Cássio é um homem já com mais idade e que hoje mora sozinho em um prédio de classe média. Preconceituoso, ranzinza e conservador, ele não aguenta o país em que vive e quer mudanças. Brigou com a família e há anos não vê o filho. Mas, quando seu filho entra em contato com ele porque precisa de alguém para cuidar de sua filha, tudo irá mudar. Ana, sua neta, é uma linda e preciosa menina negra. Poderá Cássio mudar?
Sinopse:
Crisálida conta o processo de reaproximação de uma família separada por um conflito ideológico e de visões de mundo diferentes, bem parecido com o que acontece em muitas famílias no Brasil e no Mundo. A história acompanha Cássio, um homem idoso, viúvo, branco e conservador, que tem as convicções e visão de mundo colocadas à prova quando passa a cuidar de sua neta Ana, uma criança curiosa, alegre, comunicativa e preta, para que seu filho Pedro, com quem não conversa há quase dez anos, possa se tratar de um câncer agressivo.
Todo mundo tem aquele avô do Zap ou o tio do pavê com suas ideias antiquadas e ultrapassadas e que não suportamos estar próximos. O Brasil forneceu um campo fértil para as diferenças de pensamento nos últimos anos. A ascensão da extrema direita fez os esqueletos saírem do armário. Durante a eleição de 2018 e a pandemia estes esqueletos ganharam vida e força. Pessoas que antes eram apenas ignoradas ganharam um palco para exibir suas frustrações. O progressismo agora é comunismo; o preconceito deixou de ser combatido, para ser aplaudido (não que fosse muito combatido, mas parecia que caminhávamos em outra direção). Famílias foram separadas por conta de diferenças de ideias. O ato de não gostar de um parente se tornou asco, nojo. Há vários relatos de pessoas que saíram às vias de fato por conta dessas diferenças. Hoje estamos em um processo de conciliação, de buscar entender o que aconteceu lá atrás que redundou nisso aqui. Em alguns casos, conseguimos fazer os teimosos refletirem sobre as coisas... em outros talvez nem tanto. O que Vinicius Velo traz é uma preciosidade em forma de quadrinho e nos mostra que existe esperança.
A narrativa tem como personagem principal Cássio, um senhor já na terceira idade e que mora em um prédio de classe média. Ele faz parte de um grupo de senhores que, como ele, são preconceituosos, rabugentos e egoístas. Pessoas que pensam diferente dele são tolos e estão levando o Brasil para a calamidade. O casal homoafetivo que se muda para o lado é um sinal de como as coisas foram para o saco, na visão dele. Cássio é viúvo e não tem contato com o seu único filho há anos. Fruto das diferenças de pensamento entre eles. Um dia seu filho entra em contato com ele e Cássio imagina conseguir fazer uma reconciliação com ele. Mas, as notícias não são boas. Seu filho descobriu que tem câncer e precisa começar um tratamento quimioterápico arriscado que pode colocar sua vida em risco. Só que a razão pela qual ele entra em contato com o seu velho pai é para pedir a ele um favor inusitado: cuidar de sua filha Ana enquanto ele passa pelas etapas do tratamento. Até aí tudo bem só que a neta de Cássio, Ana, é uma linda e animada menina negra. É aí que o mundo do velho conservador cai. Ele vai precisar aprender sobre como cuidar de uma menina e aprender a olhar o mundo pelos olhos do outro.
Logo de cara percebemos o quanto a arte é diferente do padrão e foi bem isso que me chamou a atenção. Velo usa três cores na composição dos quadros: preto, branco e um azul meio puxado para o fosco e escuro. Isso oferece uma série de nuances diferentes para os quadros. Uma simples escolha de cores fornece um ar muito elegante às páginas. O design de personagens do artista é lindo e expressivo. Talvez o segundo adjetivo seja o melhor para falar sobre o comportamento dos personagens. A expressividade não fica apenas no olhar, mas nos gestos, na forma de falar. Além do que os designs são bem realistas e lembram pessoas com as quais tivemos contato. A quadrinização não inventa moda, apesar de vez ou outra, o artista usar um quadro de página inteira. Para contar uma história mais intimista, a quadrinização em si não é o aspecto mais importante, mas a maneira como o autor faz valer cada quadro. Vale destacar também que vez ou outra temos quadros vazados, o que gera um efeito lindíssimo nas páginas. Fiquei encantado com a arte do Velo.
A narrativa é bem simples de entender e por essa razão ela consegue ser tão pungente. Talvez para nós que vivemos esse período, ela consiga fazer com que tracemos tantos paralelos. Não há grandes mistérios na narrativa e a gente acaba meio que adivinhando aonde ela vai dar. Só que como em qualquer boa história, o importante não é o final, mas o caminho para ele. O que nos faz nos apegar aos personagens é como Velo insere cada situação e cada obstáculo. Se trata de uma narrativa em três atos, com o primeiro nos apresentando os personagens e o problema central, o segundo apresentando algumas situações limítrofes e a terceira que é a reflexão e a eventual mudança ou permanência. Receita de bolo simples e direta e muito bem executada. Não enxerguei barrigas na trama. Muito pelo contrário, a história é bastante objetiva e as páginas passam voando. Curioso pensar que eu até gostaria de ter visto um pouco mais porque os personagens são encantadores. Mas, para mim, redondinha; não poria ou tiraria nada.
