Os questionamentos acerca da vida e da morte permeiam um diálogo marcado por conflitos sobre a própria existência no clássico de Anne Rice.
Sinopse:
" - Como aconteceu? - Existe uma resposta muito simples, mas não acredito que quer as respostas simples. Acho que quero contar a verdadeira história... " E a verdade será contada. Assustadora, erótica, estranha, perversa e irresistível. Esses adjetivos normalmente assombram o nosso imaginário a respeito de vampiros, mas a série das Crônicas Vampirescas, criada por Anne Rice, usa esse imaginário apenas como uma entrada num "banquete" muito mais que simplesmente macabro. Escrita em 1976, Entrevista com o Vampiro inicia a série que apresentou a rainha dos Condenados e o vampiro Lestat de Lioncourt, levando os críticos à descoberta de que trata-se da sedutora história de horror do nosso tempo. Uma história que começa com a ousadia dum jovem jornalista entrevistando Louis de Pointe du Lac, nascido em 1766 e transformado em vampiro pelo próprio Lestat, personagem apaixonante que terminará, ao longo da série, arrebatando multidões como um astro. " - Quer dizer que ele sugou seu sangue? - Sim, o vampiro sorriu. É assim que acontece. " Louis, esse vampiro que recusa-se a livrar-se das características humanas e aceitar a perversão que marca os vampiros, continua a contar a história desde o início: " - Escute, mantenha os olhos abertos, sussurrou Lestat com os lábios encostados no meu pescoço. - Lembro que o movimento dos seus lábios arrepiou todos os cabelos do meu corpo, enviando uma corrente de sensações que não eram diferentes do prazer da paixão... "
É um mundo fantástico impressionante, um mundo gótico e romântico, criado por Anne Rice e traduzido por Clarice Lispector.
Entrevista com o vampiro
Em mais uma categoria do Desafio Ficções, a bestseller Anne Rice merece ser lembrada como um expoente feminino na literatura gótica. Ainda que seu universo fictício apresente-se de forma sobrenaturalmente sedutora e filosófica, é inegável sua contribuição para o imaginário coletivo do vampiro moderno. Em sua mitologia, não são os monstros desfigurados e selvagens que assustam, mas sim a frieza e crueldade do monstro humano e insaciável que assombra aqueles que já foram seus pares.
Entrevista com o vampiro é um livro curioso. Considerando o ano em que foi escrito, 1976, carrega traços bastante típicos dos escritores da época, especialmente na estrutura, na linguagem e nas escolhas narrativas adotadas. Mas, ao mesmo tempo, lança-se com tamanha ousadia ao abordar sem pudores várias questões sobre sexualidade, e o faz de forma bastante natural, até mesmo óbvia. Ousa, ainda, na própria construção de personagens, algumas até hoje inquietantes, da qual a vampira-criança Cláudia é o maior exemplo entre as mais famosas criações da autora.
"As pessoas que param de crer em Deus ou na bondade continuam a acreditar no diabo. Não sei por quê. Não, realmente não sei por quê. O mal é sempre possível. E a bondade é eternamente difícil."
Uma das minhas maiores críticas - e aí eu faço várias ressalvas - é quanto à escrita de Anne Rice. Seria presunção minha afirmar que a escrita não é boa; seria mentira, inclusive. A autora conduz a história de forma magistral, constrói contextos e dá um sentido, um propósito, a cada um de seus memoráveis personagens, mas a escrita em si não me agradou. Como já foi dito, há de se considerar o estilo literário da época, mas a estruturação em partes (enormes) e não em capítulos, as frases e parágrafos intermináveis e a prolixidade das descrições dos cenários, das flores, das vestimentas, dos cabelos etc. são profundamente desanimadoras.
Naturalmente adepta do tradicional Romantismo, a linguagem floreada de Anne Rice é compreensível e, a bem da verdade, contribui para criar a atmosfera obscura, sedutora e absolutamente depressiva de Entrevista com o Vampiro. Isso se reflete principalmente nos personagens, em especial no narrador da história, Louis de Point du Lac. Louis é extremamente bem construído: um vampiro jovem, recém-transformado por Lestat, cuja maior ambição na vida pós-morte é o conhecimento. Através de Louis, experimentamos as dores do vampirismo, as experiências traumáticas, as dúvidas e arrependimentos dele, uma alma rara e sensível entre seus iguais. Louis dialoga com seu entrevistador e consigo mesmo durante toda a narrativa, contando sua versão dos fatos desde sua transformação até algum momento próximo dos dias atuais. É a partir da ótica de Louis que conhecemos principalmente Lestat e Cláudia, mas também outros que serão importantes em outros livros.
