O quanto um autor de fantasia e ficção científica precisa ser fiel aos limites da ciência? O quanto ela é necessária? Nesta matéria vamos falar sobre a importância de se pesquisar determinados assuntos científicos e a melhor maneira de incorporá-los à sua história.
É uma máxima de qualquer escrita literária a necessidade de pesquisa acerca de determinados assuntos que nem sempre são ligados diretamente ao enredo. Seja tipos de café para entender o que um personagem gostaria de tomar, os tipos de de músculos desenvolvidos em certos tipos de atividade física, os detalhes da fabricação de gárgulas para igrejas de estilo neogótico. Já vimos relatos das mais diversas maluquices e insanidades no momento da escrita de uma história. O pior: é algo totalmente necessário. Mas, a fantasia e a ficção científica apresentam ainda mais desafios e tornam as pesquisas do Google de escritores algo pitoresco e que nós gostaríamos de ser mosquinhas para saber.
No momento de pensarmos o mundo e os personagens que o habitam é preciso pensar, em uma narrativa de literatura de gênero, o quanto o mundo vai se assemelhar à nossa realidade. Caso se assemelhe o autor precisa pensar com calma quais elementos vão ser importantes para a história. Esse é um tipo de discussão mais comum em universos de ficção científica que demandam que o autor pense qual o nível tecnológico de seu mundo. Mas, antes de entrar nos detalhes do scifi, preciso de alguns parágrafos para deixar bem claro que nem tudo se resolve com magia. O autor precisa ser cauteloso ao não usar a justificativa mágica para solucionar todas as lacunas que ele não soube responder; caso contrário se torna apenas uma muleta. É legal ver magos disparando bolas de fogo por toda a parte, mas como elas se formam? Qual o limite de uso? Dois autores que encontraram soluções bem diferentes são J.R.R. Tolkien e Patrick Rothfuss. Em O Senhor dos Anéis, Gandalf é um poderoso feiticeiro capaz das proezas mais incríveis. Mas, ele é limitado ao contexto onde a magia acontece, o tipo de encantamento e o seu próprio físico que pode ou não aguentar um encantamento.
Como um segundo exemplo, sempre gosto de incluir a Fran Wilde nessas conversas. Ela é uma engenheira e trouxe parte de seu conhecimento para sua série chamada Bone Universe cujo primeiro volume é Updraft. Uma série YA que nunca veio para o Brasil e que li há alguns anos atrás (confesso estar devendo continuar a ler). A história se passa em um mundo onde as pessoas moram em imensas torres e edificações e não podem ir para o solo porque existem uma série de mistérios e perigos abaixo das nuvens. Para irem de um lugar para o outro, os indivíduos usam planadores. E aí vamos ter uma série de aventuras acontecendo com piratas e combates aéreos. Um dos elementos principais da história é como a movimentação pelo ar é realista e durante o treinamento da protagonista ela precisa aprender a lidar com seu planador, mas com outros aspectos como os ventos, a aerodinâmica entre outros. A Fran Wilde escreveu um artigo sobre como empregar engenharia aeroespacial em suas histórias que é genial (sempre quis traduzir esse artigo, mas nunca consegui autorização). Vejam o quanto um elemento sutil conseguiu dar individualidade a uma história. Pura ciência; simples pesquisa.
No livro Desvendando o Universo, Stephen e Lucy Hawking nos apresentam os diversos temas que compõem a exploração do espaço e o que faz do universo um lugar tão intrigante. Se trata de um livro escrito a várias mãos que vão passar por diversos campos do espectro científico: astrofísica, química, física, xenobiologia. Tudo o que se sabe até o momento da publicação está ali, apresentada de uma maneira didática e ágil. O leitor vai se deliciar com a maneira como os temas são postos, com quadros de observação, tabelas e uma linguagem simples e que não precisamos ser necessariamente cientistas ou termos alguma especialização na área. Lógico que por ser um material que conteve a participação de diversos escritores vai ter um ou outro momento em que a apresentação do tema é mais árida ou a pessoa não soube criar exemplos mais fáceis de serem compreendidos. Até porque é complicado explicar o que é um bóson de Higgs de uma maneira simples.
Trouxe esse material publicado pela editora Seguinte porque acredito na capacidade que a ficção científica possui de nos encantar. Saindo um pouco do fantástico que expliquei logo acima, as naves e os momentos futuros conseguem ser atrativos para os leitores seja nos mostrando um lugar brilhante a explorar o espaço ou uma distopia que carece de uma reflexão de nossa parte. A tecnologia é integrante nesse processo de nos levar a um outro contexto. No prefácio desta edição, Lucy Hawking conta o quanto ela sempre foi fascinada pelo que havia no espaço e seu pai, o falecido Stephen, foi capaz de cultivar esse sentimento em seu íntimo. Só que as informações sobre as descobertas científicas estão espalhadas por toda a parte. Caminhamos tão rápido em nossas pesquisas que pode ser avassalador acompanhar tanta coisa ao mesmo tempo. Stephen Hawking tinha uma preocupação em levar a ciência a todos, para que possamos nos maravilhar e nos encantar com o quanto o universo pode ser grandioso e assustador. Assim como Neil DeGrasse Tyson, que já publicou uma série de livros voltados para o público leigo.
