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A literatura e uma nova visão de mundo ameríndia

O livro O Despertar de Tudo, de David Graeber e David Wengrow propõe novas reflexões sobre o desenvolvimento da humanidade. A partir de algumas de suas observações sobre as culturas ameríndias, vamos analisar como os livros e quadrinhos mais recentes tem abordado o tema.


Já há algumas décadas, historiadores e antropólogos de diversas abordagens e orientações vem alertado quanto ao viés eurocêntrico das reflexões sobre o desenvolvimento da humanidade. Alertando para elementos como uma divisão histórica segundo grandes acontecimentos europeus, o próprio mapa-múndi tendo a Europa em seu centro, o modelo civilizatório tendo como "pináculo" o europeu. Se em tempos passados essas reflexões ficavam apagadas devido a um corporativismo acadêmico, cada vez mais as vozes silenciadas tem gritado cada vez mais alto. Entre alguns bons exemplos recentes tivemos o sucesso de Sapiens, de Yuval Noah Harari e agora o polêmico O Despertar de Tudo, dos autores David Graeber e David Wengrow. Para essa matéria vou me referir mais ao segundo como ponto de partida para algumas conexões com livros e quadrinhos recentes que tem buscado descontruir nossa visão sobre a cultura ameríndia.


Embora os autores tenham a tendência de partir para certos exageros e curtir polemizar em alguns capítulos, suas reflexões são legítimas e partem de vácuos deixados por arqueólogos e antropólogos. Podemos questionar algumas de suas afirmações, mas é sempre necessário fazer uma auto-crítica quanto a como estamos abordando certos temas. Como o próprio livro aponta, estudos dissonantes de autores clássicos como Marshall Sahlins ou Pierre Clastres acabam ficando no ostracismo porque batem de frente com "verdades" que vigoram há muitos anos. Ou acabam sendo reduzidos a ligeiras exceções ou regionalismos ou até se cria um subgênero no qual se encaixar. Os estudos dos autores sobre os hábitos de povos da América do Norte e as análises sobre as interações entre os povos que viviam na Amazônia são repletos de estudos e descobertas recentes que abrem os olhos quanto a uma complexidade das relações entre os povos originários. Um bom exemplo disso é o quanto sempre imaginamos que os povos indígenas como amontoados isolados em seus próprios espaços. E isso, antropologicamente, é inexato. Embora fossem agregados com quantidades menores de habitantes, eles eram forrageadores, vivendo da caça, da coleta ou da pesca. Como seria possível que em centenas de anos, eles nunca tivessem encontrado outros agregados? Ou melhor: será que os indígenas nunca tiveram a curiosidade de cruzar os Andes? Convido vocês a conhecerem as reflexões dos autores, mas tenham em mente que as conclusões que eles chegam não são verdades absolutas, assim como não o eram aqueles que eles criticam. Sempre devemos ter uma posição crítica e questionadora. Mas, como é que a literatura tem encarado essas novas discussões?


Uma das autoras com trabalhos muito bem conceituados entre os escritores de gênero é Rebecca Roanhorse. Sendo uma nativa-americana, ela procura trazer algumas das reflexões sobre as visões de mundo dos povos indígenas com uma riqueza de detalhes que nem sempre é aparente para os leitores. No nosso site, já fizemos uma boa resenha sobre Trail of Lightning, sua obra de estreia. Nele a autora nos coloca em universo pós-apocalíptico em que parte dos Estados Unidos foram isolados do resto do mundo e seres mágicos conseguem caminhar entre os homens. Na leitura vale considerar o quanto a autora coloca a solidariedade entre os povos originários como um fator importante. Mesmo a protagonista, Maggie, sendo uma pessoa que vive há anos sozinha, ela não consegue evitar ajudar os seus iguais. Graeber e Wengrow nos mostram o quanto existe esse senso de coletividade entre os povos e que isso foi importante para que eles pudessem sobreviver em um mundo mais hostil. Claro que isso não significava que eles precisavam abandonar o seu nomadismo para isso. Diferentemente do que se pensa, não existe uma evolução óbvia do nomadismo para o sedentarismo. Na visão dos dois autores, cada povoamento indígena decidia qual era a melhor forma de sobreviver. No modelo nomadista, isso facilitava a locomoção e evitava as guerras constantes com outros povos. No livro, eles nos oferecem uma reflexão sobre qual é a melhor maneira de sobreviver: ser um povo pescador ou um catador de bolotas e nozes? Pela lógica, pescar é mais simples porque o preparo do alimento é mais rápido em relação a tirar os venenos das bolotas, quebrar a casca e deixar em estágio de preparo. Mas, os autores chegam a ótimas conclusões a respeito do segundo caso. Voltando ao livro de Roanhorse, a autora nos presenteia com exemplos de nômades e sedentários e nos permite entender a visão de mundo de cada um.


