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Foto do escritorPaulo Vinicius

A florestania no mundo de Philip Pullman

Em A Luneta Âmbar, terceiro livro da série Fronteiras do Universo somos levados a um mundo idílico onde animais que se comunicam por telepatia vivem em cidades-floresta. Eles vivem a partir do sraf, uma energia que habita todos os seres vivos. Mas, o que isso tem a ver com o conceito de florestania, criado por Ailton Krenak? Confiram nesta matéria.


No terceiro livro da série Fronteiras do Universo, A Luneta Âmbar (que vocês podem conferir nossa resenha neste link), Philip Pullman nos apresenta a um mundo idílico para onde a dra. Malone acaba indo parar. Lá ela se depara com animais estranhos que montam em uma espécie de patins ou rodinhas e a levam até uma cidade marcada por árvores enormes. Para a história, a participação da doutora vai servir para desvendar alguns dos segredos por trás do Pó, uma essência mística que tem várias usos nos livros do autor.


SÓ PARA ALERTAR: VOU DAR SPOILERS DO TERCEIRO LIVRO PARA ESCREVER A MATÉRIA!!! CONTINUEM POR SUA CONTA E RISCO!!!


O terceiro livro da série é marcado pelo contato com a Autoridade, uma espécie de antagonista principal a quem lorde Asriel pretende destronar. Desde o segundo livro que entendemos que a Autoridade nada mais é do que Deus, e os livros de Pullman falam do enfrentamento entre os seres humanos e os seres angelicais. E a discussão acaba girando em torno deste tema fundamental, de onde vem diversas polêmicas principalmente a partir das crenças do próprio autor, que é agnóstico. Mas, queria deixar todo esse lado religioso de lado para abordar outro que é bem menos explorado: as discussões ambientais feitas no livro. E o autor faz várias delas ao longo de toda a série. Queria usar como ponto de partida esse mundo idílico que acaba por se tornar um segundo lar para Lyra e Will. Percebam de cara como os livros vão se dirigindo cada vez mais para uma atmosfera pacata e do interior. Começamos a jornada de Lyra na Jordan para depois nos dirigirmos para o lar no norte dos Panserbjorn (os ursos de armadura), depois temos Will deixando a Inglaterra para ir até a Torre onde ele encontra a faca sutil, depois a Terra dos Mortos e terminamos nesse mundo pacato. Fazemos esse percurso sem nos darmos conta de seguirmos a um local onde o contato com a natureza é maior. E os personagens parecem finalmente se encontrar nessa relação pura com a essência do mundo.


Mas, por que florestania? E o que é isso? Em um dos textos de seu novo trabalho, Futuro Ancestral, Ailton Krenak tece uma série de críticas a uma sociedade que está atacando cada vez mais o meio ambiente. Que não entende a necessidade de dar um passo atrás e poder curtir o contato com os rios, com os animais, com as florestas. A louca rotina urbana nos torna cegos, surdos e mudos ao que acontece diariamente aos rios que são poluídos por dejetos industriais, às florestas, destruídas por agricultores e garimpeiros impiedosos e pelos animais, mortos seja pela poluição cada vez maior ou por serem um "incômodo" a novos empreendimentos imobiliários. A Amazônia, considerada o pulmão do mundo, sofre agressões todos os anos e tem sua extensão sendo reduzida drasticamente. Na visão de Krenak, o ser humano precisa entender melhor o mundo que o cerca. A florestania nada mais seria do que esse contato com a natureza, a percepção de que tudo o que é vivo pulsa, sejam as árvores, as flores, o mato. É uma energia que perpassa todo o planeta e nos conecta através de uma corrente do bem-estar e pertencimento. Quando abrimos os olhos e florestamos, é como se abríssemos os olhos e passássemos a realmente enxergar o mundo.


A dra. Malone passa por uma experiência assim. Ela era uma cientista no mundo de Will Parry. Alguém que estava envolvida com pesquisas sobre matéria escura. Mas, suas pesquisas não avançavam por algum motivo que ela não compreendia. Ao conhecer Will e Lyra, ela acaba entrando em contato com um outro aspecto de sua personalidade. A doutora tinha um conjunto de I Ching ao qual ela tinha apenas como um hobby. Ela nunca foi capaz de acreditar que o I Ching conseguisse contar alguma coisa sobre nossos caminhos ou possíveis escolhas. Quando ela abre os olhos para a existência de outros mundos, para os daemons e para a bússola estranha usada por Lyra, seu mundo é virado de cabeça para baixo. Isso acontece porque a ciência já não dava a ela as respostas precisas que ela necessitava. Faltava um algo mais. Meditar, observar a natureza eram bobagens. Tão focada ela estava no pragmatismo do método científico que ela se esqueceu do empirismo do mundo real, do contato com coisas reais.