"Qual o significado da morte quando se pode viver até o fim do mundo? E o que é o "fim do mundo" além de uma frase, pois quem sabe, ao menos, o que é o mundo?"
Apesar da falta de protagonismo em Entrevista com o Vampiro, creio não ser nenhuma novidade afirmar que Lestat é o grande personagem de Anne Rice, o mais importante de suas Crônicas Vampirescas. Neste volume, conhecemos Lestat através da dor de Louis, sempre vinculado a um enorme ressentimento, culpa e paixão. Mas quero destacar que Cláudia representa, sem dúvidas, o papel mais perturbador da história e também uma das personagens mais complexas da trama. Afora o existencialismo posto em cheque por Louis, é Cláudia que movimenta a carga dramática e impulsiona os eventos do volume inicial das Crônicas Vampirescas - a menina que nunca se tornaria mulher.
Cláudia é simplesmente perturbadora. Por vezes infantil demais, por outras uma adulta beirando a sedução - no corpo de uma criança; inteligente, cruel e ambiciosa, mas indefesa e frágil. O dilema é retratado de forma a gerar sentimentos conflitantes com relação à personagem, mas uma coisa é certa: Cláudia é incomparável, tanto que até hoje é usada como inspiração e modelo para outras tantas histórias vampíricas.
E já que a autora gosta tanto de enfatizar as ruas, as carruagens, os prédios, as flores, as árvores, a iluminação dos postes nas ruas e mais um sem fim de detalhes de cada cena, resta dizer que a ambientação de Entrevista com o Vampiro é excelente e bastante condizente com o passar dos anos nos quais a história se desenvolve. Apesar de enfadonho - para ser gentil -, muitas vezes essas descrições são resgatadas em outros momentos e apresentam alguma relevância, sim, para a trama, sobretudo no que diz respeito à luz e às flores. Muito disso também reflete os ânimos de Louis e Cláudia, então é importante tentar entrar nesse clima gótico para compreender melhor o que se passa com os personagens.
"Por que precisa nos transformar em deuses e diabos, quando o único poder que existe está dentro de nós mesmos?"
A impressão mais forte que fica de Entrevista com o Vampiro é o profundo pesar e desespero de Louis, que incorpora questões filosóficas essencialmente humanas: por que estamos vivos? Por que sequer existimos? O que existe depois desta vida? Deus existe? E se existe por que permite tanto sofrimento? Por último, gostaria de trazer um dado talvez bastante relevante para um melhor entendimento sobre o livro. Notadamente, Anne Rice não teve uma vida fácil, marcada por perdas precoces, como a de sua filha - inspiração para Cláudia - e posteriormente de seu marido. Em suas Crônicas Vampirescas, Anne Rice retrata questionamentos muito compreensíveis em períodos de luto, e esses sentimentos inevitavelmente se transferem para o papel.
Apesar de não ser aquele terror popularizado por célebres autores como Stephen King, conhecedores do subgênero gótico provavelmente se identificarão rapidamente com Entrevista com o Vampiro. É notável a influência que a história possui em diversas produções atuais, tanto na literatura quanto no cinema e televisão, especialmente tendo como referência o famoso filme homônimo de 1994 com o Brad Pitt interpretando Louis e o Tom Cruise como Lestat. Talvez vampiros não estejam mais tão na moda assim, mas eu abriria uma exceção para Anne Rice a qualquer momento.
Esta resenha foi recomendada na campanha da editora educativa Twinkl sobre a importância das mulheres na literatura.
Ficha técnica:
Título: Entrevista com o Vampiro
Autora: Anne Rice
Série: As Crônicas Vampirescas vol. 1
Editora: Rocco
Tradutora: Clarice Lispector
Número de Páginas: 334
Ano de lançamento (no Brasil): 1992
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