Mas, gostaria também de mencionar Black Sun, livro de Roanhorse que é mais recente (e ainda não resenhamos) mas que vale a reflexão. Na trama somos novamente colocados em um mundo meio fantástico, meio futurista (as divisões não são tão claras na escrita dela) e nele está acontecendo um fenômeno astronômico de poder em que, segundo seus sacerdotes, o mundo entraria em desequilíbrio. É então que surge um viajante que parece ser detentor de uma poderosa sabedoria. Graeber e Wengrow falam sobre essa figura do viajante de outro lugar que traz em si ensinamentos de sabedoria que desequilibram o status quo. Essa figura mítica está presente em diversas culturas e podem apontar para rupturas sociais que levaram povos a uma revolta interna ou à sua decadência. Entre os povos ameríndios existia uma conexão forte entre religião e fenômenos astronômicos como eclipses, solstícios, aproximação de outros planetas. E é por essa razão que a figura do sacerdote, do oráculo ou do profeta assume tamanha importância nessas sociedades. Eles constroem a ponte entre o mundo material e o mundo invisível. Falando em termos mais práticos, estas figuras servem para traduzir fenômenos da natureza incompreensíveis aos homens. Em Black Sun, Roanhorse brinca com essa temática, mas ao mesmo tempo nos traz uma visão mais profunda onde um homem vai apontar os erros e problemas em uma sociedade. Ao mesmo tempo o quanto figuras que falam sobre rupturas são entendidos como vilões, como desviantes.


Ainda nessa temática dos povos originários e em como sua visão de mundo está relacionada à natureza e ao universo, Darcy Little Badger, outra escritora oriunda da população nativo-americana (da comunidade Apache) escreve Elatsoe, uma obra que bebe bastante de Crônicas de Nárnia, mas que insere sua própria visão em suas páginas. Nesse mundo alternativo, os espíritos existem próximos dos homens. Tirando o mistério do assassinato de seu irmão que é a narrativa principal do livro, a narrativa se foca bastante no modo de vida dessas populações. Tendemos a simplificar demais a maneira como eles sobreviviam porque entender uma população que vive da natureza ou que vive em um modo de vida nômade é inconcebível como "evolução" para nós. Por exemplo, existem muitos fatores que determinam como o líder de uma aldeia é selecionado. Ou até quem é ou não o chefe. Geralmente tais sociedades são bastante igualitárias, embora não completamente. O líder geralmente é aquele que detém o monopólio dos instrumentos ou das terras sagradas. O mágico é o diferencial em uma sociedade que sobrevive em uma linha tênue entre o sucesso e a destruição. Graeber e Wengrow apontam que, na visão deles, a semente que originou o conceito de propriedade privada é proveniente desse monopólio do sagrado. Ou até de ter conhecimentos sobre o sagrado e como ele afeta o mundo material. Darcy Little Badger nos apresenta esses elementos com uma linguagem com a qual estamos acostumados, que é a da protagonista ter alguma conexão com o mundo invisível, e a partir desse domínio, se tornar uma pessoa respeitada entre seus iguais.