O tema central da narrativa é a atitude raivosa até de Cássio com aquilo que é diferente. E deixo claro que o autor não faz nenhuma pregação progressista ou nada do gênero. É simplesmente que a sua maneira de pensar colocava de fora o contato com sua própria família. Tem uma boa fala do filho de Cássio que aponta o quanto eles pensam diferente, mas que a questão toda está em como determinadas situações afetam a vida de Ana. É possível ser conservador sem ser agressivo ou raivoso. Cássio vai vivenciando as situações e, ao perceber como o outro é afetado por comentários ou atitudes, isso abre a mente dele para uma amplitude maior. É fácil imaginarmos que sabemos o que são os problemas quando achamos que o mundo gira ao nosso redor (spoiler: ele não gira). Costumamos dizer em Sociologia que identidade e alteridade são quase como sinônimos. Identidade sendo a visão de si e alteridade a visão do outro. Mas, não existe visão de si sem alguma conotação comparativa. Quando nos referimos a ser alto ou baixo, qual o padrão que usamos? Então é nossa observância sobre o outro que construímos nossa própria visão de quem somos. Na visão de Cássio, ele é o certo, o padrão, a norma. Sua fisiologia, seus hábitos, seus comportamentos. Os outros é que devem se adequar a ele. Quando ele precisa lidar com Ana, alguém com uma visão tão diferente de mundo e de si mesma, ela bagunça todas as certezas que Cássio tinha.
E aí entra a importância de Ana. Velo conseguiu criar uma personagem completamente amável e carismática. Ana tem aquela doçura e inocência que só alguém com a idade dela poderia ter. E sem ser forçado demais. Gostamos de Ana naturalmente. Várias situações que ele apresenta são de uma espontaneidade linda, como ela abraçando o seu avô quando ele parece estar triste ou Ana fazendo uma piada sobre os resmungos dele. As situações que Ana vive são as mesmas que várias meninas como ela passam diariamente. Sendo brancos, somos privilegiados por fazermos parte de um grupo étnico que não costuma precisar se justificar, defender suas posições ou sua normalidade social a todo o momento. Um homem ou mulher brancos não são julgados pela sua cor ou aparência. É muitas vezes difícil para nós entendermos determinadas situações pelas quais a população negra passa. Podemos cometer preconceito nas menores ações. Na maior parte dos casos, as pessoas atrelam isso a uma postura chata, persecutória e "mimizenta", ao invés de buscar aprender com os erros e não cometer mais. Não custa nada tratar outros seres humanos como... seres humanos. Em algumas situações apresentadas pelo autor, me emocionei porque já cheguei a presenciar meus alunos passando por isso e precisando defendê-los de alguma maneira.
Esse quadrinho é importante porque nos ajuda a fazer uma reflexão. Sei que nossa sociedade caminha para um confronto frontal com aqueles que possuem uma visão mais fechada sobre as coisas. Mas, não é bizarro pensar que pode haver mudança e compreensão. A conscientização é parte importante do amadurecimento de um indivíduo e da própria sociedade como um todo. Nunca é tarde demais para mudar. Basta ter as certezas demolidas por uma marreta. Claro, a pessoa pode escolher manter a sua postura e se segurar em sua bolha, mas nunca é demais tentar. Histórias como a de Ana podem servir como estímulo para que repensemos nossas ações. E isso porque nem cheguei a comentar sobre o casal homoafetivo que acaba se tornando muito amigo de Cássio, para seu espanto. Outro ponto que vale destacar são as perguntas que Ana, uma menina naturalmente curiosa, faz a seu avô. Algumas delas são tão diretas que chegam a partir nossos corações. Certas coisas que tratamos como senso comum, mas que de comum não tem nada. Recomendo lerem os diálogos com bastante atenção.
Gostaria aqui de deixar o meu agradecimento a Velo por essa história. Porque ela é importante em tantos níveis que não sei nem por onde começar. Penso me tornar um pai no ano em que escrevo essa resenha e minha esposa é uma mulher negra, assim como a mãe de Ana é. Então já estou me preparando psicológica e emocionalmente para os desafios que me serão impostos no futuro. E, sinceramente, gostaria muito de ter uma menina como Ana como minha filha. Inocente, inteligente, criativa, animada. Feliz. Mesmo diante de todas as adversidades e os problemas como um país como o nosso apresenta. Crisálida é o estado físico onde todos nós nos encontramos neste momento. O que nos espera no futuro nós ainda não sabemos.
Ficha Técnica:
Nome: Crisálida
Autor: Vinicius Velo
Editora: Guará
Gênero: Ficção
Número de Páginas: 240
Ano de Publicação: 2021
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