Na categoria de ler livro de autor nordestino no desafio Ficções Humanas, O Homem Vazio demonstra como o autor sergipano Thiago Lee entende tanto da capital paulista, a ponto de as características dela moldar os conflitos.
Sinopse:
Otto está desaparecendo, e ele sabe disso.
Tímido e solitário, Otto divide seu tempo entre o trabalho, o trânsito infernal e os hospitais, que visita frequentemente com a mãe enferma. Em meio a uma onda de sumiços na cidade, ele descobre a São Paulo do Lado de Lá, uma realidade paralela que engole cada um dos desaparecidos.
E ele pode ser o próximo.
Uma a uma, as pessoas na vida de Otto começam a esquecer que ele existe: conhecidos, colegas de trabalho, familiares. É quando ele é visitado por um rapaz idêntico a ele — um duplo — que vive na São Paulo do Lado de Lá. Os dois, então, precisarão da ajuda de Ana, irmã que Otto não vê há anos, para impedir que os sumiços continuem.
Na metrópole onde todo meio de transporte atulha pessoas, chega a ser triste ver o quanto os moradores de lá são passageiros passivos. Encontram uns aos outros todos os dias sem conversar, interagir, sequer lembrar de rostos tão cotidianos. E quando o indivíduo foca nos sucessos alheios para alcançar o próprio, abrindo mão dos recursos e pessoas próximos de si, acaba por nem quem convive todo dia o reconhece mais. Thiago Lee é um autor sergipano e morador de São Paulo tempo o suficiente para reconhecer os vícios da maior metrópole brasileira e transcrevê-la em O Homem Vazio, livro publicado em 2018 graças a um edital de publicação ficcional pelo governo municipal paulistano.
“Foi o meu próprio rosto que vi quando olhei para o rapaz vindo em minha direção.”
Otto se depara com alguém igual ele. Na verdade é ele mesmo, seu dúplice existente em uma outra São Paulo. A história começa assim, antes de mostrar Otto em um trabalho desagradável, essencial para pagar as contas de casa, onde mora apenas ele e a mãe, tendo um pai ausente faz tempo e a irmã Ana que optou por seguir a própria vida. Tímido na maior parte do tempo, ele fica mais solto ao publicar vídeos na internet nos moldes de vlogs, de gravação tão espontânea quanto os assuntos ditos. De popularidade baixa, gosta de acompanhar os produtores de conteúdo de sucesso, em especial o músico Deco.
Noticiários reportam o aumento do número de desaparecimentos na cidade de São Paulo, com poucas informações a serem atualizadas a cada vez que mencionam os casos. Já o dúplice de Otto veio a esta dimensão de São Paulo por causa disso, as pessoas estão se perdendo entre os dois planos da capital, risco inclusive de acontecer também ao Otto, caso as pessoas deixem de o reconhecer.
“Dei um sorriso falso, o único que pude oferecer.”
Com uma narrativa em primeira pessoa, Otto divide os capítulos do livro com outros personagens a narrarem conflitos próprios e convivências alheias a dele, tudo pertinente e agregado ao cerne da trama em seu devido tempo. Cada personagem distribui a experiência aprendida ao leitor, a qual o outro nem sempre sabe ou ainda aprenderá por si, mesmo assim há surpresas na leitura com informações existentes, só desconhecidas por todos até encaixarem as peças do enredo, e cada encaixe deixa uma marca, uma descoberta de sentimentos aflorados. Thiago acerta na sensibilidade dos personagens, ainda mais quando os principais são introvertidos, toda situação conflitante os impacta.
Começar a história logo com o choque do protagonista frente ao elemento fantástico por vezes é a melhor opção, oferecendo agilidade ao enredo ao focar no essencial da narrativa, a ir direto ao conflito e explorar as características emocionais em erupção diante do que o levará ao limite. Mas não é este o caso. A interação entre Otto e a versão sobrenatural dele adia a revelação do conflito do personagem, o dúplice no começo exerceu o papel de arauto e prolongou a parte correspondente à recusa do chamado por Otto insistir em seus erros mesmo diante desse arauto. Já em outra personagem houve aceleração da trama quando ela começa o contato com a aparição fantástica, ela aceitava a existência extraordinária antes de ter a oportunidade de entender o contexto do fato. Erros despercebidos na revisão de texto incomodam pela quantidade, forçando a releitura até formular como seria a frase correta.
Passando esses tropeços do começo, a história amadurece em significados profundos e realistas a quem reconhece a rotina de viver em São Paulo, tornando a cidade tão viva quanto um personagem. Muita ação dos envolvidos acaba sendo na verdade reação à realidade da capital paulista, sendo o conflito central bem pertinente a ocorrer neste lugar repleto de pessoas a trocar olhares todos os dias e permanecerem desconhecidos. Mesmo em ambientação de fantasia urbana, a preocupação é realista a ponto de provocar temor, de ninguém o reconhecer no bar que frequenta, de cumprimentar uma pessoa e na outra vez precisar se apresentar de novo, falar de si tantas vezes a ponto de questionar: “quem sou eu mesmo?”
“― Juro que vou devolver suas coisas. E salvar sua vida.”
O Homem Vazio usa da fantasia urbana a debater os valores essenciais, no entanto esquecidos na rotina espontânea da capital paulista. Thiago Lee selecionou vários aspectos urbanos e questões de representatividade ao compor os personagens, seja na classe social ou orientação sexual, trazendo conflitos próprios dessas características sem sobrecarregar a trama, afinal tudo faz parte da vida deles, sendo o conflito central apenas o precursor a narrar a história desta etapa transformadora da existência deles.
“Eram muitas idas e vindas, lados de cá e lados lá, duplos e originais.”
Ficha Técnica:
Nome: O Homem Vazio
Autor: Thiago Lee
Editora: Auto-publicado
Número de Páginas: 376
Ano de Publicação: 2018
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