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Resenha: "Corações nas Sombras" (Presságios de Guerra vol. 1) de Allan Francis Salgado

O ataque ao Templo da Luz é o prelúdio de uma guerra que irá assolar os continentes de Pallas e Primas. A paz que parecia estável de repente se esfacela quando vários interesses entram em jogo. A guerra é inevitável e no fundo deste cenário terrível, um dragão sorri.

Sinopse:


Quando eu olhei através do passado eu finalmente compreendi o que você entenderá aos poucos.

Ver a queda e extinção dos centauros por sua sede de poder foi apenas o estopim de algo maior, pois o mal que despertaram no mundo inferior (Agonia) embora selado por Círdan o elfo, desencadeou uma série de acontecimentos que narro para ti.

Aquilo bastou para que Goldax o imortal que liderou os orcs por duzentos anos encontrasse um mestre que lhe prometeu libertar os orcs de seu exílio.

Depois de sua derrocada, o dragão negro ressurgiu havido por poder e adoração, a ponto do rei dos dragões lhe temer.

A Casa de Prata com intenções desconhecidas começou a roubar um a um os talismãs de Ifíanor.

O mundo aos poucos começou a odiar os magos seus antigos benfeitores e uma mente brilhante surgiu com a finalidade de equilibrar as coisas, mas ele não sabia que seus atos acarretariam uma guerra sem fim.

Então meu amor, meu confidente e meu amante, se lhe conto sobre o passado é para que você entenda o meu papel no presente e o porquê de termos nos separados. Escolhi nomear este relato de Corações nas Sombras e acredito que você entenderá o motivo.




O sistema de Pontos de Vista empregado pelo George R.R. Martin é uma das ferramentas narrativas mais elogiadas nos dias de hoje. Dezenas de autores usaram o autor de Crônicas de Gelo e Fogo como inspiração para compor suas histórias. Mas, o que muitos acabam por descobrir são as dificuldades desse estilo de escrita em mosaico. Allan Francis consegue em Corações nas Sombras usar muito bem esse recurso.

A escrita do livro é em terceira pessoa empregando Pontos de Vista. Ou seja, o autor criou um elenco de personagens que servem como seus olhos em diferentes espaços geográficos da narrativa. Dessa maneira, é possível abarcar todo o universo de histórias que o autor traz para esta série. O autor afirmou que a série Presságios da Guerra terá cinco livros. Ou seja, neste primeiro volume o autor constrói as bases para serem exploradas nos volumes posteriores. Nesse caso o estilo de POVs se encaixa bem na proposta do autor. A narrativa é bem próxima do personagem (ou personagens) que estão sendo explorados naquele momento. Eu só achei que usar dois ou mais personagens como POVs ficou um pouco estranho em algumas cenas. Acho que os capítulos onde o Allan explorou apenas um personagem (como os do Goldax ou da Elda) ficaram bem mais redondinhos. Mas, isto aconteceu mais em alguns momentos. O POV funciona melhor quando você aproxima a visão ao personagem em si, dessa forma, mesmo a narrativa sendo em terceira pessoa, parece que o leitor consegue ouvir a voz do personagem. Não preciso nem dizer que um dos meus personagens favoritos foi o Goldax, não é?

“Enquanto ela caía viu uma sombra, era maléfico e aos poucos entrava na boca de Selene e, no meio de suas pernas, eles se beijaram.”

Antes de passar aos personagens, eu queria comentar a respeito da revisão. E como me deixa triste quando uma editora não faz a revisão de um livro. Um livro tão bom e repleto de potencial como este, e tem tantos problemas de revisão. Em um livro extenso como o do Allan, esses erros acabam saltando demais aos olhos. Corações nas Sombras precisa muito de uma boa revisão, de um pouco de carinho da parte da editora. Se cada volume de Presságios de Guerra tiver essa qualidade que este tem, a Chiado poderia se beneficiar muito ao fazer o marketing do livro. E digo revisão não apenas ortográfica per se, mas uma edição também (mas vou deixar para comentar isso mais abaixo).

O ponto alto da escrita do autor é, sem dúvida alguma, a construção de personagens. E eu fiquei preocupado em alguns momentos pelo fato de o autor ter criado um elenco tão extenso. A possibilidade de ter havido problemas era perfeitamente plausível. Mas, todos os personagens são construídos de uma maneira competente e possuem vozes e problemas bastante distintos. Posso discordar do caminho que o Allan tomou com a Itzanami, por exemplo, mas de forma alguma posso dizer que a personagem é ruim. As personalidades de alguns dão o tom de alguns trechos como o Leon, onde o Allan constrói uma história mais micro, explorando os problemas dentro de uma cidade e como o personagem busca resolver tudo usando sua astúcia. Ou existem personagens que, mesmo sendo malignos, possuem um gravitas que os tornam únicos como Tanor e Goldax.

Outro ponto bacana é a virada narrativa que começa a ser desenhada a partir da metade final da história quando um personagem específico tem suas ações reveladas. O autor vai soltando pistas em vários momentos da história que algo estava errado ou que havia algo mais, até o momento decisivo nos momentos finais deste primeiro volume. Aqui é aquele alerta que eu coloquei em outras resenhas: a virada acontece sim, mas o leitor percebe alguns indícios na história que fazem ele exclamar "A-há!!!". Não é um plot twist vindo do nada.

Vários temas permeiam a história. Um dos principais é a possibilidade de controlar destinos. O leitor consegue perceber que muitas das grandes figuras presentes na narrativa querem o poder para exercer controle. E um ambiente tão estável como o que transparece no início da história não é possível. Não é possível fazer política sem quebrar alguns ovos. E esse desejo de controlar tudo está presente em Tirdan, em Morghom e talvez até em Cirdan. E quando todos estes egos entram em choque, a guerra acaba sendo a única saída possível.

