às tensões espaciais e sociais entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa e ao mistério que envolve Ayomide, personagem que conecta Zuhri ao seu passado.
Ancestralidade e sobrevivência
Isegún é uma novella cyberfunk muito bem ambientada. Não sabe o que é cyberfunk? Vamos pensar no cyberpunk tradicional. A luta contra as corporações, as cidades decadentes, a imensa desigualdade social. Blade Runner e sua metrópole melancólica e chuvosa é o melhor exemplo disso. Misture isso ao clima do gueto, ao ritmo do carnaval e às lutas diárias dos mais pobres; você chegou no cyberfunk. Já tinha lido algumas histórias ambientadas nesse gênero, mas Lu Ain Zaila consegue entregar algo acima da média. Mesmo com as limitações de palavras de uma novella. Não tenho dúvidas de o quanto a autora colocou suas ideias e visões de mundo nesta trama em um cenário que quem mora em comunidades mais pobres vai conseguir especular esse futuro e quem não mora, vai ter uma ideia das dificuldades e limitações, e se pôr a refletir sobre o descaso das autoridades e da enorme desigualdade social.
Nossa protagonista é Zuhri, uma detetive durona do NCCOAH ( Núcleo de Combate a Crimes de Ordem Ambiental-Humana) que persegue infratores dos pesados códigos ambientais da cidade. O mundo foi afetado por uma catástrofe ambiental que aumentou o nível dos mares e jogou os plásticos que estavam nos oceanos de volta para os centros urbanos. A pequena mudança ambiental provocou uma drástica alteração que trouxe gases poluentes oriundos do chorume, ventos que causam morte e doenças àqueles com problemas de saúde, inundações poluentes. Isso obrigou a humanidade a mudar sua perspectiva sobre o mundo, reduzindo terras cultiváveis e tornando o cultivo doméstico obrigatório. Em uma investigação que envolvia uma batida policial, tudo acaba saindo errado e Zuhri acaba conhecendo rapidamente Ayomide, um homem (depois ela descobre que é uma mulher, na verdade) com muitas ligações com um mundo que transcende o nosso. Ayomide faz Zuhri entrar em contato com forças que ela não sabia que possuía. Mas, do mesmo jeito que apareceu, o estranho ser desapareceu. Cinco anos mais tarde, um assassinato vai se conectar intrinsecamente com esse estranho caso e fazer Zuhri revisitar memória estranhas.
"No serviço de alto falante
Do Morro do Pau da Bandeira
Quem avisa é o Zé do Caroço
Amanhã vai ter alvoroço
Alertando a favela inteira"
(Leci Brandão, Zé do Caroço - 2000)
Para começar, a escrita da autora é muito competente. Vocês não fazem ideia da dificuldade que é construir um cenário em um estilo não familiar ao leitor e deixá-lo comprimido o suficiente para ser facilmente compreensível. Muitos autores gostam de ter espaço para construir sua ambientação com calma. Até criticamos o emprego do info dumping, o excesso de informações. Aqui, a autora emprega o fornecimento de informações de forma paulatina, sem excessos. Um pouco de ambientação aqui, o desenvolvimento dos personagens ali. Em um mundo tão diferente do nosso em vários aspectos, ser capaz de criar a familiaridade para depois inserir a diferença é essencial. A autora faz essa contextualização sem prejudicar o fluxo da história. A narrativa é em terceira pessoa, o que permite à autora ter liberdade para construir com calma a sua ambientação. Até fica a sugestão que, se ela voltar a esse mundo, pode usar uma narrativa em primeira pessoa, já que o leitor vai estar mais familiarizado com tudo. Em uma narrativa mais íntima, é possível oferecer uma perspectiva mais particular, o que combina com as questões que a Lu deseja apresentar.
Adorei acompanhar o desenvolvimento de Zuhri. E desenvolvimento no sentido de ela ser colocada em uma situação não familiar e precisar abrir seus olhos para um mundo estranho. Precisar questionar valores para poder seguir em frente. Aceitar o que está além de suas percepções. Ayomide provoca essa mudança e ao final do caminho, nossa personagem está preparada para seguir em frente. Aplicar seus conhecimentos de uma forma construtiva, buscar se tornar uma agente de mudança. O interessante é que Lu Ain Zaila nos apresenta um pouco dos mitos iorubás sem entrar em detalhes mais complexos. Ela ressalta a integração com a natureza, a valorização dos ancestrais, a proteção da vida. Até o aspecto da musicalidade, que eu já comento, está presente. Muitas vezes complicar demais pode afastar o leitor leigo; quando você é mais didática, isso provoca uma aceitação porque as noções básicas são fáceis de serem apreendidas. Preciso dizer só algo que me incomodou um pouco: o uso de notas de rodapé. Entendo a necessidade para explicar termos não familiares, mas eu sou meio chato e puritano nesse caso: prefiro o texto limpo. Um glossário ao final teria servido bem. Para falar a verdade eu nem emprego glossários, preferindo inferir o significado das palavras através do texto. Mas, é questão de preferência mesmo.
"Cada negro que for
Mais um negro virá
Para lutar
Com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta irmão
Ouvir minha voz
Oh Yes"
Lutar por nós"
(Wilson Simonal, Tributo a Martin Luther King - 1970)
A musicalidade está muito presente na narrativa. Dá para montar uma bela playlist de músicas para ouvir enquanto estamos lendo Isegún. Até recomendo isso para a Monomito. Se torna uma experiência até bem mais legal. E demonstra o quanto a cultura popular está imbricada na narrativa musical. Ela faz parte do dia-a-dia e dita o rumo que nossas vidas tomam. Os sentimentos que são expressos por nós em um determinado momento, ou as palavras que desejamos ouvir. Isso se funde com a cultura iorubá que também tem na dança e na música um fundamento e uma essência. Tudo tem ritmo, cadência.
A temática da desigualdade está fortemente presente na narrativa. Temos uma corporação que controla a forma como a filtragem de resíduos se dá. Assim como várias empresas nos dias atuais ela não só é responsável por conter, mas por espalhar os problemas. A narrativa vai girar no interesse destes de lucrar enquanto a população continua a sofrer com mortes, privações e racionamentos. Qualquer coisa que traga uma boa solução para o problema deve ser pesada nos interesses econômicos daqueles que estão no poder. A própria dicotomia Cidade Alta e Cidade Baixa demonstra a visão deles em relação às massas. Não houve muito tempo para trabalhar como a personagem se colocava diante disso, mas creio que a autora deixou ótimas aberturas para retomar o tema em futuras histórias.
"Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade"
(Dona Ivone Lara, Sorriso Negro - 1981)
Isegún é o segundo livro da série Universo Insólito, da Monomito Editorial. Mais uma vez eles trazem uma narrativa acima da média em um formato bem atrativo para o leitor. E mais uma autora nacional que merece ganhar mais espaço justamente por ela abraçar um gênero que deveria ter uma produção literária maior. O afrofuturismo ganha poder nas vozes de pessoas como a Lu Ain Zaila e do Fábio Kabral. Se metamorfoseiam em histórias interessantes justamente por ser o lugar de fala deles. E só o fato de a Lu continuar na ficção científica me anima demais por ver o que ela pode aprontar a seguir.
Ficha Técnica:
Nome: Isegún
Autora: Lu Ain Zaila
Editora: Monomito Editorial
Número de Páginas: 120
Ano de Publicação: 2019
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Monomito Editorial
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