Parando um pouco as prensas da matéria desta semana, é mais do que justo homenagearmos a essa grande figura da cultura brasileira. Ziraldo certamente está deixando o andar lá de cima mais feliz com o seu bom humor. Queria falar um pouco da importância do Ziraldo em minha vida.
Existem algumas constâncias nessa vida. Em sua infância, você certamente já passou por um cartum ou uma tirinha do Ziraldo. Ou já viu uma imagem do Menino Maluquinho estampada em qualquer lugar. Quando era pequeno, gostava de brincar com os meus amigos, soltar pipa, matar aula para ficar curtindo e até aprontava algumas. Quando peguei uma tirinha do Menino Maluquinho pela primeira vez, aquele garoto conversava comigo. Não precisava ter uma eloquência literária ou truques de arte, nem nada do tipo. Suas aventuras eram as aventuras de qualquer criança. A jovialidade e a inocência do personagem encantavam qualquer pessoa, não importasse a idade. As histórias poderiam ser curtinhas, ou um pouco mais longas. Não importava. Sempre dava umas boas risadas ao final. Ziraldo conseguiu criar um personagem que já faz parte do patrimônio cultural brasileiro. E isso é inegável. Mesmo hoje, nos meus mais de quarenta anos de idade, sempre acabo me deparando com alguma imagem ou tira do Menino Maluquinho enquanto preparo minhas aulas. Não importa o tema, não importa o contexto. Ele sempre está ali, como uma espécie de ser onisciente que nos faz lembrar de nossas infâncias.
Mas, toda infância chega ao fim e passamos pela fase rebelde de nossas vidas. A adolescência. Aquele momento em que queremos quebrar regras e desafiar as autoridades. Em que o mundo passa a ser careta e nós somos seus transformadores e catalisadores. É então que me deparo com uma revista no canto da biblioteca da minha escola. Eu, em minha adolescência fugidia, pensando apenas bobagens junto com colegas cujos neurônios estavam alimentados pelos hormônios da puberdade, vimos a Bundas. Em nossas imaginações juvenis, parecia ser aquele éden proibido que queríamos ir até repararmos que se tratava de uma série de charges e matérias criticando a famosa Caras, a revista dos famosos. A maioria de meus colegas desistiu da revista, mas algo me chamou a atenção ali. Aquele humor ácido frente a uma idealização da vida dos famosos me agradava de um jeito quase sádico. Era um outro lado do meu amigo (chamava ele de amigo agora porque já me sentia na intimidade com o bom senhor) que eu não conhecia e me agradava. Estava no auge dos programas de ricos como o do Amaury Junior ou o de tantos outros que mostravam festas e iates. Ziraldo brincava com isso, fazendo charges cada vez mais ousadas mostrando como tudo isso era supérfluo. Durante algum tempo, a Bundas foi o contra-ataque dos progressistas às bobagens neoliberais e consumistas.
Depois da minha fase "bundal" fiquei alguns anos sem me conectar mais com o Ziraldo, que já agora parecia aquele doce vovô dos cabelos de nuvem. Os compromissos da academia, as monografias universitárias e as teses de mestrado me tornaram um insano ser que se preocupava com leituras e prazos. Até que quase no final da minha graduação, passei a atuar como restaurador no Arquivo Nacional por alguns semestres. E tínhamos acesso a materiais do período da ditadura, coisas que haviam sido censuradas ou que davam dados picantes sobre o governo. Eu e meus colegas estávamos naquele momento ilusório da graduação quando achávamos que podíamos mudar o mundo e queríamos nos espelhar em ícones do passado. É aí que nos deparamos com O Pasquim. Que jornal da hora que era O Pasquim. As matérias eram uma aula de ironia em tempos difíceis do Brasil. Ziraldo fazia os militares parecerem uns patetas a la Recruta Zero. Como era bom ver o meu amigo de infância se revelando ter sido um radical no passado, um ativista político que não se acovardou diante de um governo tolo. Da primeira à última edição O Pasquim foi um veículo de resistência contra a opressão e essa faceta do Ziraldo parece que escapa àqueles que o admiram hoje. Por isso até que quando ele se colocou contra o governo do ex-presidente Bolsonaro, muitos se espantaram porque imaginavam o autor como sendo só o cara do Menino Maluquinho.
Não podemos nos esquecer da Turma do Pererê que, confesso, só fui conhecer com mais idade. Não sabia que o Ziraldo trabalhava com um personagem cuja intenção era fazer um resgate do folclore nacional. A cada instante que passava o autor me mostrava mais e mais facetas de sua obra. O que me deixava ainda mais encantado com sua obra. Recomendo até procurar os quadrinhos da turminha porque ele trata o tema com tanto respeito e carinho que, mesmo quando ele dá uns deslizes, a gente deixa para lá porque é tudo feito com amor. E explica porque ele não deve jamais sair das bibliotecas de nossas escolas. Seja com suas obras mais infantis, ou aquelas que servem para divulgar algum assunto. A título de curiosidade, Ziraldo foi o criador do mascote do Bahia, o time de futebol. Era uma sátira ao Superman, representando os jogadores do time como homens de aço.
Ziraldo é um patrimônio brasileiro. Não há discussão sobre se ele deve fazer parte dos maiores autores do Brasil. Ele é e ponto final. Não há uma disputa de primeiro e segundo lugar porque isso depende muito do contexto em que se encontra o país. Somos frutos do nosso tempo. Mas, vale destacar que o cartunista fez parte de inúmeras campanhas governamentais sobre os mais diversos assuntos, desde vacinação até campanhas de combate à evasão escolar. Teve uma época em que a Globo colocava cartuns animados do Ziraldo nos intervalos de seus filmes. Uma das coisas mais criativas já feitas por lá. Em uma época em que precisamos de mais referências culturais, Ziraldo deixa um lacuna que espero termos outro expoente aparecendo em breve. No momento de sua morte, o CCBB RJ inaugurou uma exposição interativa da obra. Que coisa do destino... Que ironia que parece saída de uma edição do Bundas. Mas, acho que de onde quer que ele esteja, o autor está vendo inúmeras crianças brincando e se divertindo com os seus personagens.
Ziraldo é a cara do humor brasileiro. Tem o DNA lá. Seja em uma narrativa inocente de um doce garoto aprontando todas enquanto sorri em um dia ensolarado; uma crítica feroz à sociedade capitalista; um resgate das tradições brasileiras; ou uma narrativa de resistência em tempos difíceis. Todos esses são Ziraldo e ele se tornou tão presente em nossas vidas que passamos a carregar um pouquinho dele conosco. Quando li a notícia da morte do autor, me lembro de que deu aquela pancada forte no coração, saíram aquelas lágrimas das recordações dos bons momentos, mas acima de tudo o quanto ele deixou mais alegria em minha vida. Se vocês chegaram até aqui e tiverem algo para compartilhar sobre o impacto de Ziraldo em suas vidas, deixem aí nos comentários.
A minha lembrança mais marcante de Ziraldo não é ligada diretamente aos seus desenhos ou histórias, mas às participações dele nos programas de Jô Soares! Sempre que sabia que ele ia estar lá, já me eriçava todo. Inclusive a última entrevista de Jô, em seu último programa, foi com ele. As histórias que ele contava, o riso e a alegria me contagiavam. Não tenho nenhuma lembrança específica, mas ele esteve como que onipresente em muito do que li, vi e assisti. Viva o grande Ziraldo. Que seu apelo universal continue vivo em nós e nas futuras gerações!