O I Ching tem conexões com essa exploração do mundo material, do contato com a natureza, da exploração dos elementos que formam a vida. Não é só "esoterismo barato", como se costuma colocar tais filosofias orientais. Ele surge no século XI a.C. na China durante a dinastia Zhou Ocidental e acaba sendo transformado pouco a pouco em um texto chamado de "As Dez Asas" que tem aspectos cosmológicos e muito de filosofia. Fala de mutações e transformações, algo que se conecta com a obra de Pullman no sentido de que Will e Lyra estão passando por uma fase crítica da adolescência. Lyra está para fixar o seu daemon, o seu animal-companheiro que é um reflexo de sua personalidade. Até aquele momento, Pantalaimon mudava de forma a todo o momento, representando a personalidade fluida de Lyra. Só que o I Ching não vai se conectar apenas com Lyra e Will. Todos os personagens do livro vão se transformar de uma forma ou de outra a partir do contato com pessoas ou com a natureza.


Aliás, essa é outra crítica feita por Krenak que se conecta nesse debate homem-natureza. Quanto mais entramos em um mundo tecnológico, onde a internet povoa as nossas vidas, nos esquecemos do ar livre, do outro. Somos guiados pelas redes sociais e achamos que só precisamos disso para entrarmos em contato com o outro. Krenak descreve que em sua tribo, os jovens começaram a assistir aulas remotas e falar com os amigos a partir das redes sociais. Ele foi muito crítico a isso, estimulando os garotos a sair para a floresta, a encontrar o outro frente a frente quando a quarentena tivesse acabado. Nada substitui uma conversa próxima, o contato com o outro, a experiência do mundo real. Ser capaz de olhar nos olhos, sorrir, nos divertir, conversar, brincar, entristecer, sentir saudade. Os modos rápidos de comunicação são os responsáveis por fazer com que nos esqueçamos dessa experiência de florestania, de observar e admirar o espírito real das coisas.


Voltando à dra Malone, ela segue até o mundo vivido pelos animais telepáticos e não compreende o que estão dizendo, sobre o que se referem. Ela acaba precisando parar tudo o que ela está fazendo, deixar de lado seus preconceitos e pré-concepções para conseguir entender essa nova forma de entender o mundo. Ela se senta embaixo de uma árvore, passa a escutar as árvores, a grama, os animais, o céu, as folhas que voam. Não é que ela esteja rejeitando o que aprendeu, mas está complementando seus conhecimentos prévios com toda uma cascata de novas informações. Abrindo sua mente para enxergar a essência do mundo. Florestania. É aí que ela começa a entender seus novos companheiros e então ela passa a uma nova dúvida: o que é o sraf? Sraf é o Pó na língua destas criaturas, mas saber o significado não quer dizer que ela vai conseguir enxergar ou compreender a fundo do que se trata. Malone precisa enxergar o sraf. No livro os animais dizem a ela que em algum momento os humanos podem ter sido capazes de enxergar o Pó, mas se esqueceram disso. Malone vai precisar de uma luneta âmbar para conseguir visualizar a essência que sai de todos os seres vivos. É isso o que aconteceu conosco: não somos mais capazes de entender o que está ao nosso redor. De enxergar essa energia dinâmica e transformativa que nos cerca (aí volta o I Ching). Somente quando formos capazes de encontrar nossas próprias lunetas âmbar é que seremos capazes de compreender o mundo como ele é de fato.


É incrível pensar que um livro como Futuro Ancestral, de Ailton Krenak foi capaz de me fazer enxergar outro de uma maneira tão diferente. Recomendo a leitura dele porque em suas páginas, Krenak não apenas fala da necessidade do contato com a natureza, mas nos fala da importância dos rios que estão sendo mortos dia após dia pelos homens. De como a política acaba por se sobrepor a outros tipos de necessidades e transforma a proteção ao meio ambiente em algo menor e "exótico". Krenak fala de seus dissabores durante os quatro anos de governo Bolsonaro e de o quanto o covid-19 afetou negativamente os seus companheiros, estes abandonados pelo Estado à própria sorte. Fala também da necessidade de uma educação progressista, voltada para o contato com a natureza, para a economia sustentável, para o ato de criar ao invés de destruir. São palavras duras de um homem sábio que já passou por muitas tragédias em sua vida. Mas que mantém sua sabedoria de um homem que possui um contato profundo com a terra.


Referência bibliográfica:


Nome: Futuro Ancestral

Autor: Ailton Krenak

Textos compilados por Rita Carelli

Editora: Companhia das Letras

Gênero: Não-ficção

Número de Páginas: 128

Ano de Publicação: 2022


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*Material recebido em parceria com a Companhia das Letras













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