Também temos o tema da aceitação. Por exemplo, tudo o que Itzanami e Gael desejavam era serem aceitos em suas respectivas sociedades. Infelizmente, muita coisa conspira para que seus destinos continuem parados no mesmo lugar. Somente quando eles decidirem tomar suas vidas nas próprias mãos e se arriscarem, é que as coisas começam a se mover para eles. Claro que para isso acontecer, sacrifícios se farão necessários. Ao mesmo tempo existem também personagens que não se conformam com os destinos que foram traçados para eles. Alásia quer o que seu coração exige, mas será isso possível? O quanto a atitude egoísta de Alásia poderá causar de mal? Aliás, ela foi a personagem que eu menos curti. Mas, em toda a história com múltiplos POVs vai ter sempre aquele personagem que você gosta mais e aquele que você gosta menos.

"O grande Dragão Negro era uma visão singular – duas grandes asas fortes e altivas, escamas que pareciam o aço negro forjado pelos anões de Gringor. Deve ter uns dezoito metros de altura, tem no mínimo o dobro de um dragão comum – pensou"

A narrativa é apresentada de forma muito competente. Eu entendi bem mais para a segunda metade da história o que o autor quis fazer. A história é construída em um estilo convergente, onde as várias narrativas que parecem separadas, se unem mais para a frente à medida em que as peças do quebra-cabeças passam a fazer sentido. Claro que, sendo uma série, muitos ganchos narrativos são deixados para que o leitor fique curioso com o desenvolvimento das várias linhas narrativas.

O mundo criado pelo autor é interessante. Dá para perceber a clara inspiração em histórias de alta fantasia, na figura de orcs, trolls, goblins, elfos, anões. Mas, é necessário unir essas diversas raças em um mundo coeso e que faça sentido. E o que vemos é um sistema social, político e econômico bem desenvolvido e o leitor rapidamente se acostuma com tudo o que lhe é apresentado. Seja o Alto Conselho, o governo de Abak ou até mesmo o conselho élfico. Tudo faz sentido e é harmônico. Podemos perceber a inspiração de várias culturas reais no cenário do livro, só que em lugares inesperados e diferentes do que você esperaria.

Minha única crítica é o excesso de info dumping. São muitas informações a respeito de muita coisa. Isso prejudica em alguns momentos a boa fluidez narrativa. Isso é nítido nos diálogos que cumprem o papel apenas de repassar ao leitor aspectos da construção de mundo. Claro que em um livro com tantas facetas, ficaria complexo encontrar maneiras de amenizar isso. Em alguns momentos, a leitura me cansou um pouco por este excesso de informações. Por isso, precisei pôr o livro de lado por alguns dias para depois retomar a leitura com mais afinco. Os capítulos da metade final ficaram um pouco mais longos, o que é algo que pode trazer um pouco de lentidão. Minha sugestão é que no início de cada capítulo, o autor poderia colocar algum elemento de mundo falando, sei lá, sobre a política de determinado lugar, ou a ficha técnica de um personagem, um diário de viagem em que o autor falaria sobre tal ou tal aspecto cultural (formando até uma espécie de literatura dentro da literatura). São apenas sugestões que podem ou não servir o autor. Aí entra a revisão. Com um bom editor, ele teria reduzido bastante a quantidade final de páginas no livro. Eu sei que os autores odeiam a faca da edição, mas ela quase sempre ressalta os melhores aspectos de uma escrita. E eu sinto que uma boa edição faltou aqui. Novamente, isso não é atribuição do autor, mas da editora que está com o livro em seu catálogo. E, novamente: mais carinho da editora.

E, também gostaria de chamar a atenção para outro ponto alto da escrita do autor: as cenas de ação. Como ele escreve bem estes momentos da história. Posso destacar pelo menos três grandes momentos na história. Um em especial era em um capítulo mais alongado, mas a narrativa do que está acontecendo naquele momento é tão boa que acabamos não percebendo a extensão do que estamos lendo. Quando eu vi tinha devorado mais de quarenta páginas. Tudo acontece muito rápido e as coisas são dinâmicas demais. Muito boas o que demonstra o alto nível do autor.

"...O hibrido que mais causou horror em Ilron era uma mulher com o pescoço virado para trás, no qual somente se via o seu couro cabeludo na frente, e no lugar de mamilos nos seios havia olhos, olhos de algum parasita de Agonia, três pares deles..."

Corações nas Sombras é uma leitura muito acima da média. Uma história bem escrita e que deixa o leitor ansioso pelo que vai se seguir. Allan captou e absorveu muito bem a técnica de narrativa em terceira pessoa com Pontos de Vista. Dos livros que eu li até o momento é o que melhor soube usar essa ferramenta para potencializar a trama. Com isso, o elenco de personagens é muito bom, fazendo com que o leitor goste de alguns, e não tanto de outros. Nesse quesito, os leitores vão se dividir em dizer quais são os mais legais. Isso provoca uma discussão muito sadia sobre o livro. Entretanto, senti que a editora não deu o carinho e a atenção necessárias à história. Muitos problemas de revisão e uma boa edição faltaram para que o livro alcançasse o seu máximo. Porém, recomendo fortemente a leitura dele.


Ficha Técnica:


Nome: Corações nas Sombras

Autor: Allan Francis Salgado

Série: Presságios de Guerra vol. 1

Editora: Chiado

Gênero: Fantasia

Número de Páginas: 736

Ano de Publicação: 2016


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