Outra boa reflexão dos autores de O Despertar de Tudo tem a ver com a falsa acepção que temos sobre o fato de estas civilizações mais voltadas para a natureza serem menos evoluídas ou bárbaras em relação às sociedades avançadas europeias. Os autores trazem uma série de relatos de época de personagens históricos que tiveram contato com estas civilizações, retornaram para a Europa e não conseguiam mais viver em sociedade. Isso porque o conceito de liberdade nas sociedades ameríndias era bem diferente do modelo europeu. O livro usa como guia para a discussão o nativo Kondianronk. E ele vai até a Europa junto com Lahontan, um nobre europeu que havia ido, no século XVII, conhecer mais sobre a cultura nativa. Ao chegar na Europa, Kondiaronk critica uma série de instituições que na visão dele eram pouco eficientes: a desigualdade social vinda de cima para baixo, a existência de pessoas que não contribuíam para a sobrevivência da comunidade, as leis que representavam mais aspectos negativos do que engrandecedores. Graeber e Wengrow nos mostra através dos relatos de Kondiaronk e de outros viajantes como diversos europeus acabavam retornando a essas comunidades indígenas porque viam um bem-estar maior em tais locais. Uma qualidade de vida e liberdade sem precedentes, embora precisassem obedecer a todo um conjunto de leis. No quadrinho O Mágico Vento, Gianfranco Manfredi nos coloca ao lado do personagem Ned, que sofreu uma tragédia na qual perdeu sua memória e acaba indo viver por muitos anos ao lado de uma comunidade indígena onde acaba se tornando uma espécie de medicine man (um tipo de guerreiro/feiticeiro). Suas histórias nos mostram o personagem lutando para recuperar sua memória, mas a cada nova aventura e com o desenvolvimento de sua história, percebemos o quanto ele prefere estar ligado ao universo indígena do que ao mundo dos homens. Suas leis negativas e injustiça pouco apetecem ao personagem que prefere viver sob um código de honra mais claro e transparente. Esse apelo por uma vida mais voltada para a sua comunidade não é privilégio somente de comunidades ameríndias, mas de diversos outros povos nômades como os beduínos, os mongóis.


Também gostaria de trazer outra HQ muito interessante que é o Crônicas Ameríndias com roteiro do Gustavo Schimpp e arte do Enrique Alcatena. Schimpp faz um ótimo estudo sobre as nações ameríndias da América do Norte e escreve histórias curtas que podem ou não envolver colonizador, magia e desejos de vingança. Vale notar uma característica bastante curiosa nas histórias que gira na figura do chefe. Este não necessariamente tem um poder incontestado. Para poder continuar exercendo sua função, ele precisa se dedicar ao seu povo, seja doando sua parcela de comida, ajudando a se livrar de invasores ou contribuindo na colheita. Seu poder pode ser questionado a qualquer momento e Graeber e Wengrow nos mostram casos de comunidades em que um chefe é tratado como um palhaço, sendo motivo de risada e chacota por seus iguais caso não seja capaz de prover sua comunidade. Aliás, seu poder só é inconteste na área sagrada na qual ele vive. Quando sai dela, ele só torna apenas mais um, podendo ser desobedecido a qualquer momento. Essas estruturas de poder nos mostram uma sutileza ímpar nessas relações pessoais, algo que os antropólogos acabaram jogando como exceções ou como subclassificações. Tais exemplos estão presentes em diversas comunidades e os autores nos mostram a diferença entre um povo que é mais voltado para a colheita, mas com leis mais rígidas e outra comunidade voltada para caçadores que precisam sobreviver a incursões e cujas leis de governança são mais flexíveis.


Como podemos ver, a literatura de gênero que se volta para a exploração das comunidades ameríndias tem se tornado mais complexa à medida em que novas informações chegam até nós. Por mais que a academia ainda resista às novas pesquisas, algumas delas tem apresentado resultados e informações que não tem como não serem aceitas diante de meros preconceitos e orientações eurocêntricas. O livro O Despertar de Tudo é um compilado de diversas dessas novas pesquisas, com reflexões e discussões feitas por ambos os autores nos quais eles questionam o status quo. Acredito que o material seja um ótimo guia de leitura para autores que desejam entrar nessa temática. De linguagem fácil e clara, os autores conseguem transmitir essas informações mesmo para um público que não está acostumado com esse tipo de pesquisas. Recomendo fortemente para todos.



Livro consultado:


Ficha Técnica:


Nome: O Despertar de Tudo - Uma nova história da humanidade

Autores: David Graeber e David Wengrow

Editora: Companhia das Letras

Gênero: Não-ficção

Tradutores: Denise Bottman e Cláudio Marcondes

Número de Páginas: 696

Ano de Publicação: 2022


Link de compra:


*Material recebido em parceria com a Companhia das Letras












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