Sei que os autores ficam tentados a criar algo do nada e inventar uma explicação a partir do ar. Afinal, a ficção científica bebe um pouco da fantasia em seu sentido mais essencial do termo. Mas, é tão mais interessante quando conseguimos especular algo a partir de informações reais. Um bom exemplo disso é o livro Devoradores de Estrelas, do autor Andy Weir. Ele gosta de usar situações e pesquisas reais para dar uma fundação básica para seus livros. Em Devoradores de Estrelas, o protagonista vai até outro sistema estelar buscar respostas para um problema que assola o nosso sistema solar e lá ele acaba por encontrar outra civilização alienígena. Mesmo com toda essa situação fora do normal, Weir consegue manter os dois pés no chão, criando uma ou outra tecnologia mais "exótica". O leitor fica com aquela impressão de que algumas coisas são totalmente possíveis e isto não está longe da verdade. Partir de situações reais e criar algo tão bizarro cria uma conexão entre o leitor e a narrativa. Tira a história daquele posto de fantasia no futuro. Não é algo ruim, mas percebemos em alguns leitores uma certa resistência em ler contextos onde os elementos formativos fogem demais da realidade.
É possível também criar aquela dicotomia entre o que o ser humano criou e o quanto estamos longe de outras civilizações no espaço. Um autor que gostava de trabalhar essa temática em suas narrativas era Arthur C. Clarke. Um grande pesquisador sobre ciências e alguém que gostava de saber aquilo que estava sendo desenvolvido. Ele sempre buscava incorporar algo que estava em vias de ser amplamente divulgado em suas histórias. E o autor, a partir da análise de tendências científicas, previu muitas tecnologias que se tornaram realidade como a rede mundial de computadores (a internet), um espaço onde as pessoas poderiam se comunicar rapidamente de qualquer lugar do mundo (as redes sociais) e até mesmo telefones portáteis. Estamos falando de afirmações que ele fez nas décadas de 1960 e 1970. Clarke era um visionário, mas nada do que ele afirmou partia de especulações insanas. Livros como 2001, uma Odisseia no Espaço ou Encontro com Rama possuem os dois pés no chão embora tratassem do futuro da humanidade, do contato com alienígenas e até esboçassem tecnologias exóticas para a época em que o livro fora escrito. O que torna Clarke tão fascinante? Sua capacidade de saber dosar o real e o especulativo.
Vamos voltar um pouco mais no tempo. Garanto que se Jules Verne pudesse ter à disposição esse tipo de material mais voltado para o público leigo como um Hawking ou um DeGrasse, isso faria sua imaginação transbordar ainda mais. Aliás, não duvido nem um pouco que Verne estaria escrevendo um material desse tipo. Em jornais da época, Verne dizia que sua missão como escritor era levar essas novas descobertas a todos os leitores. Uma Feira Mundial, acontecimento tão comum no século XIX e que reunia cientistas de todo o mundo em um lugar, encantava o autor e o fez criar histórias memoráveis como Vinte Mil Léguas Submarinas e Viagem ao Centro da Terra. Com certeza temos vários autores que tiveram sua curiosidade científica despertada pelas obras de Verne. O autor concebeu o seu Nautilus a partir de pesquisas que eram feitas sobre um veículo que podia submergir, uma tecnologia que viria a ser desenvolvida durante a Primeira Guerra Mundial, mas só ganharia espaço anos mais tarde. Ou seja, não é absurdo algum partir de coisas reais e criar alguma especulação em cima. É o que torna uma história tão fascinante. Robert E. Heinlein ao escrever Tropas Estelares analisava situações reais ao mesmo tempo em que criava tecnologias intrigantes baseadas em pesquisas do Pentágono. Nos fiamos demais nas discussões sobre o militarismo e os insetos fedorentos da história, mas o que permite a história ganhar tanto realismo e impacto é a ciência que está ali presente.
Portanto, a curiosidade científica é um importante elemento que está na essência do que a ficção científica representa dentro da literatura de gênero. A ausência disso pode fazer uma história perder o contato com o que é real e se transformar em algo surreal demais. Nada contra isso até porque temos ótimas histórias de scifi que empregam amplamente o nonsense. Só que isso foge um pouco do público. Claro que ciência demais em uma história pode tornar a narrativa pesada demais. Em certos momentos a escrita do Andy Weir me parece didática e maçante. Há de se ter um bom equilíbrio entre apresentar a tecnologia e não palestrar demais. A menos que se deseje uma hard scifi, aí já é um outro assunto para outra coluna. Mas, no geral, percebo que os autores preferem ficar nesse meio-termo. Deixo a dica desse ótimo livro que me entreteve por mais de um mês, organizado por Stephen e Lucy Hawking. Tenho certeza que ele irá despertar uma série de ideias nos autores. Além de ser uma leitura agradável.
Bibliografia Indicada:
Ficha Técnica:
Nome: Desvendando o Universo
Organizado por Stephen e Lucy Hawking
Editora: Seguinte
Gênero: Não-Ficção
Tradutora: Rosiane Correia de Freitas
Número de Páginas: 448
Ano de Publicação: 2021
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a editora Seguinte
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